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Michael J. Sandel: "A democracia implica que a razão seja usada não para ganhar, mas para deliberar"

É um dos nomes de referência da filosofia política e esteve em Portugal na convite da fundação Francisco Manuel dos Santos. Falámos com Michael J. Sandel sobre democracia, extremismos, ética e moral.

A fundação Francisco Manuel dos Santos convidou Michael Sandel, uma estrela da filosofia política de Harvard, para falar nos Encontros da Fundação. Antes do seu debate com Steven Pinker, falámos sobre alguns dos problemas da democracia. Sandel tem procurado mostrar que a redução da política a um discurso económico ou justicialista, sem moral, cria um vazio e um desinteresse perigosos para a nossa sociedade. A questão é que a democracia cresceu com a ideia de que misturar política e moral é uma tentação constante mas também um sério perigo. Como é que uma sociedade pode ter princípios éticos definidos sem cair num totalitarismo em que o Estado decide o que é o Bem e o Mal? Foi sobre esta relação entre ética e política que falámos.

A Justiça e o Bem são a mesma coisa?
Isso lembra-me uma história contada por um filósofo meu amigo, já morto, que nos anos sessenta se juntou aos protestos de Nova Iorque contra a guerra do Vietname. A polícia apareceu e prendeu, com alguma violência pelo meio, uma série de manifestantes, entre os quais o meu amigo. Ele foi a tribunal e o juiz e o juiz perguntou-lhe se ele se queixava de ter sido mal tratado. Ele respondeu que sim, que tinha sido mal tratado porque lhe tinham batido com um bastão, e ele não estava a fazer nada de mal; mas não podia dizer que o tinham tratado injustamente, porque tinham batido em todos os que ali estavam da mesma maneira. Portanto, não tinha sido tratado da maneira certa, mas também não tinha sido tratado injustamente. Justiça tem que ver com, nas mesmas situações, tratar as pessoas da mesma maneira, enquanto o Bem tem que ver com as questões mais profundas de Certo e Errado, com as últimas questões da existência.

O Bem é uma questão ética. Mas podemos pedir à política que se intrometa na ética, ou o seu âmbito é apenas o da justiça, neste sentido mais restrito?
É uma boa pergunta. A pergunta implica implica que a justiça seja uma exigência mais pequena. Eu acho que devemos exigir que a política seja justa, mas também que pelo menos aspire ao Bem. É uma demanda mais alta.

É mais alta mas também pode ser mais perigosa. Porque se a política pode decidir o que é o Bem, entramos num campo minado.
É perigoso, sim. Mas – e eu acho que tem razão – diga-me porque é que acha que é perigoso.

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"Se não acreditarmos que é possível sustentar as nossas ideias, e que as pessoas podem ser persuadidas, então só temos um choque. Não me parece que os ideais éticos sejam fixos, como gostos."

A questão é que a democracia sempre se tentou pôr nesta posição neutra, em que se tenta abdicar de ter uma ideia de Bem. As pessoas têm princípios diferentes, ideias diferentes de Bem e de Mal, e à política cabe assegurar que elas coexistem, sem ter uma ideia de Bem. Se a política tem uma ideia de Bem, isso vai excluir as outras ideias de Bem, mina o princípio democrático…
Sim, eu percebo o problema, e há muita gente que de facto acha que procurar o Bem, na política, é demasiado exigente, dado que em sociedades pluralistas há discórdias a respeito das grandes questões. Parece mais sensato, então, que a política se atenha à justiça, sem procurar o Bem, porque isto implicaria discórdias, competição entre pontos de vista, de tal modo que acabaria por se impor uma ideia que nem todos partilhariam. Eu tenho, em toda a minha carreira, pugnado por uma política com ideais mais exigentes, baseado em dois pontos. Em primeiro lugar, porque não é possível assegurar mesmo a mais modesta conceção de justiça sem, a dado momento, uma certa ideia de Certo e Errado. Depois, porque se deixarmos os ideais éticos fora da política, com a ideia de que eles trazem discórdia, corremos o risco de criar um discurso público vazio, que evita as questões que realmente interessam às pessoas. E quando isso acontece, esse espaço tende a ser preenchido pelos mais intolerantes, por fanáticos religiosos ou por nacionalistas zangados, porque as pessoas querem que a vida pública trate de ideais éticos mais elevados. Em certo ponto, é o que me parece que está a acontecer hoje. Os nacionalistas, os populistas, estão a ocupar este espaço vazio. É por estas duas razões que, embora perceba os perigos, não acho que devamos evitar as questões éticas na política.

Mas então de que modo é que os tais “intolerantes” não estão a fazer aquilo que o professor propõe? Estão, com as ideias deles, a propor um ideal ético. Como é que podemos então aspirar à ética sem sermos os tais intolerantes. É que, para aspirar ao Bem, é preciso ter uma ideia de Bem. Qual devia, então, ser a nossa ideia de Bem?
Bom, eu concordo que é o mesmo tipo de política que eu proponho, no que diz respeito a trazer a ética para o discurso público, mas acho que é possível debater na esfera pública sobre conceções éticas contrárias. Se não acreditarmos que é possível sustentar as nossas ideias, e que as pessoas podem ser persuadidas, então só temos um choque. Não me parece que os ideais éticos sejam fixos, como gostos. Eu gosto de gelado de chocolate, e acho que todos deviam gostar de gelado de chocolate. A ética está aberta à razão e ao debate, e é isso que deve ser a cidadania.

Michael J. Sandel tem 66 anos e é professor em Harvard

Há uma passagem do Górgias em que Cálicles é vencido no debate por Sócrates, mas em que lhe diz que de facto não tem mais argumentos, mas que ainda assim não está convencido. Que processo é este? O debate, em geral, não convence ninguém. As ideias estão alicerçadas noutras ideias, de tal forma que se torna muito difícil descobrir em que é que assenta, de facto, uma crença. Não me parece que o debate seja suficiente para mudar uma ideia. De onde é que vem esta resistência?
Uma pessoa pode ser racionalmente persuadida de um princípio e mesmo assim não acreditar nele. Isso sugere que acreditar num princípio implica uma reorientação das ideias e das opiniões à luz do novo princípio. No caso de Cálicles, pode acontecer que o novo princípio o leve a rever as suas intuições morais, ou que decida que afinal não está convencido.

Mesmo que não saiba explicar porquê?
Na verdade, este é o tipo de experiência que nos deve levar a pensar porque é que não conseguimos defender aquilo em que acreditamos, ou levar-nos a reorientar os nossos princípios. É muito difícil viver com esta contradição, de termos argumentos que destroem as nossas ideias, pelo que o caminho deve ser feito nas duas direções – tanto para tentar sustentar o que acreditamos, como para explorar aquilo que nos desconcertou.

Os Sofistas querem ganhar discussões. Para eles, as razões são armas. Para os filósofos, as razões não são armas, são caminhos para chegar à verdade. Ganhar uma discussão com as razões como armas pode não persuadir ninguém, de facto. 

É que este é outro problema importante para a democracia. Em democracia, coloca-se a fé no diálogo, mas nem sempre ter as melhores razões significa estar certo. Posso não ter as armas certas no meu pensamento para perceber as minhas razões mais profundas, de tal modo que a tal “intolerância” de não dialogar pode ser saudável, significa não estar à mercê de uma razão que em última instância não é infalível.
Sim. É engraçado que tenha usado a palavra “armas”. As razões como “armas”, está precisamente aí a diferença entre Sócrates e os Sofistas. Os Sofistas querem ganhar discussões. Para eles, as razões são armas. Para os filósofos, as razões não são armas, são caminhos para chegar à verdade. Ganhar uma discussão com as razões como armas pode não persuadir ninguém, de facto. Eu acho que a democracia, no seu melhor, implica que a razão seja usada, não para ganhar, mas para deliberar, o que é diferente de persuadir. Deliberar é raciocinar em público. O sofista não está aberto à hipótese de ser persuadido, quer ganhar, enquanto o cidadão – idealmente – está a procurar a verdade, está à procura da melhor maneira de viver. A razão é um instrumento num projeto que aspira à verdade. Eu acho que esta distinção faz falta num tempo como o nosso, em que a política se faz através de slogans e de razões usadas como armas, em vez de se fazer pela deliberação. É este o tipo de política em que eu acredito, e para o qual tenho tentado criar condições para que possa existir.

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