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Quando Lula da Silva entrou no Grande Auditório do ISCTE na manhã deste sábado, era claro que estava a jogar em casa. O “encontro com a comunidade brasileira” era o último ato oficial da visita a Portugal do Presidente eleito do Brasil e ali estava plasmada a vitória que teve junto dos brasileiros que vivem em Portugal — obteve mais de 60% dos votos em Lisboa e no Porto e mais de 50% em Faro.
As 500 cadeiras do auditório estavam preenchidas de gente vestida de vermelho e por todo o lado se via o rosto ou o nome de Lula: em t-shirts, chapéus, tote bags e cartazes. E a pequena multidão que ali foi para ouvir o homem que regressou à presidência do Brasil ocupava o tempo de espera até à chegada de Lula entoando cânticos que ora pediam “Lula lá”, ora constatavam que “Ele voltou”.
O atraso foi de cerca de uma hora, mas a audiência não esmorecia. E quando Lula finalmente apareceu em palco — acompanhado da mulher Janja, do seu antigo ministro Fernando Haddad, da reitora do ISCTE Maria de Lurdes Rodrigues e representantes do PT e do PSOL em Portugal — a reação foi de euforia, como se as centenas de brasileiros que ali estavam estivessem pela primeira vez a ver ao vivo a rock star que sempre idolatraram.
Consciente disso, Lula começou o seu discurso dizendo que a sua primeira palavra era “de gratidão”. Gratidão pela “esmagadora maioria” que obteve junto da comunidade brasileira em Portugal, pelo apoio que lhe deram ao longo de momentos como quando esteve preso e e também “à hospitalidade” dos “companheiros dos partidos de Portugal” — nomeando diretamente António Costa, Paulo Raimundo e Catarina Martins (que estava presente na audiência).
Mas foi para a comunidade brasileira em Portugal que Lula da Silva dirigiu a principal mensagem do seu discurso. “Às vezes fico triste quando vejo brasileiros e brasileiras morando noutros países por não conseguirem encontrar oportunidades no seu país”, disse. “Espero conseguir apresentar para a juventude que um outro mundo é possível. Espero que vocês comecem a voltar para o Brasil”.
Foco na educação e fim da fome. Os objetivos do governo Lula
O evento de sábado serviu também para o Presidente eleito explicitar que programa eleitoral pretende implementar, depois de uma campanha onde evitou fazer promessas e compromissos concretos, na tentativa de conseguir uma “ampla coligação” e não alienar eleitores. Em concreto, Lula aproveitou a passagem por Lisboa para deixar claro dois dos principais objetivos para o seu mandato: colocar o foco na educação e conseguir o fim da fome no país.
“Esse era um pais onde a elite achava que o pobre não tinha de estudar”, diagnosticou, elencando vários dos sucessos das suas presidências passadas nessa área. “E não digam ‘Ah, o Lula ta gastando dinheiro com a educação’. Não estou gastando, estou investindo.”
Numa tentativa de evitar as críticas dos que temem um aumento da despesa no seu mandato que possa comprometer as finanças públicas, Lula frisou várias vezes que não quer “tirar nada a ninguém”, mas sim dar oportunidades a outros e “devolver a dignidade” aos mais pobres. Uma dignidade que, diz, passa não só por erradicar a fome, mas também por permitir que todos os brasileiros possam ter a oportunidade de “ir jantar no restaurante uma ou duas vezes por mês” e — como repetiu ao longo de toda a campanha — fazer “um churrasquinho” a cada domingo.
“Quem come fica bonito. Fica com as bochechas bonitas como as de vocês, como as minhas. A fome é feia, a fome é assustadora”, afirmou. O foco principal deste mandato estava traçado: “A minha dedicação primeira é outra vez tentar acabar com a fome nesse pais. Garantir que nenhuma criança levanta sem um copo de leite, café ou chocolate e um pão para comer.”
“Quem foi derrotado não soube perder”. As farpas a Jair Bolsonaro
Lula da Silva aproveitou também para frisar um dos pontos que mais repetiu ao longo desta visita internacional: a de que, consigo à frente dos destinos do país, o Brasil vai voltar a ter uma presença ativa na diplomacia mundial. “O Brasil se dá com todo o mundo”, disse. “E, de repente, esse país ficou isolado. O nosso Presidente não recebeu um Presidente.”
Foi a primeira crítica para o antecessor, Jair Bolsonaro, a que se seguiriam muitas outras. “Me parece que quem foi derrotado agora não soube perder. E agora temos um processo que eu não conhecia no Brasil, a violência da extrema-direita“, denunciou, referindo-se à recente notícia de que o Partido Liberal, de Bolsonaro, vai pedir a anulação da eleição que deu a vitória ao candidato do PT.
Partido Liberal de Jair Bolsonaro vai pedir anulação dos resultados eleitorais no Brasil
Os desafios de como lidar com um país que está totalmente partido ao meio foram invocados várias vezes pelo agora Presidente eleito, que denunciou “o radicalismo e a ignorância” do bolsonarismo, bem como a “fábrica de mentiras” que diz ter enfrentado ao longo da campanha eleitoral. Mas, para lidar com isso, Lula pediu várias vezes aos seus apoiantes para que evitem o confronto direto com os bolsonaristas: “Se vocês encontrarem um bolsonarista nervoso, xingando vocês, não entrem em provocações. Não briguem”.
A reconciliação possível, defendeu, é a de que o Brasil possa regressar a um tempo em que “as pessoas possam discutir política com os seus adversários sem ódio”, disse, recordando que o facto de ter divergências políticas com o irmão Frei Chico (militante histórico do Partido Comunista Brasileiro) nunca o levou a discutir política com o irmão em frente à mãe.
Mas, apesar dessa mensagem de apaziguamento, Lula não conseguiu evitar agradecer às autoridades portuguesas pela “paciência” com alguns brasileiros bolsonaristas que vivem em Portugal. Rapidamente tentou emendar a mão e lembrar que “isso é a democracia”. “A democracia não é um pacto de silêncio, é uma sociedade em movimento.”
Lula promete governo para lá do PT e responsabilidade fiscal. Mas os desafios num país dividido são muitos
Lula da Silva não quis usar a visita a Portugal para levantar o pano sobre a composição do seu futuro governo, mas deixou alguns sinais no encontro com a comunidade brasileira sobre o que esperar do seu novo executivo. “Vamos fazer um governo sabendo que não pode ser só do Partido dos Trabalhadores. Tem de ter mais gente da sociedade, de outros partidos, gente sem partidos”, afirmou, reforçando uma mensagem que já tinha dito durante a campanha, quando prometeu um governo “para lá do PT”, e que sinalizou o papel de destaque que Geraldo Alckmin (do centro-direita) irá assumir como vice-presidente.
Também tentou acalmar os mercados, dizendo que está consciente de que é necessário “ter responsabilidade fiscal, não gastar mais do que se ganha”. “Mas também dá para melhorar o país”, prometeu.
Já o seu antigo ministro — e candidato presidencial do PT em 2018 — Fernando Haddad usou o discurso anterior ao de Lula para responsabilizar a equipa de Bolsonaro pelas dificuldades que o novo governo tem pela frente, dizendo que o período de transição está a demonstrar “o desafio que Lula e a sua equipa vão encontrar”. “É um esforço de reconstrução e não estamos exagerando. Não é uma mera transição de poder”, decretou.
Apesar dessas referências, Lula da Silva quis claramente deixar uma mensagem de esperança junto da comunidade brasileira em Portugal e da comunidade internacional. “Quero olhar no olho de cada um de vocês e dizer: nós vamos recuperar esse país“, prometeu, garantindo para isso que vai aplicar todo o seu “tesão pelo Brasil” e “pelo povo brasileiro” para conseguir cumprir essa meta.
A audiência reagiu, uma vez mais, em êxtase e a equipa de segurança de Lula viu-se em dificuldades para lidar com o banho de multidão que o Presidente eleito recebeu no final do discurso, com um mar de camisolas vermelhas a aproximarem-se para tentar tirar uma fotografia e conseguir abraçar o homem que, depois de liderar três governos e passar mais de um ano na prisão, regressa à presidência do Brasil.
Mas não foi preciso caminhar muito para encontrar o prenúncio de que esse será um desafio gigantesco: à saída do ISCTE, os seguranças de Lula e alguns agentes da PSP faziam uma barreira para manter afastados um pequeno grupo de bolsonaristas, vestidos de verde e amarelo, que protestavam contra a presença do Presidente eleito. Eram menos de dez pessoas. Um grupo pequeno, muito pequeno, mas ruidoso, que gritava não querer um “Presidente ladrão”.