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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Mitos, lendas, espíritos e outros mundos. Uma visita guiada a Sintra assombrada

Fizemos uma caminhada noturna guiada pelos locais misteriosos da Serra de Sintra. Não encontrámos fantasmas, mas contamos-lhe as lendas e os mitos dos locais da serra "assombrada".

Pouco antes das dez da noite de sábado, o pequeno pub medieval que a Casa do Fauno gere em plena Serra de Sintra vai servindo cervejas a clientes equipados com fatos de treino, coletes refletores e sapatilhas desportivas. Uns levam mochilas de montanhismo mais carregadas, outros apenas uma garrafa de água da mão.

O local é escuro, rodeado de floresta, e apenas uma fogueira e alguns candeeiros ao estilo medieval dão alguma iluminação à esplanada, cheia de mesas toscas de madeira. Os clientes do pub distribuem-se por todo o lado — uns pelas mesas, outros sentados no chão de pedra junto à fogueira, outros junto às árvores e outros ainda no interior do apertado estabelecimento, que dentro de meia hora se prepara para receber um concerto de música medieval.

Mas a maioria está ali para uma caminhada noturna guiada, pelos locais misteriosos da Serra de Sintra, habitualmente associados a mitos e lendas — e lugar de rituais mais ou menos duvidosos para vários tipos de crenças. A iniciativa chama-se “Sintra Assombrada” e é promovida semanalmente pela associação cultural Casa do Fauno, que se dedica a proteger a herança cultural da Serra de Sintra. Desta vez, inscreveram-se cerca de 40 pessoas — todas portuguesas.

As caminhadas eram feitas com recurso à luz dos candeeiros de luz ou das lanternas que os participantes traziam (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

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Cada um chega ali com motivações distintas. Há os crentes no esoterismo, que vão em busca de verdadeiras experiências espirituais. Querem ver, ouvir e sentir alguma coisa nos locais conhecidos como assombrados. E depois há os mais céticos, que vão pela curiosidade, apesar de levarem alguma abertura para experiências sobrenaturais. É o caso de Rodrigo Alves e Patrícia Santos, casados, ambos de 27 anos e naturais de Lisboa.

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“Viemos principalmente porque queríamos descobrir algumas das supostas histórias assombradas de Sintra. Pessoalmente, não tenho estas crenças, mas sinto sempre curiosidade”, diz Rodrigo. Patrícia também não esconde a curiosidade em relação ao sobrenatural. “Sintra é muito mística e eu gosto de tudo o que tenha a ver com lendas, histórias… Vimos com esta expectativa de ouvir as lendas e até talvez de sentir alguma coisa. Mas a verdade é que não acreditamos muito nessas coisas.”

Mas há quem venha para uma experiência espiritual mais profunda, como Paulo Moreira, 42 anos, que diz acreditar “que há energias à nossa volta”. Por isso, veio não só pela caminhada mas também “pela experiência mística”. “Naturalmente que venho com aquela expectativa do ‘será que se vai ver alguma coisa?’”, admite.

De dia guia turística, de noite guia espiritual

Minutos antes da hora marcada, chega Maria João Martinho, a guia turística que orienta estas caminhadas. Maria João vem apressada, com um bastão de caminhada, uma mochila e um colete refletor já vestido, e dirige-se ao interior do pub. Pelo caminho, passa pelas várias mesas da esplanada e pergunta: “Vieram para a caminhada?”. À resposta afirmativa, dá a primeira indicação, apontando para a fogueira: “Vamos começar a juntar-nos ali em baixo para o briefing, ok?”

Maria João foi das primeiras guias turísticas em Sintra e a primeira a começar a angariar grupos para visitas guiadas na estação de comboios da vila (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

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Maria João foi das primeiras guias turísticas em Sintra e a primeira a começar a angariar grupos para visitas guiadas na estação de comboios da vila — hoje, chegar de comboio a Sintra durante o verão implica passar por dezenas de guias turísticos empunhando cartazes, mapas e fotografias do Palácio da Pena. “Eu na altura não tinha cartaz. Só há um ano ou dois é que arranjei um cartaz, porque toda a gente tinha”, brinca Maria João, destacando que tem “facilidade em angariar clientes”.

“Tenho crenças e uma relação com o espiritual, mas sou uma pessoa muito prática no meu dia-a-dia e nas visitas que oriento”

Durante o dia, anda por Sintra a mostrar o Palácio da Pena, a Quinta da Regaleira ou o Castelo dos Mouros aos estrangeiros. Mas é ao sábado à noite que Maria João faz aquilo que verdadeiramente a apaixona: mostrar os mistérios da Serra de Sintra aos visitantes. “Sempre fui uma apaixonada pela Serra de Sintra. Andei cá no colégio do Ramalhão, na terceira e na quarta classe. Apesar de ser de Lisboa, a minha mãe vinha cá visitar-me a meio da semana e íamos até ao hotel dos Seteais lanchar. Foi aí que começaram as minhas primeiras explorações pelos jardins”, recorda. A vida trocou-lhe as voltas e Maria João acabou como produtora de informação na RTP, durante quase duas décadas.

Foi em 2007 que se mudou em definitivo para Sintra e começou a trabalhar no turismo. Ainda passou pelos Parques de Sintra – Monte da Lua antes de, em 2013, criar a sua própria empresa de turismo. Antes, juntou-se à Casa do Fauno para arrancar com o projeto das caminhadas noturnas pelos mistérios esotéricos da Serra. “As pessoas têm a mania de só acreditarem naquilo que veem e eu acho que isso é limitativo. Acho que há imensas dimensões, imensos mundos. Mas não vejo isso naquela perspetiva de dizer ‘ai, que horror, está ali um fantasma’. Não. Tenho uma relação mais normal com estas ideias místicas”, esclarece.

“Tenho crenças e uma relação com o espiritual, mas sou uma pessoa muito prática no meu dia-a-dia e nas visitas que oriento”, resume. O pragmatismo de Maria João é evidente logo no pequeno briefing em que apresenta a caminhada aos visitantes, em torno da fogueira que ajuda a dar um ar medieval ao espaço, composto por pequenos edifícios de pedra e rodeado por floresta por todos os lados. “Vamos em fila, eu vou à frente e o Rafael vai atrás. Temos rádios para comunicarmos e vamos avisando se vem algum carro ou não, ok?”

É logo ali, depois das recomendações de segurança, que Maria João explica o propósito da caminhada desta noite. “Vamos fazer um percurso mais urbano, passando por várias lendas e várias histórias de assombração. O roteiro chama-se ‘A Viagem do Cocheiro’, porque vamos passar num local onde costuma ser visto um cocheiro, com uma cartola, do século XIX, a passar com a sua charrete”, explica a guia. Sobre o tal cocheiro, há poucos detalhes. Apenas se sabe que será avistado de tempos a tempos, por céticos, a passear-se pelo interior da vila de Sintra.

A primeira paragem é logo ali, junto ao portão da Quinta dos Lobos, onde está instalada a Casa do Fauno. Do outro lado da rua, começa a Quinta de Schindler, que se acredita estar “assombrada”. Porquê? Porque “em tempos alguém foi assassinado aqui, e o seu corpo foi escondido na quinta”. Por isso, “a alma de quem foi assassinado não descansa em paz”, explica Maria João. “Mas vamos descer até à Quinta dos Alfinetes para mais uma história”.

“Queria pedir-vos que fizessem silêncio, por favor”

O grupo faz-se à estrada. À frente, seguem os mais empenhados em perceber as histórias de assombração dos vários locais. Vão em silêncio, muito atentos ao que Maria João vai explicando aqui e ali. Mais para trás, os curiosos, em pequenos grupos, respeitam menos o silêncio. Vão conversando e fazendo piadas, mas a cada paragem procuram chegar-se à frente para ouvir as histórias.

Quinta dos Alfinetes + Quinta de Schindler

Sobretudo utilizada, hoje em dia, como espaço para casamentos e outros eventos, a Quinta dos Alfinetes data do século XVII e é uma das grandes propriedades na orla da Serra de Sintra. O nome remonta à primeira proprietária do terreno, que comprou a quinta com as poupanças que conseguiu amealhar: quando questionada pelo marido sobre como conseguiu adquirir a propriedade, respondeu: “Com os meus alfinetes!”

A história da magia alegadamente feita àquele noivo, que hoje “assombra” a quinta, foi contada a Maria João pela proprietária atual do terreno. “Foi também ela que me contou a história da Quinta de Schindler. Disse-me que corria essa história ali pela vizinhança, referindo-se também à Quinta do Castanheiro -- o seu proprietário também teria conhecimento da história do corpo”, explica.

Uns duzentos metros mais abaixo, o grupo para e Maria João organiza um pequeno círculo. “Estamos aqui junto à entrada da Quinta dos Alfinetes, que tem uma história de assombração recente”, destaca. O local, iluminado apenas por três candeeiros de rua, é propício a este tipo de histórias — neste caso, a de um noivo que foi alvo de uma magia de morte no dia do seu casamento. Um pássaro terá aparecido degolado no interior da quinta, no dia em que o espaço recebeu a boda. Ao lado da ave, um pequeno papel com a palavra “noivo”. “Mas ao que parece, tudo decorreu normalmente com o casamento. Só que dois ou três meses depois, o noivo morreu. E uma pessoa que veio às minhas caminhadas, e que era médium, disse-me que o espírito desse noivo a acompanhava esta parte da caminhada”, conta Maria João.

O silêncio invade aquela pequena multidão reunida em torno de Maria João, mas, em dois segundos, a guia desfaz a tensão que se criou com uma piada: “Bom, vamos então seguir aqui pelo caminho dos Castanhais”, diz, apontando para uma entrada de um caminho escuro como breu, em terra batida. É talvez o local mais assustador do percurso, mas Maria João prefere a via mais prática para explicar os passos seguintes: “Atenção, que da última vez que fizemos este caminho encontrámos uma cobra. Ela escondeu-se, mas não sei se alguém tem medo… Pode acontecer”.

Ligam-se as lanternas e o grupo continua pelo meio da escuridão. A meio do caminho, Maria João tem de interromper a marcha. “Queria pedir-vos que fizessem silêncio, por favor. É fundamental para estarmos aqui na natureza.” E prossegue o caminho.

Os cerca de 500 metros de profunda escuridão e isolamento daquele caminho apertado agradam a Paulo Moreira. “Não é medo, é mesmo o facto de gostar de estar mais embrenhado na natureza, longe da civilização”, diria mais tarde, já no regresso. “Foi o momento de que mais gostei.”

Uma breve paragem mais à frente para detalhes históricos sobre a Quinta da Princesa, ao fundo do caminho dos Castanhais, e o grupo começa a dar sinais de cansaço. “Esta é a maior subida da noite, não se preocupem”, descansa-os Maria João. Dos jardins da Quinta da Princesa haverá um túnel secreto que liga diretamente ao poço iniciático da Quinta da Regaleira. Será? A guia não garante. Mas, pelo sim pelo não, nem especifica o local. “Não digo, porque nunca se sabe o que alguém pode tentar fazer.”

Quinta da Princesa

A verdade é que a Quinta da Princesa não é um local consensual, nem mesmo hoje. A curiosidade de Maria João foi despertada por um anúncio de uma imobiliária “que se referia à quinta como sendo do século XVI e tendo pertencido a D. Fernando II, que a adquiriu para oferecer à sua amante, Elise Hensler, a futura condessa de Edla, mas isso é errado. Ela não foi amante de D. Fernando II, foi na verdade a sua segunda mulher”, destaca Maria João, explicando que toda a história que a imobiliária usa para vender o palácio está muito mal explicada.

“O próprio historiador dos Parques de Sintra - Monte da Lua, Nuno Miguel Gaspar, disse que o assunto merecia ser investigado”, recorda a guia, destacando a inexplicável semelhança entre a figura de D. Fernando que existe na porta principal do palácio e as que estão representadas nos pratos de Wenceslau Cifka, expostos no Palácio da Pena.

Mais umas dezenas de metros por umas escadinhas e o grupo começa a aproximar-se novamente do centro da vila. Mas antes há tempo para curiosidades históricas sobre os inúmeros túneis que povoam o subsolo de Sintra. “Alguém sabe o que é esta janela com este gradeamento? É um dos respiradouros dos famosos túneis dos Templários. Sintra está completamente cheia de túneis, que vão dar a todo o lado”, explica Maria João aos visitantes.

Em poucos minutos, a excursão chega ao centro da vila, este fim de semana cheio de turistas a participar no Festival Aura. A invulgar agitação no centro histórico obriga a uma mudança de planos. “Falamos aqui do Palácio Nacional no regresso, e agora seguimos já lá para cima, ok?”, pergunta a guia. “Não se percam agora!” É difícil, e em segundos o grupo de coletes refletores amarelos dispersa-se no meio de centenas de turistas com luzes nas mãos.

É preciso esperar mais à frente, já na calma calçada de Rio de Porto, que o grupo se torne a reunir. “Já está tudo?”, pergunta Maria João através do rádio que traz ao ombro. “Vamos só esperar mais um bocadinho”, diz aos que já estão a formar um círculo para ouvir a nova história. Por ali, nada de assombrações: apenas mais detalhes históricos sobre o centro de Sintra. “Antigamente passava aqui um rio maior, talvez navegável. Por isso é que a calçada se chama Rio de Porto. E havia também muitas casas setecentistas, mas foram destruídas com o grande terramoto. Vamos seguir lá para cima, para a zona onde passa o cocheiro”, explica, despachada.

Segue-se uma caminhada de mais de meia-hora até à avenida Heliodoro Salgado, já para lá da estação de comboios. “Aqui é precisamente o sítio em que costuma ser visto o cocheiro. Tenho um amigo que até é cético e que um dia estava aqui sentado na pastelaria Monserrate e viu passar o cocheiro. Com charrete e uma cartola, tal como no século XIX”, conta a guia. “Mas não sei mais pormenores”, remata, para desilusão dos visitantes.

“Está a ser engraçado, mas sinceramente gostava de ver mais, de ouvir mais histórias assustadoras”, admite Rodrigo Alves, a meio do caminho rumo ao próximo local, supostamente o grande momento da noite: uma casa assombrada. “Vinha com algum entusiasmo de que pudesse acontecer alguma coisa, ver ou sentir alguma coisa, mesmo não acreditando nisso. Mas estou a ver que isto está a ser mais um passeio. De qualquer das formas, é interessante”, sublinha.

Rodrigo Alves e Patrícia Santos vieram pela primeira vez a este tipo de caminhada por Sintra (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

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Também Patrícia Santos revela alguma desilusão com a dimensão esotérica da visita: “Vínhamos com aquela coisa de querer sentir alguma coisa, para passarmos a acreditar, e até agora nada. Mas havemos de explorar sozinhos mais coisas.”

Finalmente o grupo chega à casa que estará assombrada. A guia pede-nos que não identifiquemos, na reportagem, a casa em questão, mas conta a história. “Esta casa tem a fama de estar assombrada. Há uns tempos, uma jornalista conhecida esteve para comprar a casa. Quando estava para dar o sinal, para avançar com a compra, começou a ter sonhos com uns rituais”, conta Maria João. Depois, um especialista visitou o local e diagnosticou o problema: aparentemente, aquele local era “estava cheio de energias negativas”. Conclusão: a casa continua por vender. E há relatos de turistas que tiraram fotografias à casa que depois apareceram “cheias de focos de luz a vir das janelas, que estavam fechadas”.

Para Paulo Moreira, foi aqui que o passeio ganhou sentido. “Quando nos aproximámos da casa, comecei a sentir uma sensação estranha. Depois, quando ela começou a explicar a história da casa, então percebi logo a sensação que estava a sentir”, atira Paulo. Mas que sensação, perguntamos. “É uma sensação estranha, não consigo explicar, mas nota-se uma energia negativa ali. Enquanto noutros locais a Serra transmite uma paz, ali não”, descreve.

Paulo Moreira, um dos participantes destas caminhas por Sintra à noite (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

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Maria João ainda pergunta se alguém quer partilhar alguma experiência ou alguma sensação. Ninguém se oferece. “Depende dos grupos. Já me aconteceu ter gente que quer partilhar, mas na maioria das vezes as pessoas não se sentem muito confortáveis a falar destas coisas”, explicaria depois ao Observador. Sendo assim, é hora de regressar, novamente rumo ao centro da vila.

“Atenção, que também há pessoas estranhas que vêm às caminhadas”

Antes de chegar à Casa do Fauno, há ainda tempo de parar no antigo hospital de Sintra e no Palácio Nacional, para as duas últimas histórias de assombração da noite. Primeiro, no hospital, que funcionou até à década de 1980. “Nessa altura, quando houve umas obras para transformar o hospital numa clínica privada, os trabalhadores encontraram uma parede oca nas caves, junto à zona onde se faziam as radiografias. Deitaram a parede e o que encontraram fez toda a gente fugir…”, conta Maria João, sem prolongar o suspense durante muito tempo: “Encontraram um bispo mumificado sentado num cadeirão”. A principal explicação? Talvez tenha sido contaminado com a peste e emparedado para não contagiar ninguém.

Hospital

Situado mesmo ao lado do Palácio Nacional de Sintra, o antigo hospital do Santo Espírito é uma das instituições medievais que viriam a dar origem à Santa Casa Misericórdia de Sintra. As instalações hospitalares funcionaram até à década de 1980. A história do alto dignatário da Igreja encontrado nas paredes do edifício circula desde que na altura o encarregado da obra procurou Adriana Jones, presidente da Associação de Defesa do Património de Sintra, para lhe revelar a descoberta.

“Foi ela quem me contou pessoalmente a história. Não foi no tempo do atual provedor, Lacerda Tavares, nem no tempo do pai dele, mas no tempo do provedor anterior aos dois. Era uma parede por detrás da salinha dos raios-x, e estava lá um bispo, ou alto dignatário, mumificado, vestido de vermelho e sentado num cadeirão, e essa parede voltou a ser fechada”, explica ao Observador Maria João Martinho, que tem dedicado os últimos a investigar as lendas e as histórias de Sintra junto de diversas fontes.

Logo ao lado, o Palácio Nacional também guarda algumas histórias que muitos consideram ser de outro mundo. Nas cozinhas, há quem diga que ainda se ouvem os choros e gritos das crianças e ajudantes de cozinha que lá morreram devido à inalação de fumos. E as duas grandes chaminés, construídas posteriormente para ajudar na extração dos fumos, parecem um grande par de binóculos virado para o interior da Terra, que permite ver os mundos intraterrenos.

“Atenção, há muitas pessoas ligadas a este mundo mais espiritual que também são desequilibradas, e eu tenho noção disso”

Mas isso é outra história, e Maria João aproveita o momento para fazer publicidade a um outro roteiro. “Há quem diga que em Sintra há uma entrada para o mundo lendário de Agartha, que existirá no interior da Terra”, conta a guia, para abrir o apetite aos visitantes. “Na caminhada da próxima semana, passamos por vários locais ligados a esse mito.”

Palácio Nacional

Originalmente um antigo paço muçulmano, o edifício que é hoje o Palácio Nacional de Sintra foi conquistado por D. Afonso Henriques logo em 1147 e tornou-se num dos primeiros palácios da coroa portuguesa. Ao longo dos séculos, sofreu diversas intervenções, que lhe deram o aspeto que tem hoje. Mas é do reinado de D. Afonso VI, no século XVII, que vem a história que hoje lhe dá uma dimensão mais sombria. Doente e muito fragilizado desde a infância, o rei não conseguiu ter filhos e uma conspiração do seu irmão, Pedro, acabou por afastá-lo do trono em 1667.

Afonso viveu durante cinco anos exilado na ilha Terceira, Açores, até que uma nova conspiração o trouxe novamente para Lisboa. Ao chegar, o rei deposto foi levado para o Palácio Nacional de Sintra, onde ficou preso durante nove anos, num quarto que hoje tem o seu nome. Viria a morrer em 1683, provavelmente devido a um envenenamento. O seu irmão, que estava como regente desde a abdicação, subiu definitivamente ao trono e tornou-se rei de Portugal, D. Pedro II.

Hoje, diz-se que ainda é possível sentir a raiva de D. Afonso VI, que morreu em sofrimento, naquele quarto do palácio. Em 2013, por exemplo, a companhia de teatro Utopia organizou uma peça intitulada “Conspiração no Palácio”, precisamente sobre esta conspiração que acabou com o afastamento de D. Afonso VI. Maria João Martinho conta que por várias vezes, durante os ensaios dessa peça, os atores presenciaram episódios inexplicáveis - uma atriz ficou com um problema numa perna, outro cortou-se nuns vidros, foi “uma série de episódios sem explicação”, porque provavelmente estariam “a mexer com as energias do local”, diz. “Isto foi-me contado pelo próprio encenador, Nuno Vicente”, garante ao Observador.

A caminhada termina na Quinta do Relógio, supostamente assombrada porque o seu dono fez fortuna com os escravos no Brasil. Já é uma da manhã. “Ter sido muito pela vila tirou algum do misticismo”, lamenta Paulo. A opinião é partilhada pela maioria das pessoas que participaram e talvez por isso a pergunta que mais se ouve naquele grupo é: “Para a semana a caminhada é no meio da serra?”. “É”, responde Maria João. “Há dois percursos pela serra, um mais puxadinho e outro mais soft. Para a semana é o mais soft”.

De regresso à Casa do Fauno, Maria João ainda nos explica melhor as suas caminhadas místicas. “Hoje correu bem, o tempo estava ótimo. Mas eu faço isto o ano todo. Mesmo que esteja mau tempo”, destaca. E tem sempre lotação esgotada. “Já cheguei a ter 50 ou 60 pessoas numa caminhada, mas agora a Casa do Fauno está a tentar colocar limites. À volta de 30 no máximo, para não ir tanta gente ao mesmo tempo e não se tornar confuso. Hoje eram 40.” E são sempre portugueses. “Os turistas não gostam tanto disto, querem é ver o Palácio da Pena. Quem gosta de vir aqui são os portugueses, que já ouviram falar dos mistérios em torno da Serra de Sintra e querem descobrir mais”, conta a guia turística.

Quinta do Relógio

O grupo despede-se à porta da quinta onde se diz que a Rainha D. Amélia, esposa de D. Carlos I (morto no regicídio de 1908), ainda aparece, quando a noite de lua cheia bate com o 31 de outubro. É que foi naquela quinta que o casal real passou a noite de núpcias - “ela talvez goste de voltar ao lugar onde foi tão feliz”, explica Maria João. “Foi Miguel Ribeiro Ferreira, último proprietário da quinta antes de esta ser vendida à família sueca Berglung em 1998, que me contou a história da D. Amélia”, sublinha a guia.

É preciso recuar ao século XVIII, altura em que a quinta foi comprada pela primeira vez a um padre jerónimo, para conhecer as origens da propriedade. O nome vem de uma grande torre de relógio construída por um milionário que adquiriu a quinta mais tarde. A enorme torre, equipada com vários sinos, dava o sinal de hora a hora com diferentes melodias e tornou-se no principal símbolo da quinta.

Mas a má fama da quinta só chegaria mais tarde, em meados do século XIX, quando Manuel Pinto da Fonseca, um traficante de escravos, comprou o terreno. Foi este empresário o responsável pela construção dos edifícios que hoje compõem o complexo. O rei de Portugal, D. Pedro V, chegou a recusar-se entrar na quinta, justificando que não entraria num local onde corria o sangue dos escravos inocentes. Hoje, é a tradição popular em Sintra que perpetua a ideia de que há energias negativas no local, e a quinta é vista como “assombrada” por preservar ainda a memória da escravatura.

Mas nem tudo são rosas e já aconteceram coisas verdadeiramente assustadoras nestas iniciativas. “É que, atenção, há muitas pessoas ligadas a este mundo mais espiritual que também são desequilibradas, e eu tenho noção disso”, adverte. “Já me aconteceram coisas de que tive receio. Gente que vai atrás de coisas ligadas ao diabo ou a espiritismos negros. Gente que vem às caminhadas para conhecer sítios para depois
fazer rituais satânicos. Há pessoas estranhas que vêm às caminhadas”.

Silêncio invade aquela pequena multidão reunida em torno de Maria João, enquanto a guia explicava o porquê daquele local estar no roteiro (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

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Maria João já encontrou por diversas vezes objetos ligados a rituais satânicos na Serra de Sintra. “Galinhas mortas, cabras… Já se fizeram muitos sacrifícios aqui na Serra. Agora até está mais calmo, porque há muita vigilância, quer com guardas quer com militares, mas eu até já cheguei a desmanchar rituais que encontrei no chão”, recorda.

“A serra para mim é sagrada. Sempre foi considerada um lugar sagrado, e é por isso que quase não há vestígios de povoação na serra, tirando o Castelo dos Mouros, os capuchos e a ermida de Santa Eufémia, e outros lugares pequenos. E depois a forma como cada um a vive é de cada um. Acho que tem uma energia muito positiva e por isso é que não gosto que para aqui venham com essas coisas satânicas”, lamenta Maria João.

Na segunda-feira seguinte, Maria João regressa à estação de comboios de Sintra para angariar mais grupos de turistas que queiram visitar a vila. Mas regressa já a contar os dias que faltam para o próximo sábado à noite, momento em que orienta mais uma caminhada pelos locais “assombrados” da Serra de Sintra. “Depois de fazer uma caminhada na serra, chego a casa ao fim do dia e parece que tenho mais energia do que tinha antes. Não sei porquê. Só sei é que a minha relação com a Serra é uma relação muito mística.”

Os participantes, esses, regressam aos carros com um misto de sensações. “Valeu a pena. Não vi nada de místico como inicialmente achei que iria ver, mas foi extraordinário conhecer as histórias ligadas aos locais. Mesmo sendo daqui, não conhecia a maioria destas histórias”, conta Paulo Moreira. Rodrigo Alves também avalia positivamente a experiência. “De vez em quando venho aqui passear, mas não conhecia a vila. Foi muito bom conhecer os sítios e as histórias mais ou menos estranhas que estão associadas a estes locais”, destaca.

No final, todos querem dar beijinhos a Maria João e agradecer pessoalmente a caminhada. “Venham também na próxima semana, se quiserem”, diz a guia. “É um prazer que eu tenho”, explica-nos. “Gosto muito da Serra de Sintra, é muito especial para mim, e por isso gosto imenso de mostrar os segredos dela aos outros.”

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