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Estas oficinas de cozinha pensam a vida lá fora e veem para além da parte clínica
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Estas oficinas de cozinha pensam a vida lá fora e veem para além da parte clínica

FRANCISCO ROMÃO PEREIRA/OBSERVADOR

Estas oficinas de cozinha pensam a vida lá fora e veem para além da parte clínica

FRANCISCO ROMÃO PEREIRA/OBSERVADOR

Nesta cozinha, pessoas com doença mental grave vestem a jaleca para apurar a autoestima e recuperar autonomia

IN_Cooking é um projeto que envolve utentes com doença mental grave do serviço de Psiquiatria do Hospital Distrital de Santarém. Juntam-se ao fogão, seguem receitas, preparam caldos, conversam à mesa.

É sexta-feira, passa pouco das 10h30, a cozinha do Hospital de Dia do serviço de Psiquiatria do Hospital Distrital de Santarém ficará a postos dentro de momentos. A ementa, hoje, é sopa de peixe, sopa de abóbora, arroz de frango. Os utensílios estão preparados. A abóbora cortada às fatias vai a assar no forno com aromáticas. Cortam-se coentros, cenouras, tomates, cebolas, pimentos. O frango aos bocados. Ligam-se os bicos do fogão. Nos azulejos, a marcador preto, estão receitas dos caldos de legumes, de peixe e de carne, da canja e respetivo caldo, da broa de milho e do pão – porque ali também se faz pão com massa mãe. É hora de mais uma sessão do IN_Cooking, oficinas de cozinha, que pensa a vida lá fora e vê para além da parte clínica.

Joana Margarido, 37 anos, mexe o refogado de frango com legumes com uma colher de pau. É uma das alunas mais recentes da turma. “Não é assim tão difícil, vim um pouco a medo”, confessa. O chef explica que usa arroz carolino, a mãe de Joana prefere basmati. “É mais fácil”, diz. Roselyne de Linière, 49 anos, tratada por Rose, dispõe os coentros numa tábua azul, corta-os a eito, pica-os em várias posições. “Têm de ser mais fininhos?”, pergunta Rose. Estão bem assim, garante o chef.

É preciso coar os caldos, Rose vai buscar um passador, já conhece os cantos à cozinha. Rose é francesa, mãe de dois adolescentes, está em Portugal há 25. Cozinhar faz-lhe bem, traz-lhes memórias do pai cozinheiro de comida gourmet em Paris. “Adoro cozinhar, sempre gostei, esta é uma oportunidade para mim, e o chef é super pedagógico”, conta.

A abóbora sai do forno e é colocada na mesa, atenção que o tabuleiro está quente, avisa Márcia Almendra, terapeuta ocupacional que dá uma ajuda neste dia. É preciso separar a polpa da casca, antes de a abóbora ser sopa. O tabuleiro com o peixe cozido com legumes está prestes a chegar para ser desfiado, é preciso tirar-lhe as espinhas, descobrem-se ovas, pergunta-se ao chef o que fazer com elas. São para aproveitar.

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IN_Cooking é um projeto de oficinas de cozinha para utentes do serviço de psiquiatria do Hospital Distrital de Santarém (HDS) com doença mental grave: esquizofrenia, doença bipolar, depressão grave. Cinco módulos, grupos de seis, 36 horas, seis semanas, 30 participantes até ao momento. Arrancou em novembro de 2019, uma pandemia pelo meio, volta agora aos eixos. Todos de jalecas brancas, aventais pretos, mangas arregaçadas. “Se sabem fazer um caldo, podem sonhar”, garante o chef Rodrigo Castelo, embaixador da gastronomia de Santarém, de corpo e alma neste projeto desde o seu início em regime pro bono.

Há quem saia dali e cozinhe para as suas famílias, com tudo o que isso implica: partilhar conhecimentos e receitas que ali aprendeu ou relembrou, preparar a lista de compras dos ingredientes, relembrar pequenos truques desconhecidos até então, lidar com a avaliação dos outros. Tudo isso estimula competências cognitivas

Carla Ferreira, enfermeira coordenadora do IN_Cooking, está atenta a tudo o que se passa à volta, sorri, nota-se um brilho no olhar quando fala do projeto. “O grande desafio é capacitá-los para a vida lá fora, reintegrá-los, ao serem capazes, acreditam neles próprios”. A organização na cozinha é basilar no processo de recuperação. Cortar legumes, preparar carne, arrumar tábuas, lavar louça.

“O nosso objetivo é realmente reintegrá-los na sociedade”, insiste Carla Ferreira. A maioria dos utentes é diagnosticada com esquizofrenia. “Aqui os doentes não estão só ocupados, estão ocupados a reabilitar, a capacitar, fazem um processo de recuperação grande, de autoconfiança, de autoestima elevada, de se sentirem valorizados”, explica. Mais confiança, mais fácil afirmarem-se em vários contextos, no trabalho ou na escola. Há, por exemplo, jovens que tiveram uma agudização da doença e que precisaram de reabilitação para ingressar novamente na vida ativa.

Ana Mendes Castelo, psicóloga do projeto, coordenadora da Unidade de Psicologia do HDS, realça o empenho e o gosto dos doentes. E outros aspetos igualmente importantes. Há quem saia dali e cozinhe para as suas famílias, como é o caso de João Inácio, de 38 anos, com tudo o que isso implica: partilhar conhecimentos e receitas que ali aprendeu ou relembrou, preparar a lista de compras dos ingredientes, relembrar pequenos truques desconhecidos até então, lidar com a avaliação dos outros, se gostam ou não da comida. Tudo isso estimula competências cognitivas. E não só. “Uma série de competências sociais e emocionais com um grande entusiasmo em pessoas que tendem para o isolamento”, acrescenta a psicóloga. João Inácio é de poucas palavras. Sabe-se que já tinha mão para a cozinha e que agora ajuda a mãe nas tarefas culinárias lá em casa. “Tem sido bom”, refere. E volta ao seu posto.

O chef orienta os passos, partilha alguns truques — a parte verde do alho é indigesta, cortar coentros com as mãos mantém o sabor e o cheiro. Nada se desperdiça, tudo se aproveita, cascas de legumes, carcaças de animais. Os caldos nascem precisamente desse aproveitamento. Os produtos são sazonais, com preços acessíveis para que possam ser comprados sem dificuldade.

A confiança, os truques, a partilha

Joana e Rose sentam-se frente a frente à mesa na hora de provar o almoço. Os pratos são saborosos com mão de chef. Rose conta que a sopa de abóbora levou vinagre de cidra para amenizar o sabor adocicado. Joana vive em Almeirim e comenta que os melões ficaram estragados por causa do tempo, que as vindimas começam mais cedo devido ao calor, e que tem um quintalinho em casa.

Rose reaprendeu o gosto pela cozinha, já fazia compotas, acabou por lançar a sua linha Oh là là by Rose, coisa caseira, para amigos sobretudo. Ela explica o que faz. “Uso fruta orgânica e da época, apanho marmelos à beira da estrada, organizo a cozinha e as receitas”, descreve. Tem algumas fotografias de frascos de compotas no telemóvel, mostra-as com um sorriso e uma ponta de orgulho.

Rose tirou apontamentos de lições anteriores em folhas de linhas A4. Escreveu várias indicações. “Lavar as mãos entre cada tarefa”. “Usar touca/farda limpa/usar luvas (trocar)”. “Arrumar despensa por famílias alimentares”. Estes são alguns dos tópicos que registou na aula de higiene e segurança alimentar. Mais uma folha com a descrição das facas, receitas dos caldos, noutra página a cabidela falsa feita com chouriço, morcela, vinho tinto. Uma surpresa para ela. Como foi também a possibilidade de transformar uma canja em risoto. “Aprendi truques”, garante.

O esqueleto das oficinas está desenhado e há flexibilidade no planeamento de dias e horários. São três horas de higiene e segurança alimentar. Seis horas dedicadas a sopas, bases e caldos. Mais seis para proteína animal e outras seis focadas em pratos vegetarianos. Doze horas para massas e pastas. E, por fim, uma visita guiada ao exterior a um dos parceiros do projeto. Para chegar à cozinha passa-se por uma sala luminosa, com sofás, móveis, uma bancada ao centro, quadros e desenhos nas paredes. É a oficina Arte Bruta Inclusiva, onde utentes do Hospital de Dia do serviço de Psiquiatria recuperam mobiliário, desenham, pintam.

O nível de autoestima, antes e após a participação nas oficinas, aumentou depois da experiência culinária. “Houve melhorias significativas da primeira para a segunda avaliação, uma melhoria a nível de autoestima”, revela Carla Ferreira

O chef Rodrigo Castelo sabe bem que o projeto tem benefícios explícitos e implícitos. “Podem ficar muito funcionais e autónomos”. A capacidade de organização, a seleção no momento das compras. “Usamos bastante o forno, o desperdício é zero, os produtos são acessíveis para que façam em casa”. A alimentação é saudável e completa num ambiente de harmonia e boa disposição. “Aprendem pequenos truques que fazem ganhar alguma paixão na cozinha”.

“Está a ser ótimo e gratificante ao mesmo tempo”, confessa o chef que tratou de patrocínios, de tudo o que era necessário para equipar a cozinha, das facas profissionais às louças de grés. “Dentro da cozinha, deve ser o projeto mais gratificante, que mais me alimenta a alma”. “É uma bomba de oxigénio para mim dentro da cozinha”, comenta. Partilha o seu conhecimento, truques, receitas, ensina e ajuda sem pedir nada em troca. E anda de coração cheio.

Recuperar, reabilitar, socializar

O Instituto Politécnico de Santarém avaliou o projeto em várias escalas, o impacto até agora nos 30 participantes. O nível de autoestima, antes e após a participação nas oficinas, aumentou depois da experiência culinária. “Houve melhorias significativas da primeira para a segunda avaliação, uma melhoria a nível de autoestima”, revela Carla Ferreira. O que é que isso significa? “As pessoas sentem-se mais felizes com elas, sentem mais confiança nelas, o que é algo muito bom quando estamos a falar em reabilitar, em estar integrado na sociedade”, responde.

Outro instrumento avaliado foi o estigma que têm da sua doença. Auto-estigma elevado antes das oficinas, menos depois. “Acreditam neles próprios: ‘Eu sou capaz, eu melhorei, eu aprendi coisas e tenho capacidade de as replicar em casa’”, refere Carla Ferreira. “Muitas vezes, quando não há tema de conversa, quando se está triste, a conversa não flui, chega-se a casa e há isolamento. O IN_Cooking também introduz aqui algo novo que é um tema de conversa quando se chega a casa, ‘eu hoje aprendi a, eu hoje fiz isto, sabes que eu hoje aproveitei as cascas da batata e as cascas da cebola’, o que é muito bom quando estamos a falar em processo de recuperação e socialização”, sublinha a enfermeira coordenadora.

O número de reinternamentos dos participantes diminui 60%. O que é um ganho relevante em saúde. “Temos a pessoa que recupera, já não precisa de recorrer tantas vezes a consulta e a reinternamento”, constata Carla Ferreira. “Outro efeito, também muito importante, é o consumo a nível de cuidados de saúde, o recorrer com maior frequência à urgência. Quando se está neste processo de agudização da doença, fica-se muito aflito e tudo é difícil, a ansiedade é maior, a pessoa entra em pânico, e então a primeira situação que recorre é à urgência. E, realmente, esta porta giratória começa a fechar-se mais”, acrescenta a enfermeira. O impacto sente-se, nota-se, é percetível. “Estão mais desinibidos nas conversas, a autoestima aumenta, o estigma da doença mental diminui”, observa a psicóloga Ana Mendes Castelo.

“Este projeto torna as fragilidades em forças, é uma ferramenta terapêutica, estão em equipa, não se isolam tanto do mundo”
Ana Infante, presidente do conselho de administração do HDS

Ana Infante, presidente do conselho de administração do HDS, está satisfeita com o projeto, que resultou de uma candidatura à Missão Continente e que juntou vários parceiros, produtores locais. Há várias razões para esta satisfação. “Potencia o que as pessoas gostam de fazer, aproxima os nossos utentes de atividades em que se sentem realizados, aumentando a autoestima que melhora o estado de saúde.” Se estão mais compensados, recorrem menos ao serviço de urgência. Se os doentes estão bem, os profissionais também estão bem. E a abordagem é integrada, olha o doente como um todo e não o resume à parte clínica.

A tendência, na área da saúde mental, caminha no sentido de menos hospitalizações, mais ambulatório, e o IN_Cooking ruma nesse sentido com um detalhe que faz diferença, ou seja, a integração no mercado de trabalho está sempre em cima da mesa. “Este projeto torna as fragilidades em forças, é uma ferramenta terapêutica, estão em equipa, não se isolam tanto do mundo”, afirma Ana Infante. Todas as ferramentas são importantes.

João Formiga, enfermeiro diretor do HDS, realça isso mesmo. “Treinam atividades da vida diária, potenciam a própria autonomia, treinam competências”. Aliviam o peso do estigma associado à doença mental, dão um salto, pedem ajuda. Ana Infante concorda. “Estão ali contentes e todos fazem”. João Formiga também vê isso. “É das atividades que gostam mais de contactar, é um mundo completamente diferente para quem tem apetência”.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

Uma parceria com:

Fundação Luso-Americana Para o Desenvolvimento Hospital da Luz

Com a colaboração de:

Ordem dos Médicos Ordem dos Psicólogos

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