De certa forma, chegámos aqui por causa dele.
Não, não é de Joe Biden que falamos. Nem de Donald Trump. E tampouco do coronavírus. É mesmo de Jim Clyburn, congressista democrata pela Carolina do Sul e homem que esteve no início da remontada de Joe Biden nas primárias do Partido Democrata no já distante e por pouco pré-pandémico 29 de fevereiro. Aquela era a quarta ida às urnas das primárias, após três em que Joe Biden esteve sempre longe de vencer.
Atacado por adversários, gozado pelas suas gaffes e ele próprio pouco combativo nos debates em que participou, Joe Biden encaminhou-se para a derrota. Até que Jim Clyburn, whip dos democratas e por isso o afro-americano com a posição mais cimeira dentro do Congresso, disse: “Nós conhecemos o Joe. Mas mais importante do que isso é que o Joe conhece-nos”. O resto já se sabe: Joe Biden venceu na Carolina do Sul com estrondo, onde ganhou impulso para o resto das primárias, que arrebatou das mãos de Bernie Sanders.
Portanto, quando Jim Clyburn apareceu no ecrã, era previsível que revisitasse aquela sua frase. E lá chegaria, a seu tempo. Mas não sem antes ficar na História como o primeiro orador desta convenção virtual a meter as mãos pelos pés. “Boa noite. Eu sou o congressista Jim Clyburn, aqui na histórica…”, começou o próprio, antes de tempo, até que foi interrompido por um hold on dos técnicos que o filmavam. E depois lá repetiu a apresentação e prosseguiu, chegando ao que os norte-americanos conhecem de Joe Biden e o que Joe Biden conhece deles.
Mas, a quem assistia em casa, não seria difícil pensar antes aquilo que a pandemia obrigou o mundo inteiro a dizer ao longo de 2020: isto é completamente desconhecido. E por “isto”, neste caso específico, é a primeira convenção de um partido norte-americano a ser feita totalmente de forma virtual, com cada orador a falar do seu canto.
Não era nada disto que os democratas tinham planeado.
Depois da débâcle de Hillary Clinton frente a Donald Trump, uma das lições mais evidentes que dali surgiram foi uma: afinal, é mesmo preciso ir ao Wisconsin. Isto porque, depois de uma campanha em que não passou por aquele estado (que votava ininterruptamente no candidato democrata desde 1988), a democrata perdeu ali por menos de 23 mil votos. Como tal, logo em março de 2019, foi para a cidade de Milwaukee, a maior do Wisconsin, levar a sua convenção. Mas a pandemia da Covid-19, que já infetou mais de 5,6 milhões de pessoas nos EUA, das quais 173.716 morreram, trocou as voltas ao Partido Democrata.
De grande e empolgante convenção num estado a quem se pede uma segunda chance como nas canções de amor mais desesperadas, os democratas foram obrigados a moderar expectativas. Com isso, levaram até às televisões e ecrãs de computador dos norte-americanos uma convenção em formato de programa de televisão, apresentado pela atriz Eva Longoria — uma figura adequada para uma convenção que parecia querer transformar qualquer dona de casa desesperada na reta final de Donald Trump numa dona de casa motivada para votar em Joe Biden.
Sanders à distância e os republicanos que perguntam: “O que é que eu estou a fazer aqui?”
Que Joe Biden é um moderado entre o atual panorama do Partido Democrata não deve ser novidade para ninguém. Porém, nas semanas que antecederam o anúncio da sua escolha para vice-Presidente, não era claro que via é que tomaria: se a de alguém claramente à sua esquerda, de forma a não alienar a ala progressista do Partido Democrata; se uma voz mais ao centro, que fosse a sua continuação. A opção de Kamala Harris, senadora da Califórnia que foi procuradora-geral daquele estado, deixou claro que Joe Biden optou pela segunda via.
E, nesse dia, ficou consumada a derrota de Bernie Sanders e da ala que este, se não inventou, pelo menos levou a voos até aqui impossíveis a quem quer que nestas andanças da política norte-americana se descrevesse como um “socialista democrático”.
Tal como já tinha acontecido há quatro anos quando foi convidado a falar na convenção que levou à nomeação de Hillary Clinton, Bernie Sanders falou a uma segunda-feira — isto é, no primeiro dia. Não é propriamente de primeiros dias que reza a História das convenções, mas a de quatro anos foi uma exceção quando os apoiantes fervorosos, apelidados de Bernie Bros, apuparam tanto quanto puderam os discursos pró-Hillary Clinton e as proclamações a união dentro do partido. Agora, e apesar de ter aparecido nesta convenção em frente a madeira meticulosamente arrumada, Bernie Sanders não foi buscar lenha para se queimar.
Mais magro, mais penteado e mais relaxado, Bernie Sanders concentrou o seu ataque no alvo da noite: Donald Trump, claro.
“A nossa grande nação está a viver um tempo sem precedentes. Estamos perante a pior crise de saúde pública dos últimos 100 anos e o pior colapso económico desde a Grande Depressão. Enfrentamos um racismo sistémico e uma enorme ameaça ao nosso planeta como são as alterações climáticas”, enunciou. “E, no meio disto tudo, temos um Presidente que não só é incapaz de fazer frente a estas crises como nos está a afundar no caminho do autoritarismo.”
Por isso, sublinhou: “Precisamos de Joe Biden como o nosso próximo Presidente”.
Imaginando já que do outro lado do ecrã teria alguns Bernie Bros a maldizê-lo, o senador independente do Vermont tocou na ferida cuja dor ele próprio parece já não sentir. Falando aos “milhões” que o apoiaram “este ano e em 2016”, deu uma palmadinha nas próprias costas quando disse que “juntos levámos o país para uma nova e determinada direção”. Falou, como é seu costume, do “nosso movimento”. Declarou-se vencedor no capítulo ideológico, ao dizer que “as ideias pelas quais lutámos, que há poucos anos eram consideradas radicais, são agora mainstream“.
Mas depois veio o “mas” esperado. “Mas sejamos claros: se Donald Trump for reeleito, todos estes progressos vão ser colocados em risco”.
Para evitar esse desfecho, Bernie Sanders fez com Joe Biden o mesmo que já tinha feito em 2016 com Hillary Clinton na convenção daquele ano: convencer o seus seguidores de que o plano B não era o pior entre os possíveis. Com o pormenor do que agora o fez com uma convicção que não se lhe notava em 2016 — e também sem os apupos da plateia que se ouviram há quatro anos.
“Eu sei que Joe Biden vai começar esta luta desde o primeiro dia”, garantiu Bernie Sanders sobre o homem com quem se foi cruzando ao longo de vários anos nos corredores do Senado. Destacou do seu rival de há pouco tempo a promessa de um salário mínimo de 15 dólares por hora, a garantia de licenças de parentalidade pagas e até a promessa de expandir o Medicare para quem tem mais de 60, em vez de 65, como é atualmente. No tema da saúde em particular, admitiu que não é segredo que discorda de Joe Biden. Mas tudo redundaria na sua última frase: “Meus amigos, o preço da derrota é inimaginavelmente alto”.
A mensagem estava passada: Joe Biden pode não ser a primeira escolha de muitos, mas como plano B chegará.
Mas, ao contrário do que se passou em 2016, em que essa mensagem foi enjeitada para ser acolhida dentro do Partido Democrata e da sua ala mais progressista, em 2020 o principal alvo da lógica do plano B foi dirigida para fora — mais propriamente, para os republicanos moderados.
E eis que aparece um deles, erguendo o olhar para uma câmara que o filma em cima de uma estrada que bifurca. Trata-se de John Kasich, ex-governador do Ohio e antigo adversário de Donald Trump nas eleições primárias do Partido Republicano em 2016.
“Tenho orgulho na minha herança republicana e no partido de Lincoln, que projetou os seus princípios fundadores de união e dos grandes propósitos“, disse. E, depois de várias alusões à metáfora evidente de que, tal como ele próprio naquele vídeo, os EUA estão num cruzamento da História em que urge decidir para que lado se vira, John Kasich rematou: “Estou certo de que há muitos republicanos e independentes que nunca imaginariam o dia em que atravessariam a estrada para apoiar um democrata. Eles têm medo que o Joe faça uma viragem brusca à esquerda e os deixe para trás. Eu não acredito nisso, porque sei de que este homem é feito. É razoável, tem fé, é respeitador e toda a gente sabe que ninguém o empurra”.
John Kasich foi o principal de muitos outros republicanos que apareceram ao longo do primeiro dia da convenção democrata. Uma delas foi Christine Todd Whitman, republicana e ex-governadora do estado de Nova Jérsia. Sentada num sofá da sua casa, o vídeo em que esta falava começa de forma algo peculiar. Com uma cara de confusão exageramente assumida, lançou logo a pergunta: “O que é que eu estou a fazer aqui?”.
Pergunta semelhante — “O que é que vocês fazem aqui?” — terá feito Alexandria Ocasio-Cortez, uma das mais destacadas congressistas do Partido Democrata e cara da sua ala progressista.
It’s great that Kasich has woken up &realized the importance of supporting a Biden-Harris ticket. I hope he gets through to GOP voters.
Yet also, something tells me a Republican who fights against women’s rights doesn’t get to say who is or isn’t representative of the Dem party. https://t.co/38h6JGpbMj
— Alexandria Ocasio-Cortez (@AOC) August 17, 2020
Ainda antes da convenção ter começado, esta congressista que entrou para a política depois de ter sido voluntária na campanha de Bernie Sanders em 2016, escreveu: “É excelente que Kasich tenha acordado e se tenha apercebido da importância de apoiar a campanha de Biden e Harris. Espero que ele consiga convencer eleitores do Partido Republicano. Porém, algo me diz que um republicano que luta contra os direitos das mulheres não tem o direito de de dizer quem é que representa ou deixa de representar o Partido Democrata”.
Michelle Obama e o seu “é o que é”
Ao longo das suas duas horas, divididas entre discursos rápidos e pausas musicais que muitos terão aproveitado para ir à casa-de-banho ou ir buscar qualquer coisa à cozinha, o primeiro dia da convenção do Partido Democrata tentou ir, uma de cada vez, a todas. Ora piscava o olho ao eleitorado afro-americano (com segmentos dedicados ao movimento Black Lives Matter), ora fazia questão de não deixar o eleitorado mais à esquerda na orfandade (tarefa assumida exclusivamente por Bernie Sanders), tudo isto nos intervalos de apelar a eleitores indecisos, perdidos algures entre a abstenção e a desilusão com o Partido Republicano.
Nada ali era, porém, consensual — o mais próximo de tal estatuto será Bruce Springsteen, um habitué das lides democratas. Desta vez, bastaram 18 minutos para que se ouvisse uma música do Boss a tocar no fundo e outros três para que ele próprio aparecesse. Até que apareceu Michelle Obama.
Apesar de ter deixado a Casa Branca em janeiro de 2017, a popularidade de Michelle Obama não diminuiu por causa disso. Pelo contrário, aumentou — a ex-primeira-dama foi tanto em 2018 como em 2019 a mulher mais popular, de todo o mundo, segundo múltiplas sondagens feitas no ano passado. Sobram, pois, razões para que tenha sido Michelle Obama a assumir a função de atar as pontas soltas de uma primeira dia de uma convenção que se queria abrangente.
Mas nem por isso Michelle Obama foi branda no seu discurso. Foi, aliás, de uma franqueza desconcertante. Num discurso que se cingiu muitas vezes à moral e não necessariamente à política (já na convenção de 2016 celebrizou a palavra “quando eles vão por baixo, nós vamos por cima”), a ex-primeira-dama deixou críticas duras a Donald Trump. Tudo isto enquanto usava um colar onde se liam quatro letras douradas: “V-O-T-E”.
“Ir por cima é a única coisa que funciona porque quando vamos por baixo, quando utilizamos as mesmas táticas degradantes e desumanas dos outros, passamos a ser parte do ruído que nos está a afogar”, disse. “Mas sejamos claros: ir por cima não significa colocar um sorriso e dizer coisas bonitas quando somos confrontados com maldade e crueldade. Ir por cima significa ir pelo caminhos mais duro.”
E foi de de dureza que continuou a falar mais à frente: “Ir por cima significa soltarmo-nos das amarras das mentiras e da desconfiança com a única coisa que nos deixa verdadeiramente em liberdade: a verdade crua e dura”.
Tudo isto para rematar no que, para a ex-primeira-dama, é talvez a mais importante “verdade nua e crua”.
“Deixem-me ser o mais honesta e clara possível: Donald Trump é o Presidente errado para o nosso país. Ele teve mais do que tempo suficiente para provar que consegue fazer o seu trabalho, mas claramente está de cabeça perdida. Ele não está à altura. Ele simplesmente não é capaz de ser a pessoa que nós precisamos que ele seja”, disse. “É o que é.”