Neuza Ferreira resistia a aceitar que a sua saúde não estava bem, que havia problemas por resolver. Mas era uma questão de tempo. Em fevereiro de 2021 chegou ao limite e ouviu o diagnóstico: depressão e ansiedade. Meses depois, em outubro, pediu ajuda e entrou na Consulta de Psiquiatria do Estudante Universitário na Universidade de Coimbra (UC), onde estuda no quinto ano de Direito. “Sem acesso a estas consultas, e sob pena de ser dramática, não sei se estaria ainda no curso, na cidade”, diz a aluna de 23 anos. “Ou até nesta vida.”
No início a depressão estava num nível preocupante, a vida a empancar, a cabeça num turbilhão, o corpo sem energia. As consultas ajudaram-na a colocar o que sentia nos devidos lugares, a desmontar e entender as emoções. “Passei de me sentir completamente perdida, com sintomas que pareciam inexplicáveis, para conseguir navegar todos os momentos difíceis e continuar em frente com todas as vertentes da minha vida.” As notas ressentiram-se passado pouco tempo. “O meu aproveitamento académico foi abaixo do esperado, para não dizer horrível. No ano letivo de 2020/2021, e após o começo das consultas [no ano letivo seguinte], não só consegui ter um bom aproveitamento e boas notas, como a minha vida pessoal e social melhorou.”
Wagner Rodrigues Araújo sabe bem o que são essas consultas. Partilha o que lhe aconteceu para, de certa forma, mostrar que é possível sair de um estado depressivo. Teve de recuar anos para perceber o nível a que tinha chegado, o que sentia e o que vivia, o stress e a ansiedade. Morava em São Paulo, Brasil. A filha bebé precisava de cuidados médicos no primeiro ano da vida. Foram tempos complicados, períodos de aperto no peito, preocupações constantes, com repercussões na mente e no corpo. “Atravessávamos a cidade inteira para a levar ao hospital”, lembra. De uma ponta a outra pelo caos do trânsito. “São Paulo é uma cidade muito tensa, muito stressante.” A lidar com um problema de saúde de um ser tão pequeno, um amor maior, esmagado pela angústia e aflição até ficar tudo bem.
Anos depois, em 2017, Wagner veio para Portugal como estudante de doutoramento em literatura e língua portuguesa na UC. A mulher e a filha vieram com ele. “Sem bolsa, com muita dificuldade, os dois primeiros anos foram muito complicados, longe da família. Depois veio a pandemia.” Separou-se entretanto. E entrou num modo depressivo. Em maio de 2022, estava na consulta. “Tinha dificuldades em dormir, andava cansado, irritado, não estava dando mais conta da nada. Quando pensava que estava curado, estava com uma depressão — provavelmente já estava antes e não tinha compreendido isso. Apesar de respeitar a psicologia e a psiquiatria, achei que seria capaz de resolver as minhas questões, seja através da leitura, da meditação, do ioga.” Mas não, não estava capaz e sentia-se frustrado. “É preciso fazer um longo percurso para a gente se entender”, diz ele. Voltou ao passado para entender o presente. “A depressão é um problema sério que afeta muitas pessoas e é preciso ajuda externa.”
Rui, chamemos-lhe assim porque não quer revelar o nome, estava a terminar o curso que escolheu. Aluno deslocado em Coimbra, a cabeça em desassossego, stress difícil de afastar dos dias e das noites. “Os últimos anos foram puxados, aproximava-se o momento de começar a trabalhar, de fazer as coisas no mundo real.” Lembra-se bem, não foi há muito tempo. “Estava num estado mental bastante grave.” Um surto psicótico foi o alerta, a confusão entre a realidade e o que não existia e o que via, ouvia, pressentia. Decidiu procurar ajuda, falaram-lhe da consulta na UC. “Na fase inicial, tinha consultas de psicologia de duas em duas semanas, as de psiquiatria eram mais espaçadas, adequadas às necessidades.” O atendimento era ajustado à medida do seu estado de saúde, do seu processo, a medicação também. Rui tem menos de 30 anos e um diagnóstico de esquizofrenia.
A Consulta de Psiquiatria do Estudante Universitário acontece às quartas-feiras à tarde, das 15h00 às 20h00, no segundo piso do polo I da Faculdade de Medicina da UC, nos serviços médicos da faculdade, em pleno campus universitário, para alunos dos 18 aos 25 anos. Arrancou numa data simbólica, a 24 de março, Dia Nacional do Estudante, em 2015, no âmbito de um protocolo assinado entre a universidade e o então Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), agora Unidade Local de Saúde (ULS) de Coimbra, para a especialidade de Psiquiatria. Uma resposta gratuita. Desde então e até outubro de 2023, segundo os últimos dados, foram atendidos 656 alunos e realizadas 2425 consultas. Oito estudantes já foram internados.
Ruturas amorosas, diretas para estudar, hábitos pouco saudáveis
As perturbações de ansiedade e depressivas são os diagnósticos mais frequentes, cerca de metade, e há casos de doença mental grave, como esquizofrenia e perturbação bipolar, abaixo dos dez por cento. Os alunos chegam de várias formas: por pedido direto, por referenciação dos médicos de família dos centros de saúde, encaminhados pelo serviço de psiquiatria do CHUC, da psicologia e médicos de clínica geral da UC.
Um serviço gratuito, acessível, e que se baseia num modelo de referenciação “stepped care approach”. Devagar. Aos poucos. Sofia Morais, a psiquiatra responsável pela consulta, explica como funciona: a primeira intervenção é feita por uma psicóloga dos serviços da UC que faz uma triagem. Em função da gravidade, o aluno é referenciado diretamente para a Medicina Geral e Familiar, para a Psiquiatria ou para a Psicologia — ou para ambas, para uma intervenção individual ou integração em grupos psicoeducativos. “Não podemos deixar uma jovem com ideação suicida à espera. Esta triagem serve para mobilizarmos rapidamente os recursos, para avaliarmos ou até para internarmos, em último caso.”
Perguntam-se antecedentes médicos, familiares e pessoais, a medicação que o aluno está a tomar, os motivos da consulta, caracterizam-se sintomas, percebe-se qual a intervenção mais premente. Sofia Morais tem mais exemplos. “Um jovem que não gosta do curso onde está, mas até teve boas e não sabe o que há de fazer, pode vir ao psiquiatra que o pode referenciar para psicóloga vocacional. Nem sempre a intervenção médica tem de ser um medicamento, pode ser só uma psicoterapia, pode ser uma consulta de nutrição – está deprimido porque está obeso.” Há várias situações. “Às vezes, uma simples rutura afetiva com o namorado pode ser desastrosa para uma época de exames, pode comprometer o ano se não for resolvida.”
É um contexto particular: saída de casa dos pais, menor suporte familiar, maiores exigências académicas, dificuldade na gestão do tempo, preocupações com a empregabilidade, com o futuro. “Um estudante universitário tem vários fatores de stress nesta idade. É a altura em que deixa a casa dos pais, tem de partilhar casa com outros estudantes, tem de começar a manter relacionamentos com a família à distância, criar novos relacionamentos significativos. Há muita exigência académica, é uma fase da vida onde tem muitos exames, maior necessidade de integração no grupo de pares, dificuldades na gestão do tempo, responsabilidades domésticas”, lembra a psiquiatra.
Há ainda a preocupação com o emprego no futuro. “O último ano é sempre o mais stressante por causa dessa questão, a integração profissional.” Há também a questão dos hábitos pouco saudáveis na alimentação, como não tomar o pequeno-almoço, muita comida de uma só vez, sem vegetais e sem sopa às refeições. Pouca atividade física. Tabaco, abuso de álcool, privação do sono, diretas para estudar. “Tudo isto são fatores de stress no ensino superior e, para nós, médicos psiquiatras, é uma idade de risco porque biologicamente, 75% da doença psiquiátrica começa entre os 18 e os 24 anos.”
É o caso de “Ana”. Tem esquizofrenia, soube-o não há muitos anos. É uma aluna estrangeira que não quer dizer o nome, nem país de origem. Prefere assim, justifica que ainda há estigma à volta da sua doença. Estudante de doutoramento, está em Coimbra há cinco anos, veio em Erasmus durante meio ano, gostou do ambiente académico, acabou por regressar dois anos depois, ainda aprende a falar português que vai treinando nas conversas. Descobriu a doença em Coimbra. “Não fazia ideia que a tinha.”
“Tinha pensamentos muito estranhos, de fazer coisas muito más. Tinha muito medo, muita paranoia, pensamentos muito fortes”, lembra. Chegou a estar internada duas vezes em Coimbra, duas vezes no seu país. A primeira vez tinha 22 anos e foi então que recebeu o diagnóstico, quando estava no CHUC. Procurava a medicação certa, as horas das tomas, tudo certinho para controlar a doença. Chegou à Consulta de Psiquiatria do Estudante Universitário há quatro anos. “Agora sinto que estou acompanhada.”
Doença psiquiátrica, rendimento, absentismo académico
Wagner encontrou tranquilidade nessa consulta que começou a frequentar há dois anos e uns meses.. “Consegui organizar melhor a minha cabeça, dormir e descansar melhor, tomar remédio para a ansiedade.” A descansar a mente e o corpo. “Não estava dando conta de cuidar de mim, mas nunca deixei de trabalhar, nunca deixei de ter ideias. Ter pessoas que nos ajudem a entender a mente e a importância da saúde mental, é uma experiência nova, é uma experiência boa, ajuda-nos a ajustar comportamentos, a melhorar as relações interpessoais.”
Precisava estabilizar e tranquilizou. Wagner está melhor. Escreve livros de poesia, romance, filosofia, história, é jornalista e escritor, tem 13 livros publicados, editor, gestor cultural e criador multimédia, investigador da Faculdade de Letras da UC. O seu último livro chama-se Conhece-te a ti mesmo. Pensamentos e práticas à procura de novas primaveras. “Acho muito importante tratar a mente, tanto quanto o corpo. Por muita informação que tenhamos — e informação é conhecimento —, nem sempre conseguimos juntar as pontas das coisas todas.”
Para Sofia Morais, a intervenção precoce e a acessibilidade, são os psiquiatras que saem do hospital para ir à universidade, são dois pontos fortes da consulta. “Sabemos que há uma grande relação entre doença psiquiátrica não tratada, rendimento e absentismo académico. Por isso, é que este tempo da faculdade é um tempo crítico para intervir, e intervir precocemente, porque uma depressão tratada precocemente, em seis meses pode estar resolvida.” “Se não intervimos precocemente, mais à frente há, muitas vezes, comorbilidades psiquiátricas. Ou seja, o doente além de ter uma depressão, também começa a consumir canábis porque, de repente, deixou de dormir, quando precisa de estudar começa a abusar de anfetaminas”, acrescenta a médica psiquiátrica que usa uma analogia para reforçar esse ponto. “Se quisermos parar o rio Mondego, onde é que o paramos? No Mondeguinho ou na Figueira da Foz? Lá em cima, é muito mais fácil parar uma corrente de água que aí vem, que se prevê enorme.”
Atuar precocemente, nestas idades dos 18 aos 25, reduz atrasos no diagnóstico. “Há uma grande relação entre doença psiquiátrica e insucesso académico. Há vários estudos que o mostram”, adianta Sofia, lembrando pesquisas internacionais que concluem que estudantes com problemas de saúde mental têm duas vezes mais probabilidade de abandonar a universidade e com patologias graves de saúde mental reportam duas vezes mais atraso na progressão académica.
Rui agradece o apoio que teve na consulta. “O acompanhamento foi crucial, fui atendido com atenção, com empatia, a periodicidade foi adequada, os profissionais muito competentes, o apoio foi preponderante.” Foram tempos difíceis que já lá vão. “Para o final do curso, pensava ‘ok, isto é mesmo a sério, tenho de fazer as coisas como deve ser’.” Pensou desistir do curso, valeu-lhe o apoio da família. “Levei algum tempo a recuperar.” Está a trabalhar na área do curso que terminou. “Consigo viver a minha vida normalmente”, diz.
Na área da saúde mental, Rui considera que ainda há um caminho a percorrer, mas que têm sido dados passos importantes. “É muito mais fácil abordar esse assunto numa conversa de rotina, as pessoas estão cada vez mais compreensivas, o mundo também está a evoluir no modo com que lida e fala da ansiedade.”
Maria João Martins é psicóloga, está na consulta desde 2020, há vários perfis de alunos que lhe batem à porta, casos mais ligeiros, histórias mais pesadas. “Cada vez mais, temos um perfil muito diversificado dos estudantes que atendemos. Temos as perturbações de ansiedade, as perturbações depressivas, psicopatologias já diagnosticadas, perturbações de personalidade, situações mais complexas, autodestrutivas, ideias suicidas.” A avaliação é feita ao detalhe e não há limite de sessões que o aluno pode ter, depende da gravidade do caso. “Quanto mais cedo pedirem ajuda, melhor.”
“Procurar ajuda a nível da saúde não é um obstáculo tão grande”
Célia Lavaredas é médica de Medicina Geral e Familiar. É num gabinete com mobiliário antigo, de outra época e bem cuidado, com janela para o pátio da universidade, que recebe os alunos. O espaço é confortável, acessível, próximo de quem estuda em Coimbra, em pleno campus universitário. “A maior parte tem sintomatologia de ansiedade ou depressiva por múltiplas situações, questões pessoais, questões académicas. Há também casos com sintomatologia mais grave conhecida ou parcialmente conhecida”, refere. Esquizofrenia, perturbação bipolar, ideação suicida. Por vezes, é preciso ler nas entrelinhas os motivos da consulta para ajudar.
Como clínica geral, Célia Lavaredas tem um papel mais abrangente, mais holístico. “Posso ser a porta de entrada, dar seguimento, manter o aluno em consulta, orientar para a psicologia, o aluno pode precisar de cuidados diferenciados na área da saúde mental e é encaminhado para a psiquiatria.” Todo o trabalho é feito em equipa, diálogo constante, reuniões formais e informais, sempre que é necessário conversar, conversa-se. Este apoio é importante. “Faz todo o sentido. Estamos a falar de uma população que a par da sua vida social, da sua vida em comunidade, tem a parte académica.” “Uma saúde mental comprometida pode comprometer o desempenho académico.”
A equipa de psiquiatria trabalha em articulação com psicólogas e médicos de clínica geral que estão na UC. Além da psiquiatra Sofia Morais, da psicóloga Maria João Martins e da médica de clínica geral Célia Lavaredas, estão os internos de psiquiatria Brigite Wildenberg, Maria João Brito e Nuno Monteiro; a psiquiatra Daniela Pereira; as psicólogas Sofia Caetano e Andreia Ferreira; o médico de Medicina do Trabalho António Queirós; e Graça Cabral no secretariado. As consultas de Psicologia e Medicina Geral e Familiar, são gratuitas para alunos bolseiros, os não bolseiros pagam uma taxa de 5,26 euros.
Em 2015, Sofia Morais, médica psiquiatra, fazia consultas a adultos jovens no CHUC. “Começámos a ver, na altura, que muitos estudantes universitários recorriam ao serviço de urgência. Começámos a perceber que havia aqui um nicho de jovens que realmente precisaria de consulta”, recorda. Contactou os serviços médicos da UC e assinou-se o protocolo. “Investe-se pouco em saúde mental, há um estudo do American Council on Education, de 2019, que dizia que investir 500 mil dólares em saúde mental traz um retorno de 1 milhão de dólares para a instituição, para a universidade, dois milhões de dólares na produtividade económica, e 1,5 milhões para a sociedade.”
Nas consultas, ela, a aluna estrangeira, fala de si e do seu estado, das aflições e preocupações, momentos felizes. “Tenho melhorado sintomas, ainda tenho alguns.” Quanto mais esclarecida melhor. Sente melhorias, controla melhor a ansiedade social, e estar em grupo, conversar com pessoas novas, fazer novas amizades, tudo isso deixou de ser um problema. Ainda lhe falta um ano de doutoramento.
Neuza Ferreira continua na Consulta de Psiquiatria do Estudante Universitário. Tem sido uma longa caminhada de aceitação. “Apenas no início de 2024 é que aceitei o diagnóstico graças à enorme ajuda que tive. Entender que estando mal, ou não, isso nunca tiraria valor de mim como pessoa, e que procurar ajuda a nível da saúde não é um obstáculo tão grande como já fora, foi fundamental para a minha melhoria.”
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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