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Milton Nascimento: “Ganhei muitos amigos, esse foi o meu maior bem”

O compositor e cantor que protagonizou o "Clube da Esquina" dá dois concertos baseados em álbuns históricos dos anos 70. Milton Nascimento atua dia 26 em Lisboa e a 27 no Porto, nos Coliseus.

Agachados, os três amigos improvisam um ponto de partida. Un, deux, e Catherine dispara antes do tempo, Jules e Jim correm atrás, respiração ofegante, ecoa pela ponte a sola dos sapatos, o momento suspenso no tempo da juventude fervorosa. Numa poltrona do Cine Tupi, Belo Horizonte, Minas Gerais, Milton Nascimento está estarrecido com o filme, acompanhado pelo amigo Márcio Borges, uma amizade recente, de tal forma marcante que é naquele instante transfigurada para os corpos em tela. “Foi Marcinho quem me incentivou a começar a compor, antes disso eu só queria saber de cantar e tocar baixo”, confessa ao Observador Milton Nascimento, Bituca para os amigos, e é mesmo de amigos que se faz este universo de canções. “Até que assistimos ‘Jules et Jim’, de François Truffaut, foram várias sessões seguidas das 14h às 22h e, depois disso, fizemos três músicas: ‘Novena’, ‘Gira Girou’ e ‘Crença’. E assim começou tudo.”

Uma pequena explosão, indetetável para as pessoas estranhas ao serviço, ocorre no interior de Milton Nascimento. O cantor de extrema sensibilidade, repleto de silêncios e delicadeza, é atordoado pela espontaneidade do filme, pela perceção inesperada que afinal, mesmo solitário, é de amizades que moldamos o mundo. E assim começou tudo, uma viagem em constante movimento pelo Brasil afora, um grupo de homens foragidos, de olhos pregados na figura calma do amigo Bituca, na voz intransponível do cantor Milton, uma alma de ininterrupta reflexão introspetiva, que precisa de uma multidão para estar sozinho. “O Clube da Esquina só aconteceu por conta da nossa amizade, sem isso, não teria o Clube”, escreve-nos por e-mail sobre uma das bandas mais celebradas da música brasileira. “E acho que, de certa forma, não foi bem uma mudança, mas um novo rumo, sempre movido pela nossa amizade.” Aos 76 anos, inesperadamente, Milton decidiu retornar ao Clube da Esquina, de 1972, e Clube da Esquina II, 1978, que são homenageados em Lisboa, dia 26 de junho no Coliseu dos Recreios, e 27 no Coliseu do Porto.

“Na verdade eu nunca estive certo disso”, garante Milton sobre o sucesso da improvável parceria com Lô Borges, sócio maioritário do Clube da Esquina, dez anos mais novo que o então reconhecido compositor. “Música para mim nunca foi algo planejado, com metas e tal, sempre foi uma coisa que veio de dentro da gente, sempre muito natural, e as coisas foram acontecendo”. Aconteceu primeiro desafiar um amigo, Fernando Brant, de escrever por cima de uma das suas melodias de estranheza dissonante, cheia de falsetes e lentidão, para acompanhar as canções que escreve depois de “Jules et Jim”. O álbum, e a canção do mesmo nome, seria Travessia, onde é concebida esta ideia de uma busca constante por um lugar, um sonho, alcançado pelo caminho de pedra, a soltar “a voz nas estradas”. E é também no Travessia que está “Canção do Sal”, a música que Elis Regina tornou sua, e catapultou o mineiro para a ribalta. Mas, sabemos nós hoje, faltava a esta composição química uma pitada de irreverência, rock displicente, boca de sino e cabelo à solta, faltava convencer a Dona Maricota a largar das saias o filho de 17 anos, faltava Lô Borges.

[“Travessia”:]

Não, Lô Borges não vem para Portugal, não estamos em 1972, vem Zé Ibarra, um miúdo de 2019, da banda Dônica, para cantar a balada adolescente “Paisagem Da Janela” e outras tantas, certamente não precisou de recorrer a muitos ensaios, qualquer brasileiro carrega este som, esta imagem, do Clube da Esquina. A principal imagem é clara, do fotógrafo Cafi, capa icónica do disco, duas crianças sentadas na terra batida, uma negra e uma branca, a celebração da amizade na ruralidade de Minas Gerais, o encontro de dois universos musicais, Milton Nascimento e Lô Borges. “É como eu disse antes, o Clube só aconteceu por conta da nossa amizade, dos nossos encontros, da nossa música e, principalmente, de tudo aquilo que a gente sonhava.”

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E o sonho tem um lugar, uma esquina, entre duas ruas com nomes proféticos, Divinópolis e Paraisópolis, em Belo Horizonte, e seria mesmo um paraíso divino, uma conceção que extrapola a sua presença física, hoje marco turístico, e serve de metáfora para uma encruzilhada de pessoas que se regem pela amizade. Milton, por exemplo, praticamente nunca esteve nesta esquina, e mesmo assim gravou “Clube Da Esquina” logo em 1970, e “Para Lennon e McCartney”, duas canções que advinham os anos seguintes e que são parte do repertório desta digressão nostálgica que chega agora a Lisboa e Porto. “Os Beatles não são importantes somente para o Clube”, diz, acrescentando que, “eles são importantes para o mundo todo. Imagina a música sem os Beatles?”. A união improvável de Lô e Milton, dos Beatles e do Brasil sacro e esclavagista, seria melhor resumida num verso de “Para Lennon E McCartney”: “Sou de mundo, sou de Minas Gerais”.

[“Para Lennon e McCartney”:]

“Minas Gerais é um estado riquíssimo musicalmente, e essa tradição vem desde os primeiros anos. Temos uma cultura popular muito forte, os tambores de Minas são uma herança dos escravos que perdura até os dias de hoje em várias regiões de estado.”

O canibalismo tropicalista é empregue de forma suave, sem uma intelectualização desnecessária, sustente pela figura pilar de Milton, um cantor de delírios vocais sempre com os pés na terra. O gravador ambulante regista todos os sons que o rodeiam e, ao mesmo tempo, ou talvez por isso, é um estrangeiro na sua própria terra. “Eu sempre ouvi de tudo desde criança. Fui criado em Três Pontas, sul de Minas Gerais, e a casa de meus pais adotivos, Lilia e Zino, sempre foi muito musical. Desde pequeno ouvi muita música do mundo inteiro, desde clássica, americana, espanhola, cubana, francesa, norte-americana.”

“Aos 13 anos de idade eu tinha um programa de rádio em Três Pontas, que se chamava 'Você pede a música'. E foi mais ou menos nessa época que eu descobri Ray Charles, e isso salvou minha vida. Através de Ray Charles descobri que os homens podiam cantar.”

A melodia é remédio santo para recomeçar a vida numa cidade nova, após uma infância onde se sucedem tristezas, assombrada pela morte e pobreza. “Aos 13 anos de idade eu tinha um programa de rádio em Três Pontas, que se chamava ‘Você pede a música’. E foi mais ou menos nessa época que eu descobri Ray Charles, e isso salvou minha vida. Através de Ray Charles descobri que os homens podiam cantar”, revela, a lembrar ainda que não se desprendia do seu Brasil, “também ouvi muita música brasileira dos anos 1950, e gostava muito de uma cantora chamada Ângela Maria.”

E ainda, anos depois, o resto do continente, a preocupação de expressar não só a brasilidade, mas também de apresentar o passaporte de cidadão da América Latina, que resultaria em “Cruzes” e “San Vicente”, como cantou Chico Buarque no segundo disco do Clube, criar uma “Cancion Por La Unidad De Latino America”. “A música latina, na voz da chilena Violeta Parra, e dos cubanos Silvio Rodriguez e Pablo Milanês, e da minha argentina Mercedes Sosa, isso eu só fui conhecer já nos anos 1970.” Eventualmente, claro, abandonou a pacata Três Pontas, entregou-se rumo à capital do Estado, Belo Horizonte. A nostalgia, a perda de um local ou de um momento, seria outro conceito chave no Clube da Esquina, ou como nos diz Milton: “Três Pontas não sai de mim, e eu não saio de Três Pontas”.

[“San Vicente”:]

“Cheguei a Belo Horizonte em 1962, vindo do sul de Minas Gerais. Eu tinha vinte anos e ia fazer vestibular para entrar na faculdade. Eu trabalhava como datilógrafo no centro da cidade e passei a frequentar o ponto dos músicos na cidade. O primeiro Borges que conheci foi o Marilton, depois vieram Márcio e Lô.”

A estrada do Clube da Esquina começa no dedilhar de “Tudo Que Você Podia Ser”, o primeiro movimento de hipnose que, se não tivermos cuidado, faz-nos cair no abismo deste álbum de 21 canções inebriantes. E havia razão para saltar fora desta viagem, este canto da sereia não é preferível à realidade crua de uma ditadura, e ainda hoje, a qualquer amargura que carregamos? “Muitos cidadãos, inclusive artistas importantes, são abordados, presos, exilados ou forçados a deixar o país”, descreve Márcio Borges na autobiografia, a contextualizar o clima que concebeu o disco em 1972. “Acho que cada artista reflete sua própria época, e o Clube da Esquina, de certa forma, é um retrato daquele tempo”, concorda Milton.

Os tempos tenebrosos são particularmente evidentes na incapacidade de travar o caminho pela estrada fora, na solidão que está em cada paragem, real ou inventada. Nesta digressão, Milton dedica-se ao piano em “Cais”, o mantra que inventa um cais e sugere esta capacidade messiânica do disco:

“Para quem quer me seguir
Eu quero mais
Tenho o caminho do que sempre quis”

“Geralmente eu quando faço a música já sei para quem devo entregar a letra, e com ‘Cais’ também foi exatamente assim. Meu parceiro nessa música é um amigo que eu conheço desde 1967, Ronaldo Bastos, e foi ele quem fez essa letra.”

[“Cais”:]

Um dos segredos é esta perspicácia e sensibilidade de Milton ao escolher os parceiros, como o letrista Márcio Borges, seguido de Fernando Brant e Ronaldo Bastos. Antes de ser um dos grandes letrista da MPB, Ronaldo era membro integrante da Nuvem Cigana, os poetas marginais da contracultura carioca que deram nome a outra canção que faz parte deste repertório. “Se você quiser eu danço com você no pó da estrada”, começa “Nuvem Cigana”, a prosseguir uma das temáticas deste álbum conceito, a vontade de caminhar com o sol na cabeça, longe da sombra da ditadura. “Sempre quando se é jovem, a liberdade é uma das coisas que a juventude mais anseia”, justifica Milton. “E com a gente não era diferente. Imagina só: Lô Borges tinha apenas 17 anos quando nos reunimos para fazer o Clube.” Os passos marchantes destes companheiros estão em “Nada Será Como Antes”, ou melhor, em “Clube Da Esquina Nº 2”, melodia de pé manso no acelerador e mão fora da janela, cabelos ao vento.

Para o grande motivador desta brincadeira, existe um ganho que se sobrepõe sempre aos restantes. “Ganhei muitos amigos, esse foi o meu maior bem”, garante, a rematar que, estas canções serem hoje parte estruturante da vida do povo brasileiro, “é uma emoção que não sei nem definir direito.”

Em “Um Gosto de Sol”, a primeira parte é neste mesmo carreiro de passagem, até ceder suavemente ao sonho, aos arranjos que dão paisagem a esta viagem, trabalho sublime de Wagner Tiso e Eumir Deodato, ainda hoje a inspirar muito boa gente. E é fácil esquecer o multi-instrumentista Beto Guedes, que é responsável pelos rumos progressivos de muitas canções (veja-se “Cravo e canela” ou “Lília”), ou o toque delicado do Toninho Horta e a assertividade de Robertinho Silva. Os sócios do Clube, dos arranjos à percussão, transferem a sede para um pouso balnear, em frente ao Rio de Janeiro. “Depois que estava mais clara a ideia de fazer o disco do Clube, decidi alugar uma casa na praia de Mar azul, em Niterói (RJ), e fomos para lá Lô Borges, Beto Guedes e eu”, conta, a recordar no entanto que, “tinha gente na casa o tempo todo, os letristas, os músicos, os produtores, nossa família. E ali a gente passou alguns meses, compondo, tocando, enfim, fazendo o clube”.

Em 1972, Clube da Esquina é um momento de rutura na música popular brasileira que prossegue até estes dias, e quem diria, sempre sem traçar qualquer plano grandioso, a turma volta a reunir-se despretensiosamente, no Clube da Esquina II, em 1978. “Não digo que o Clube estava inacabado, mas a gente precisava viver isso nos palcos novamente”, justifica-se. A esta altura de campeonato, depois do renascimento com o Clube, Milton Nascimento já é Milton Nascimento, parceiro de ilustres como Wayne Shorter, com pelos menos dois álbuns extraordinários no currículo. Esses dois álbuns, Minas e Geraes, também são parcialmente revisitados nesta digressão, em “Ponta De Areia” e “Paula e Bebeto”, assim como o Clube da Esquina II, nas lacrimosas “Nascente” e “Mistérios”.

[“Mistérios”:]

Feitas as contas, este Clube da Esquina já arrecadou muitos cifrões e corações. Porém, para o grande motivador desta brincadeira, existe um ganho que se sobrepõe sempre aos restantes. “Ganhei muitos amigos, esse foi o maior bem”, garante, a rematar que, estas canções serem hoje parte estruturante da vida do povo brasileiro, “é uma emoção que não sei nem definir direito”.

 
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