(Ensaio originalmente publicado a 25 de novembro de 2019)
Todas as revoluções são misteriosas. A revolução portuguesa de 1974-1975 não é excepção. Continuamos a discutir as origens do movimento militar de 25 de Abril de 1974, e depois de todos os outros confrontos que definiram a revolução, como o de 28 de Setembro de 1974, que pôs fim à presidência do general Spínola, o de 11 de Março de 1975, que deu o poder aos militares alinhados com o PCP e com a extrema-esquerda, e o de 25 de Novembro do mesmo ano, que teria liquidado a influência comunista nas forças armadas.
Desde cedo que os comunistas e a extrema-esquerda começaram a contrastar o 25 de Abril e o 25 de Novembro. Novembro teria sido a negação de Abril. Não foi, pelo contrário. O dia em que Rosa Coutinho e Otelo Saraiva de Carvalho deram lugar a Ramalho Eanes e Jaime Neves faz parte de uma história que não é fácil de contar, mas que é fundamental para perceber o actual regime.
Uma história difícil de contar
O 25 de Novembro é um grande novelo de conspirações. No Outono de 1975, todos conspiravam, depois de meses de indefinição e de deriva. Não era claro quem mandava.
O PCP já não tinha o general Vasco Gonçalves à frente do governo, mas havia gonçalvistas no Conselho da Revolução e à frente de unidades militares da região de Lisboa. O “Grupo dos Nove” havia voltado ao Conselho da Revolução e o PS e o PPD ao governo, mas a extrema-esquerda continuava na direcção do Comando Operacional do Continente (COPCON).
O país estava cortado ao meio desde o Verão, com o Norte, que votara maciçamente no PS e na direita, em rebelião contra as autoridades revolucionárias de Lisboa. Ninguém sabia ao certo com quem estava o presidente da república, o general Costa Gomes.
Também ninguém sabia até onde estavam dispostas a ir as potências estrangeiras que, nos bastidores, financiavam os vários partidos: ia a União Soviética deixar o PCP tentar conquistar o poder? Iam os EUA e os países da CEE deixar que isso acontecesse?
O 25 de Novembro começou por ser uma resposta a este caos. Mas a resposta, como seria inevitável, não foi inicialmente menos caótica. Não há maneira de contar a história sem levantar objecções de um dos lados.
Podemos dizer que tudo começou na manhã do dia 25 quando os paraquedistas e outras unidades do COPCON ocuparam as bases aéreas em volta de Lisboa, o aeroporto, o Depósito Geral do Material de Guerra e a RTP. Mas outros dirão que não devemos começar a história aí, mas a 20 de Novembro, quando “o Grupo dos Nove” propôs a extinção do COPCON e a substituição do então general graduado Otelo Saraiva de Carvalho no Governo Militar de Lisboa.
Quem estava a reagir a quem? Esta discussão interessa porque, em Novembro de 1975, o meio militar parecia convencido de que “quem saísse primeiro, perdia”. A arte estava em fazer “saltar” o adversário, para depois cair em cima dele com toda a legitimidade de quem defendia a “revolução” contra os seus inimigos. Daí, as infindáveis polémicas sobre o que aconteceu ao certo no dia 25.
O fim de um tigre de papel
Mas não importa muito entrar nos meandros das conspirações de Novembro de 1975. O contexto é talvez mais importante. É que por debaixo dos confrontos revolucionários, o chão desabava: durante o ano de 1975, a economia entrara em recessão, o desemprego aumentava, o défice do Estado atingira níveis nunca vistos desde os anos 20, e o défice externo consumia as reservas de divisas do salazarismo.
O país começara a mudar de vida nos anos 60, através da integração europeia proporcionada pela EFTA e pela emigração, e aspirava ao conforto ocidental. A esse respeito, a revolução, com as suas expropriações e ocupações, ameaçava ser um grande passo atrás.
O programa do V Governo Provisório de Vasco Gonçalves, no princípio de Setembro de 1975, não deixara dúvidas, ao propor a “eliminação progressiva de padrões de consumo típicos das sociedades burguesas desadaptados às possibilidades materiais da economia portuguesa”. O horizonte soviético das lojas vazias esvaziava os lendários “direitos sociais”.
Mário Soares conta algures que percebeu que a tentativa comunista ia falhar quando passou por uma praia, no Verão de 1975, e a viu cheia de gente e de automóveis. Não era possível uma revolução num país assim. Portugal não era a Rússia de 1917.
De certo modo, o que acabou por acontecer correspondia ao que já tinha acontecido desde o pós-guerra. Portugal, ainda sob a ditadura salazarista, tinha integrado a NATO em 1949 e a EFTA em 1960, e fizera um acordo comercial com a CEE em 1972. Tinha sido através desta integração na Europa ocidental que o país se desenvolvera.
Em 1974, a sociedade portuguesa já não era a de 1960: a população agrícola, em percentagem da população activa, diminuíra de 47% para 32%; o PNB per capita, em relação à média da Europa ocidental, subira de 39% para 56,4%.
Negar a integração europeia, por meio de uma qualquer aventura de socialismo terceiro-mundista, teria sido negar tudo isso. Era um custo que ninguém, em 1975, esteve disposto a pagar. Nem mesmo, como se viu a 25 de Novembro, os que propunham essa aventura.
No exterior, a União Soviética também não parecia claramente entusiasmada em arranjar mais uma Cuba, desta vez na Europa. De certo modo, os dirigentes do PCP, e o comandante do COPCON, Otelo Saraiva de Carvalho, acabaram por perceber isso. Daí que, no dia 25, se tivessem disposto a desistir em determinadas condições. Reconheceram, no fundo, que não eram uma alternativa.
Por isso, na tarde do dia 25, Otelo entregou-se em Belém, privando o COPCON de um comando legal, e o PCP acabou por mandar os seus militantes para casa. Já na manhã do dia 26, os 2000 homens da Polícia Militar, uma das unidades mais revolucionárias de Lisboa, renderam-se a 300 comandos de Jaime Neves, depois de um breve tiroteio em que houve três mortos.
Como escreveu então Mário Soares, “a revolução comunista era um tigre de papel”. Mas só se tornou um “tigre de papel” quando houve gente que se predispôs a fazer-lhe frente, a começar pelos militares do 25 de Novembro, mas também o povo que então os apoiou e que já então, durante o Verão, reagira nas ruas contra a hegemonia comunista, como na enorme manifestação de 19 de Julho em Lisboa.
As esquerdas e o 25 de Novembro
Para o PCP e a extrema-esquerda, o 25 de Novembro é um paradoxo. O 25 de Novembro acabou por assentar num compromisso, em que o PCP deixou cair a “esquerda militar”, mas em contrapartida o novo poder se propôs tornar legalmente irreversíveis as conquistas do PCP durante o PREC: as “nacionalizações”, a ocupação do Alentejo (conhecida por “reforma agrária”), ou o domínio dos antigos sindicatos nacionais do Estado Novo. Tudo isso esteve ameaçado no Verão de 1975 por um levantamento popular anti-comunista cuja dinâmica, anos depois, ainda alimentaria as maiorias da Aliança Democrática.
O 25 de Novembro podia ter sido um 11 de Março ao contrário. O coronel Jaime Neves, comandante do regimento de Comandos da Amadora, expressou cedo a frustração com o carácter incompleto do 25 de Novembro. O mesmo fez Francisco Sá Carneiro, que insistiu na exclusão do PCP do governo, logo recusada pelo major Melo Antunes. À volta do presidente Costa Gomes, os oficiais do MFA “moderado”, antes incomodados com a influência do PCP e os radicalismos de Otelo, começaram a recear uma escalada da “direita”.
A Constituição de 1976, assente num novo “pacto” do MFA com os partidos, manteve o país no “rumo ao socialismo”. O país precisou de mais quatorze anos de lutas políticas, protagonizadas pela direita democrática, para se libertar da canga revolucionária.
Talvez, por isso, o PCP e extrema-esquerda pudessem comemorar o 25 de Novembro. Mas têm razão em não o fazer. Porque a partir daí perderam o recurso que explicava a sua ascendência em 1975: a “esquerda militar”. Foi o poder nos quartéis, e não o poder na opinião, que permitiu ao PCP e aos vários antecessores do BE, com menos de 20% dos votos em conjunto em 1975, infiltrar o Estado, dominar a comunicação social, contestar o direito de propriedade, e ameaçar as liberdades individuais (o PREC não foi uma festa para os seus milhares de presos políticos e exilados).
Ora, essa esquerda militar foi, em grande medida, um subproduto da chamada “descolonização”, isto é, do modo como se pôs fim à guerra em África através da entrega das colónias e das suas populações à ditadura sanguinária dos partidos independentistas apoiados pela União Soviética. O esquerdismo serviu para os militares fazerem tudo isso com uma boa consciência, e durou precisamente até à independência da última colónia, Angola, a 11 de Novembro. Depois dessa data, foi como se a esquerda militar se tivesse tornado irrelevante.
O 25 de Novembro consistiu na sua eliminação, com a extinção do COPCON, que concentrara nas mãos da extrema-esquerda o principal comando militar em Portugal. Foram presos 51 militares, entre os quais Otelo. O novo chefe do Estado Maior do Exército, o general Eanes, pôs fim às assembleias e aos órgãos do MFA. Logo que privados do amparo militar, o PCP e a extrema-esquerda perderam a iniciativa perante um país que, contra o que ensinavam, era plural, e, na sua maioria, queria viver como se vivia na Europa ocidental.
A dependência do PCP e da extrema-esquerda do poder militar demonstra-se ainda pelo modo como, nos anos seguintes, tentaram anichar-se atrás do Presidente da República, na medida em que o general Eanes procurou respeitar os compromissos do 25 de Novembro.
O 25 de Abril e o 25 de Novembro
Se um movimento militar negou o 25 de Abril de 1974, não foi o 25 de Novembro de 1975, mas o de 11 de Março do mesmo ano. O 11 de Março, esse sim, rejeitou muitos dos compromissos assumidos pelo poder militar perante os portugueses a 25 de Abril de 1974, como por exemplo o de deixar o país decidir livremente em eleições sobre o seu regime e o seu modelo social.
Mas o 25 de Novembro não restituiu imediatamente aos portugueses essa possibilidade. O que o 25 de Novembro fez foi outra coisa: abriu caminho para que, nos anos seguintes, os cidadãos e os partidos políticos pudessem fazer prevalecer uma democracia de tipo ocidental e uma economia de mercado, no contexto da integração europeia. Por isso, talvez faça sentido dizer que, de facto, o 25 de Abril só foi em Novembro.
O 25 de Novembro poderia ter levado a uma reversão completa das violências e abusos revolucionários: nacionalizações, reforma agrária, etc. Talvez esse “11 de Março ao contrário” tivesse proporcionado grandes oportunidades à economia portuguesa. Mas o PCP e a extrema-esquerda haviam obtido um grande ascendente durante o PREC. Foi possível desalojá-los de muitas posições. Mas uma reversão completa teria requerido confrontos mais violentos, senão mesmo uma guerra civil.
Além disso, a esquerda democrática, apesar de se ter oposto ao PCP e à extrema-esquerda, receou ser arrastada numa inversão de curso, e tendeu também a resistir-lhe. É provável que nenhuma prosperidade, mesmo que fosse possível alcançá-la assim, valesse os custos de mais violência. Foi talvez preferível prosseguir gradualmente, através de eleições, debates parlamentares e reformas.
As revisões constitucionais de 1982 e de 1989 foram, de facto, feitas contra os compromissos do 25 de Novembro. Mas não teriam sido possíveis sem o 25 de Novembro.