Um chega para lá para mostrar quem manda. Ou uma “infantilidade” de todo o tamanho. De forma surpreendente, Luís Montenegro e Pedro Passos Coelho terminaram a semana a travar-se de razões a propósito da eutanásia. Com o líder social-democrata a desdobrar-se em recursos para tentar impor um referendo à despenalização da morte medicamente assistida, o antigo primeiro-ministro apareceu em público a dizer que o referendo era má ideia e que o PSD devia prometer, desde já, reverter a lei assim que chegar ao poder. Montenegro não gostou e cortou a eito com duas palavras: “Discordo completamente”.
Dependendo de quem olha para esta estranha troca de argumentos entre os dois – estranha porque pública e particularmente acrimoniosa –, o caso presta-se a várias leituras. Entre quem conhece bem Luís Montenegro jura-se a pés juntos que não houve qualquer tentativa de enviar um recado ou em passar uma mensagem subliminar. No entanto, também se reconhece o óbvio: o artigo de Pedro Passos Coelho, no Observador, não era particularmente simpático para Montenegro; e era importante marcar uma posição.
De semblante visivelmente carregado, o líder social-democrata, que sempre se assumiu como herdeiro de Passos, não se limitou em notar que discordava; disse, reforçou e repetiu. “Eu discordo de Pedro Passos Coelho. Sou muito direto. Discordo completamente da posição de Pedro Passos Coelho. Discordo pelo facto de ele discordar da realização de um referendo sobre esta matéria. Discordo porque a posição dele é muito fechada. Embora eu seja tendencialmente contra, não tenho uma posição tão fechada como ele tem.”
Por quatro vezes, Montenegro negou Passos. Processo de emancipação em curso, portanto. Aliás, o que mais incomodou a liderança social-democrata foi o momento escolhido por Pedro Passos Coelho. Aníbal Cavaco Silva, por exemplo, manifestou a sua opinião no final de novembro, ainda antes de Montenegro anunciar um pedido de referendo à eutanásia.
Passos, no entanto, decidiu vir a terreiro quando o PSD já se debatia com as restantes bancadas parlamentares para tentar votar uma proposta de referendo. E Passos fê-lo desconstruindo os argumentos usados por Montenegro e amarrando o partido a uma possível reversão da lei.
O líder do PSD, que já estava numa posição delicada graças aos avanços e recuos do referendo à eutanásia, não gostou. Com a agravante de que viu André Ventura atirar os foguetes e apanhar as canas com as declarações de Passos, colando-se ao antigo primeiro-ministro.
Por isso, mesmo que se garanta que não existiu o objetivo de atingir deliberadamente Pedro Passos Coelho, ninguém ignora que o momento serviu ao menos para marcar uma posição e passar uma mensagem para dentro e para fora: quem manda no PSD é Montenegro; não Passos.
“Foi uma enorme infantilidade”, lamenta um senador social-democrata que acompanhou de perto a liderança de Pedro Passos Coelho. “Fazer disto uma guerra com o Passos é um erro. Por causa de uma birra? Está a tentar matar o pai. No primeiro grande teste político, Montenegro falhou. E quem saiu reforçado? Pedro Passos Coelho e, claro, André Ventura, que se colou logo a ele”, acrescenta a mesma fonte.
Ao estilo de Fernando Santos
Pior, a querela entre os dois não passou despercebida a quem acompanha de perto a vida interna do PSD. “Pedro Passos Coelho foi muito veemente e Luís Montenegro não achou graça nenhuma”, reconheceu Pedro Santana Lopes, no seu habitual espaço de comentário, na CMTV.
O atual presidente da Câmara Municipal da Figueira da Foz não resistiu, aliás, em dar o passo em frente: “Pedro Passos Coelho está a marcar espaço. Pode ser para as presidenciais ou pode ser [para a liderança do PSD], se isto correr muito mal a Luís Montenegro…”, sugeriu o antigo primeiro-ministro.
No núcleo duro do PSD, ninguém pensa sequer nesta última possibilidade. No limite, e apenas nos bastidores, admite-se que este pode ter sido o tiro de partida de uma possível candidatura presidencial de Passos Coelho. “E é muito bem-vindo”, acrescenta-se. Aliás, o Observador sabe que o sentimento dominante na renovada cúpula social-democrata é um: se Pedro Passos Coelho quiser avançar, terá todo o apoio do PSD.
Sem se atravessar muito — até pela proximidade que tem a Montenegro –, Miguel Relvas também não deixou de criticar a forma como o líder social-democrata geriu o processo. Na quarta-feira, 6 de dezembro, na CNN, o antigo homem forte de Passos concedeu que o PSD “pecou pela forma tardia” com que se apresentou a jogo. “Deveria estar a defender o referendo há um mês”, sugeriu. E isto foi antes do bate-boca com Passos.
Publicamente, no entanto, a ordem é para esvaziar qualquer sinal de tensão. De resto, foi isso que fez Paulo Rangel, primeiro vice-presidente do PSD, no Observador, garantindo que o artigo de Pedro Passos Coelho não era recado algum para a direção social-democrata e que era uma interpretação abusiva das palavras do antigo primeiro-ministro.
Não foi. Em três momentos diferentes, Passos criticou a liberdade de voto concedida aos deputados sociais-democratas, a proposta de referendo apresentada por Montenegro e a falta de uma garantia de que o partido tudo fará para reverter a lei.
“O que desejaríamos era que os partidos que estão contra esta ‘revolução’ de organização da eutanásia se comprometessem transparentemente em lutar pela sua revogação caso venham a lograr conquistar uma maioria de deputados no futuro”, escreveu Passos.
O pedido do antigo primeiro-ministro teve outro efeito: pôs a direita a voltar a falar sobre possíveis alianças e casamentos vindouros, tema que o atual líder social-democrata vai-se esforçando por varrer da agenda política e mediática, mantendo-se ambíguo. Perante o repto, Ventura alinhou; Montenegro não e, mais relevante, atacou abertamente a argumentação de Passos.
“Quis marcar uma distância. Toda a vida foi visto como um passista; teve aqui uma oportunidade para se demarcar”, concede um senador do partido. “E o Passos foi muito chato com ele no artigo. Podia dizer o que disse sem chatear Montenegro, e quis chatear. Tem todo o direito de discordar, mas escusava de o fazer de forma tão desagradável. Montenegro deve ter ficado furioso”, especula.
O mesmo senador social-democrata, aliás, deixa uma imagem curiosa para descrever o embate entre Passos e Montenegro. “O líder do PSD quis responder-lhe à letra: não quis florear. Quis fazer como o Fernando Santos quando disse que estava chateado com o Ronaldo na conferência de imprensa; Montenegro quis mostrar autoridade”, sugere. O selecionador português fê-lo e as coisas acabaram por não lhe correr particularmente bem; resta saber o que acontecerá a Montenegro.
Uma relação com alguns irritantes
Quando chegou à liderança do PSD, Luís Montenegro deixou claro que ia cortar com o legado de Rui Rio. Num aspeto, pelo menos, tem conseguido: apesar da cada vez mais evidente dessintonia com Marcelo Rebelo de Sousa, que se vai escrevendo em vários capítulos, o novo líder social-democrata parece perfeitamente alinhado com quase todos os senadores do partido — algo que Rio não tinha — ou não procurava.
Trata por ‘tu’ Pedro Passos Coelho e Pedro Santana Lopes, é muito próximo de Luís Marques Mendes, consulta com alguma regularidade José Manuel Durão Barroso, já conversou com a insuspeita Manuela Ferreira Leite sobre o partido (da ala rioísta e crítica de Passos) e é muito apreciado por Aníbal Cavaco Silva, que trata com deferência.
Ainda assim, a relação com Pedro Passos Coelho é naturalmente mais próxima. Depois de algum amargo de boca que ficou quando Montenegro ensaiou uma aproximação a Rui Rio – Passos não terá apreciado as manifestações de apoio de Montenegro a Rio no Congresso e depois nas legislativas, considerando-as um erro estratégico e uma cedência taticista – as coisas entre os dois normalizaram-se.
A Festa do Pontal, durante o verão, foi o momento de celebração: ao lado de um esfuziante Luís Montenegro, Passos apareceu e roubou todas as atenções políticas e mediáticas. Depois de um longo hiato, estava consumado o regresso de Passos à vida partidária — ainda que na posição de mero figurante, como fez questão de frisar o antigo primeiro-ministro.
O contacto não ficou por aí. Os dois falam regularmente, por telefone e pessoalmente, encontram-se em vários registos (estiveram juntos no casamento da filha de Miguel Relvas, tal como Luís Marques Mendes, por exemplo) e têm amigos em comum.
Mais recentemente, na apresentação do livro O Governador, em torno da figura de Carlos Costa, os dois estiveram lado a lado, na fila da frente, e aproveitaram o momento para trocar comentários à medida que ia decorrendo a sessão, na Gulbenkian, em Lisboa.
Promovido pela mão de Miguel Macedo (uma espécie de padrinho político), o percurso político de Montenegro está naturalmente associado ao de Pedro Passos Coelho, de quem foi líder parlamentar. Apesar da evidente proximidade que mantêm, o percurso não foi isento de percalços. O momento mais delicado do caminho a dois acabou por chegar à boleia da proximidade de Montenegro a figuras da maçonaria, em particular, o antigo espião Jorge Silva Carvalho, condenado no caso das escutas.
A revelação, pelo Expresso, de que Montenegro tinha ligações à maçonaria (o líder do PSD negou sempre fazer parte, garantindo ter participado apenas num jantar) surgiu quando este era líder parlamentar e membro suplente da Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, Liberdades e Garantias, que investigava, entre outras coisas, o acesso ilegal à lista de chamadas do jornalista do Público Nuno Simas.
Ora, quando o Público revelou que o relatório preliminar da comissão tinha sido despido de alusões negativas à relação da maçonaria com as secretas, todos os olhares se voltaram para Luís Montenegro, que sempre repudiou as alegações.
No entanto, as explicações do então líder parlamentar (ou falta delas), deixaram Passos furioso e Montenegro perto da porta de saída: o então primeiro-ministro chamou Luís Montenegro a São Bento e exigiu explicações; o encontro a dois fez manchete do Expresso e teve ampla repercussão mediática e política. Passos segurara Montenegro, mas o puxão de orelhas em público estava dado.