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“O Fim da Linha” é um trabalho especial multimédia do Observador sobre o impacto da pandemia no Alto de São João. Na primeira parte mostrámos como o espaço está a esgotar-se neste cemitério de Lisboa. Esta é a segunda parte.
O nevoeiro vindo do rio Tejo que se abateu sobre o cemitério do Alto de São João nas primeiras horas da manhã de sábado já se dissipou. Miguel Carreira, 59 anos, responsável pela secção número 20, aproveita a aberta para arranjar quatro covas que abateram com a chuva dos últimos dias. Está rodeado por 620 campas, escavadas e tapadas de novo entre o fim de março e os últimos dias de dezembro do ano passado. Sente-se sozinho: “É quase um isolamento profilático”, brinca. Mas a música, vinda do rádio escondido por um gorro na barraca onde guarda as ferramentas — uma versão jazz de “Holding Back the Years” — vai servindo de companhia.
Não é uma barraca qualquer. Miguel Carreira transformou a pequena construção, escondida atrás de uns jazigos, numa cozinha. No fogão ainda está a panela de alumínio e a colher de pau com que preparou o frango de jardineira para ele e mais três colegas. Na pequena mesa quadrada que também lá cabe dentro há quatro pratos, outros tantos copos e oito talheres por lavar, uma garrafa de vidro transparente “que não é de água” e um kiwi por comer. Só há uma cadeira, mas os tijolos empilhados servem de bancos improvisados. Na parede, um calendário do Benfica, clube de que é “simpatizante”, como faz questão de ressalvar, oferecido por uma funerária.
Miguel é um dos homens e mulheres no fim da linha da pandemia de Covid-19 em Portugal. O Observador passou dois dias a acompanhar o trabalho dele e de outros três coveiros — Fausto, Ricardo e Diana — nas sepulturas que, desde março até agora, têm recebido os corpos das vítimas do coronavírus. Explicam como a vida mudou com a pandemia e onde encontram forças para contactar com a morte mais do que nunca.
Miguel plantou um jardim “para não pensarem só no que está debaixo de terra”
Pai de duas filhas, avô de três netos, Miguel Carreira é coveiro há 30 anos e ganha 780 euros por mês. Não se queixa: “Quando somos úteis, não somos velhos”. Ajuda psicológica só a tem se pedir. Está aqui a um sábado para ganhar um pouco mais, mas no domingo está de folga. Calha bem porque é Dia dos Namorados e vai celebrá-lo com a mulher, com quem voltou a viver há um ano e um mês: “Divorciei-me do amor da minha vida e só depois é que chegámos a essa conclusão. Agora juntámo-nos outra vez”, conta, numa pausa entre o arranjo das covas. Tem o plano romântico todo delineado: vai oferecer-lhe flores, partilhar chocolates e comer camarões ao jantar. “Algo nos puxou um para o outro”, resume: “Mas não depende só de mim, não é?”.
A secção em que está a trabalhar foi a primeira a receber os corpos de vítimas mortais da Covid-19. Foi Miguel Carreira quem, assim que a pandemia chegou ao país e o cemitério se preparou para a letalidade da Covid-19, exumou os restos mortais que ainda subsistiam neste terreno. E foi também ele quem tratou depois de abrir e preparar as mais de seis centenas de covas que foram sendo ocupadas, no mesmo espaço, ao longo de nove meses, metade delas pelas vítimas do coronavírus. Agora, nos curtos intervalos entre os enterros que se repetem no talhão vizinho, é ele quem garante que “a dignidade também está cá” e tudo tem um “ar apresentável”.
E esforça-se para cumprir esta função. O coveiro aproveitou os conhecimentos que herdou do ofício da mãe, jardineira, e abriu um canteiro em torno da secção. “Esfregue as folhas e cheire”, aconselha, debruçado sobre uma malva rosa.
Mais lá em baixo, no horizonte, a inclinação do terreno revela uma vista panorâmica para o rio. “Uma bela vista para quem não vê”, diz. Mas nada daquilo é só para quem já não pode ver. As flores da secção número 20 servem mais para acalentar quem cá vem visitar as campas: “Procuro ter este espaço de modo mais agradável também para as pessoas não pensarem só no que está debaixo de terra”.
É das famílias que vem o maior reconhecimento que sente. Do mundo para lá dos portões do cemitério, nem por isso. “Já fui ao banco depositar dinheiro vestido de uma certa maneira e fui recebido com excelência; e já fui ao banco numa hora de trabalho vestido de outra maneira, desta maneira que está aqui a ver, e não fui nada bem recebido”, lembra Miguel Carreira enquanto aponta para as botas cobertas de lama e a roupa cinzenta e bege, farda que lhe foi entregue pela Câmara Municipal de Lisboa. Espera que a pandemia venha a mudar estes preconceitos e trazer mais “empatia”: “Uma coisa invisível aos nossos olhos veio revelar que somos todos iguais”.
Fausto sente falta do mundo antes das máscaras: “É como uma parede”
Os coveiros do cemitério são chefiados por Fausto Caridade, o encarregado no Alto de São João. Era oficial de eletricista antes do 25 de Abril, mas o desemprego atirou-o para o ofício de coveiro em 1977. Depois da reativação do forno crematório em 1985 — o cemitério foi o primeiro do país a oferecer este serviço, em 1925, mas foi desativado pouco depois —, Fausto chegou a trabalhar nas cremações, mas “emocionalmente é um pouco… não é bom”. Dali voltou para a abertura das sepulturas, numa altura em que isso era feito apenas com recurso a pás e, como não havia marcações de funerais, chegava a haver 21 enterros num só dia. Hoje tem 43 anos de serviço e é um dos três encarregados de cemitério em Lisboa.
Uma vez, estava ele numa cova perpétua (uma sepultura de maiores dimensões, normalmente comprada por famílias) a tratar da exumação de um corpo a dois metros de profundidade, apanhou um susto: quase não encontrou qualquer resto mortal, nem sequer nenhum pedaço de madeira do caixão. Chegou a chamar o superior, aflito, estranhando o fenómeno. No final de contas, não havia ali nada de estranho: podia acontecer quando os enterros já tinham acontecido há várias décadas. A história marcou-o tanto que nem as décadas de experiência a apagaram da memória. Já viu muita coisa. E, mesmo assim, nunca esperou vir a supervisionar os enterros provocados por uma pandemia.
Na casa dos 60 anos, Fausto Caridade é especialmente cauteloso agora que a Covid-19 tem sobrecarregado o cemitério que gere. Foi diagnosticado com um cancro nos intestinos e, no ano passado, foi operado às cordas vocais. O ritmo de trabalho retirou-o do confinamento e é ele quem nos introduz às ruas do Alto de São João. Enquanto caminha, recorda como tudo está diferente. A começar pelas máscaras, que são “como uma parede” que bloqueia o contacto com as famílias: “Nós temos casos de pessoas de certa idade que vêm desabafar connosco e o pessoal arranja paciência”, justifica Fausto Caridade. Mas “a máscara não deixa saber se a pessoa está triste ou a sorrir, se nos dá abertura para uma aproximação emocional ou não”.
Os funerais de indigentes e de quem é enterrado sozinho porque a família não pode comparecer são especialmente “terríveis” para ele. “Parecia que vinha um animal. Não havia ninguém”, descreve Fausto Caridade, para quem qualquer morto deve ter um funeral condigno: “Ver assim [alguém] a ir… É como atirar um corpo à água: já não se pode fazer nada, mas é aquela a última homenagem”.
Ricardo cuida da secção que está a receber os enterros da Covid-19. Um deles foi marcante
É Fausto Caridade quem nos leva até junto de Ricardo Pereira, Tiquinho para os amigos, o coveiro responsável pela secção que está neste momento a ser utilizada para os enterros desde 29 de dezembro. O terreno está constantemente a ser escavado e fechado novamente, tão depressa quanto o alucinante ritmo dos funerais que chegam àquele talhão — cinco enterros em 90 minutos. Mais de 80% das centenas de túmulos ao cuidado de Ricardo são de vítimas da pandemia. Mas um deles marcou-o especialmente, por causa de uma neta, adolescente, que se ajoelhou em prantos junto à cova onde a avó era enterrada, pedindo-lhe desculpa pela sua morte.
“Há cerca de duas semanas foi o funeral de uma senhora idosa e depois de termos colocado a urna na sepultura, no momento em que íamos começar a tapar, uma jovem com cerca de 15, 16 anos que estava próximo ajoelhou-se e começou a chorar e a pedir desculpa à avó. Começou a dizer: ‘Desculpa avó, a culpa foi minha’. E a avó tinha falecido de Covid. Eu parti do princípio que tivesse sido a neta a apanhar o vírus e a contagiar a avó [que terá] falecido devido a esse contágio”.
“Foi um momento marcante porque percebemos realmente que se algumas atitudes tivessem sido tomadas muito antes não teriam dado àquela situação. Eu sou pai, tenho uma menina. E conforme aconteceu àquela rapariga ter apanhado o vírus, podia ter acontecido à minha filha ter passado para mim e para o meu pai ou para a minha mãe. Podia ter tido o mesmo azar”, reflete o coveiro, que escolheu esta profissão em 2015 em busca de maior estabilidade. A pandemia não abalou a crença de ter feito a escolha certa.
Ao contrário do que sente Fausto, para Ricardo os funerais mais difíceis são os que reúnem muita gente — demasiada gente para as regras impostas pelas autoridades de saúde. “É muita gente em sofrimento e, por vezes, não conseguimos fazer o nosso trabalho em condições e descansados”, relata o coveiro. Não é possível relativizar a morte, mesmo ao fim de seis anos a trabalhar todos os dias com ela. Nunca é indiferente, garante Ricardo. Mas aprende-se que não se pode viver o sofrimento dos outros: “Tento não pensar que estou a fazer um funeral. Penso que estou só a fazer o meu serviço”.
Diana é a única mulher coveira no cemitério. Com a Covid-19, tem mais receio de morrer
É um mecanismo de defesa parecido ao de Diana Jesus, a única mulher coveira no cemitério do Alto de São João. Há quatro anos inscreveu-se em três concursos para a Câmara Municipal de Lisboa: um para cantoneira, outro para trabalhar num canil e o terceiro para se tornar coveira. Os dois primeiros, onde depositava mais esperança, não correram bem. Acabou por ser escolhida para trabalhar no cemitério, uma profissão que a mudou pessoal e profissionalmente. “Quando era criança, desejaria algo diferente para mim e nunca pensei que iria desempenhar estas funções. Mas surpreendi-me”, admite.
Antes de ser uma das coveiras a cargo do forno crematório, Diana evitava a todo o custo assistir a funerais: só foi ao do avô porque a mãe a venceu pelo cansaço. “É um acumular de emoções por que eu evitava passar. Olhos que não veem, coração que não sente. Eu sou um bocado assim: prefiro não ver para não sentir”, confessa. “Se calhar é uma coisa de que ando a fugir há tantos anos, se calhar a vida está a pôr-me isto agora em mãos e pode ser uma porta para me descobrir a mim própria”.
No princípio, Diana Jesus não conseguia deixar no trabalho os momentos a que assistia no forno crematório. Vinham-lhe à memória nos momentos de descanso. O tempo trouxe-lhe mais tranquilidade e agora sente que já se habituou àquela vida, mas a pandemia traduziu-se em novos desafios para os coveiros, sobretudo desde que a terceira vaga atingiu o país: não há cremação das ossadas exumadas das campas mais antigas; e todo o horário de trabalho, que teve de ser alargado, é dedicado ao maior número de mortos que a pandemia veio trazer. Em janeiro do ano passado fizeram-se 381 cremações; no mesmo mês de 2021 passaram a 549. De todas elas, 210 foram de vítimas da Covid-19.
Diana sabe dos preconceitos que rodeiam a sua profissão e, apesar de não se deixar intimidar por eles, porque “alguém tem de a fazer”, admite que tem mais medo de morrer desde que se tornou coveira — um medo que se adensou ainda mais desde que a pandemia chegou a Portugal: “Tenho mais receio. Temos cremado mais pessoas com Covid-19, muitas mesmo, e nunca sabemos se pode acontecer connosco. Nesta profissão temos de abrir mais a mente, mas torna-nos mais vulneráveis”.