“Política britânica de 2018: vai para casa. Estás bêbeda.” A frase é de Kevin Schofield, editor do PoliticsHome. Foi escrita em dezembro do ano passado, no Twitter, logo depois de se saber que o Partido Trabalhista ia avançar com uma moção de censura contra Theresa May, a primeira-ministra britânica.
Go home 2018 British politics, you're drunk. https://t.co/EEFYhgGuEI
— Kevin Schofield (@KevinASchofield) December 17, 2018
Na altura, May não caiu mas está bom de ver que a ideia não saiu da cabeça de Jeremy Corbyn. Menos de um mês depois, cá está o documento colocado em cima da mesa, com uma diferença substancial — desta vez, a moção será mesmo votada, já que foi a própria May a lançar o desafio, depois de ter sofrido a derrota mais esmagadora de sempre de um Governo em funções no Parlamento britânico. “Esta é uma decisão histórica”, tinha previsto a primeira-ministra na sua última declaração nos Comuns antes da votação. Nem May conseguiria prever quão histórica seria.
Os 202 votos a favor do acordo fechado com a União Europeia ficaram longe, muito longe, dos 432 que o chumbaram. May precisava de 320, mas precisava, sobretudo, que os aliados não a largassem. As contas finais saíram ainda piores: deputados do próprio partido votaram contra ela, no tal momento histórico.
“Em circunstâncias normais, um primeiro-ministro demitir-se-ia depois de sofrer uma humilhação destas numa das suas políticas centrais”, analisou de imediato o editor de Política da ITV, Robert Peston. “Mas estes não são tempos normais e Theresa May não é uma primeira-ministra normal.”
O que se seguiu aconteceu ainda Theresa May não tinha engolido a derrota. É certo que foi a primeira-ministra quem lançou o desafio, expondo-se a uma moção de censura, mas ninguém perdeu tempo. O Partido Trabalhista avançou, a oposição apoiou e aí está ela: esta quarta-feira, os deputados britânicos irão pronunciar-se sobre a moção de censura proposta por Corbyn. A probabilidade de o Governo cair é, ainda assim, baixa — não só May tem maioria no Parlamento como os aliados do DUP e alguns dos seus rivais internos (como Boris Johnson ou Jacob Rees-Mogg) já anunciaram que a vão apoiar. Mas, como acabámos de explicar, a loucura Brexit tem levado o Reino Unido a tempos pouco normais, pelo que essa possibilidade tem de ser considerada. O que nos leva ao primeiro cenário possível depois do chumbo desta terça-feira.
Moção de censura é aprovada e Theresa May cai
Imaginando então que os tories mais a favor de um hard Brexit, como Boris Johnson ou Jacob Rees-Mogg, não estão a dizer a verdade e que, de facto, detestam May o suficiente para arriscar enfrentar um Governo do Labour, pode dar-se a possibilidade de as facas estarem a ser afiadas neste momento e a primeira-ministra ser derrubada em breve.
Se for este o caso, torna-se quase impossível prever os passos seguintes e o resto deste mesmo artigo tornar-se-á quase irrelevante. Ou, passando o microfone ao ministro do Ambiente, que escolheu vestir a armadura e encarnar o espírito de Game of Thrones, “nas palavras de Jon Snow: vem aí o inverno”. Foi a previsão feita por Michael Gove na manhã desta terça-feira, caso o acordo fosse chumbado — o que veio, como sabemos, a acontecer.
Se tal acontecer e May for mesmo derrubada, a única certeza é esta: inicia-se, então, um período de 14 dias úteis para que seja apresentado um novo Governo que possa contar com a confiança do Parlamento. Se os conservadores falharem a oportunidade de arranjar uma rápida alternativa a May, que reúna consenso em duas semanas, são marcadas eleições antecipadas.
Estas, contudo, só poderão acontecer daí a 25 dias úteis. O que significa que, somando os 14 dias do primeiro prazo com os 25 deste, os britânicos só poderiam regressar às urnas no início de março — altura em que faltará menos de mês para a data da saída oficial da União Europeia (UE), 29 de março. Com mais incerteza a ser despejada que nem gasolina na fogueira do Brexit, tudo ficaria em aberto. O Parlamento pode aí decidir tomar o controlo da situação e propor medidas como a suspensão do Artigo 50 para minimizar os danos.
May mantém-se no cargo e tenta renegociar acordo com a UE
Só que, apesar de tudo, a opção anterior é improvável. E, portanto, é necessário equacionar uma série de outros cenários. Caso sobreviva à moção de censura, a primeira-ministra deverá ir a Bruxelas em mais uma tentativa de conseguir concessões por parte dos líderes europeus. Só que, como os líderes europeus já reforçaram várias vezes, a Comissão Europeia não tem grande vontade de mudar uma vírgula que seja de um acordo que considera vantajoso.
Do lado da Europa pede-se, sobretudo, clarificação. Fontes europeias já avançaram a vários jornalistas britânicos que só aceitariam reabrir as negociações se Theresa May tiver uma noção clara de uma proposta que reúna consenso no Parlamento britânico.
Claro que, no caso de as renegociações falharem uma vez mais, May pode sempre regressar a Londres e dizer aos deputados, uma vez mais, “este acordo ou nenhum acordo” — e pedir-lhes para votar de novo. A ideia, escreve a Sky News, seria “questionada”, “mas a primeira-ministra teria esperanças de que assustar os deputados com a perspetiva de uma saída sem acordo, à medida que o relógio avança em direção ao dia da saída, a 29 de março”. O problema é que continuar a fazer as coisas da mesma forma e esperar um resultado diferente é, lá diz o ditado, “loucura”. E, portanto, o mais certo era o acordo voltar a ser chumbado pelos deputados.
May decide pedir a suspensão do Artigo 50
Imaginemos então que, desesperada, Theresa May decide fazer aquilo que tem rejeitado perentoriamente até agora: pedir à UE uma suspensão do Artigo 50, parando assim a contagem decrescente até 29 de março.
Para começar, a proposta iria contra tudo aquilo que a primeira-ministra tem sublinhado ao longo dos últimos meses, ou seja, que não há dúvidas de que o Reino Unido irá sair da UE no final de março. Mas May não seria a primeira política a dobrar a coluna em questões de princípio; e o Brexit está longe de ser uma situação normal.
Faltaria então ter luz verde dos Estados-membros europeus. Segundo o que Bruxelas tem dito aos jornalistas, o mais provável era tal acontecer apenas numa situação em que fosse visível uma mudança de fundo (eleições, novo referendo ou nova proposta). E, contudo, nos últimos dias parece ter havido mais abertura para esta proposta, com fontes europeias a dizerem ao Guardian que há a possibilidade de estender as negociações até julho.
Oficialmente, a UE está a esperar para ver. “Vamos ver como é que May interpreta este resultado. Com calma e sem pânico temos de começar a prepararmo-nos para todas as opções”, pediu o negociador-chefe Michel Barnier numa reunião com os seus colegas, segundo o Politico, depois de a proposta ter sido chumbada em Londres.
Mas, em público, o próprio presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, deixou uma declaração enigmática no ar que pode ser interpretada como uma sugestão para que o Artigo 50 seja cancelado: “Se um acordo é impossível e ninguém quer um acordo, quem terá a coragem de dizer finalmente qual é a única solução positiva?”, perguntou. Por outras palavras, quem terá a coragem de lançar a ordem “Cancele-se o Brexit”.
If a deal is impossible, and no one wants no deal, then who will finally have the courage to say what the only positive solution is?
— Charles Michel (@eucopresident) January 15, 2019
Tempo esgota-se e Reino Unido sai sem acordo
No meio de tanto avanço e recuo e de tanta mudança para que tudo fique igual, um quarto cenário surge no horizonte — e ganha cada vez mais força. Por enquanto, o Reino Unido irá mesmo sair a 29 de março de 2019. E, se não houver qualquer solução até lá, sairá mesmo sem qualquer acordo.
É o sonho de vários hard Brexiteers, que gostariam de ver essa saída ‘à bruta’. “Não será nenhum pesadelo”, garantia esta terça-feira à noite Jacob Rees-Mogg, um dos conservadores mais radicais na questão do Brexit, na Sky News. E May pode decidir que, estando de mãos e pés atados, não tem outra hipótese se não a de deixar o tempo correr e arriscar essa solução que está carregada de maior incerteza do que qualquer outra.
Tudo o que foi negociado até agora cairia por terra. Desapareceria, por exemplo, o período de transição, previsto para que pudessem ser negociados acordos específicos por área e por país. De um dia para o outro, o Reino Unido passaria a ser um país estranho, sem qualquer relação (comercial, aduaneira ou jurídica, por exemplo) com todos os outros Estados-membros, pondo em risco as indústrias, o turismo, a imigração… uma lista sem fim.
Claro que, se decidir fazê-lo, May pode enfrentar mais uma rebelião no Parlamento. Não só os tories que defendem a manutenção da UE recusariam este cenário, como toda a oposição tentaria arranjar uma alternativa.
O Parlamento toma o controlo (Extensão do Artigo 50? Noruega+? Novo referendo?)
Qualquer um dos anteriores cenários pode por isso levar o Parlamento a tomar as rédeas da situação — mas qualquer solução só terá validade se conseguir reunir uma maioria. Uma das possibilidades é a de ordenar ao Governo a suspensão do Artigo 50 — que levanta todos os problemas já enunciados previamente e que dificilmente reuniria consenso na Câmara. Outra é a de descobrir um plano B suficientemente bom para apresentar em Bruxelas.
Essa é a ideia de alguns deputados, inclusivamente tories, que têm defendido a criação do chamado modelo Noruega +. Ou seja, a negociação de um acordo com a UE semelhante ao que a Europa tem com países do EFTA (onde se inclui a Noruega), mantendo uma união aduaneira com os europeus — o que resolveria o problema na fronteira da Irlanda do Norte. O problema? É altamente improvável que se reúna uma maioria em torno de um modelo destes, que, para a maioria dos Brexiteers, é visto como um recuo em toda a linha do mandato dado pelo referendo para sair do mercado único europeu.
Chegamos assim à última alternativa: a de que o Parlamento acabe por votar pela convocação de um novo referendo. Tanto Theresa May como Jeremy Corbyn têm rejeitado essa possibilidade para já, o que torna muito difícil de ela ser viável. Mas, à medida que o tempo passa e cada um se vê encostado à parede por razões diferentes, essa pode ser uma solução que acabe por surgir como bote salva-vidas para as carreiras políticas de ambos.
Dentro do Labour, cresce a pressão, liderada pelo deputado Chuka Umunna, para que Corbyn agarre esta proposta e a apresente como sua — e, no rescaldo do chumbo de May, a ministra-sombra Rebecca Long-Bailey chegou mesmo a assumir que “todas as opções estão em cima da mesa”.
“É uma situação estranha. Uma saída sem acordo ou um novo referendo são as duas opções óbvias que pairam sobre tudo isto, mas nem a primeira-ministra nem o líder da oposição estão preparados para dizer sim a uma delas”, analisava o jornalista Ian Dunt na noite desta terça-feira. É caso para dizer que, 15 dias depois do início de um novo ano, a frase de Kevin Schofield sobre a política britânica já pode ser adaptada a 2019.