Menos de uma semana separa as duas noites que assolaram o país com inundações e cheias, com o epicentro do número de ocorrências em Lisboa, centenas de pessoas afetadas, casas e empresas totalmente danificadas, com um rasto de destruição ainda sem previsão. As questões sucederam-se: o alerta foi dado a tempo? Foi eficaz? Podia ter sido feito mais ou melhor? Vários especialistas ouvidos pelo Observador deram opinião (e discordaram) sobre o que aconteceu nos últimos dias.
Alerta foi dado a tempo?
A resposta não é consensual. António Galamba, último Governador Civil de Lisboa, considera que “o alerta não chegou a tempo e horas” e destaca a necessidade de ser feito um trabalho de “forma sustentada” para que as pessoas incorporem no seu quotidiano que “tudo tem riscos”, mais ainda quando vivem em Lisboa.
“O aviso é dado de forma tardia, dado à Proteção Civil e depois difundido de forma tardia e de forma ainda mais tardia aos cidadãos. Boa parte deles tiveram perceção quando risco já estava a acontecer”, crítica. Aliás, para o antigo responsável a existência de alertas dispersos — do IPMA, da Proteção Civil e da Câmara de Lisboa — não ajuda as pessoas a terem “noções esclarecidas de quais são os riscos e como se devem comportar”.
Trata-se, diz, de um “problema estrutural”, em que não há uma real perceção da realidade e das responsabilidades. “Há alguns eventos a nível sísmico e de incêndios florestais, mas há outro tipo de riscos que nunca são devidamente ponderados”, acrescenta o antigo dirigente do PS.
Jaime Marta Soares, ex-presidente da Liga de Bombeiros Portugueses, discorda e está certo de que as informações seriam em “quantidade suficiente” se as pessoas tivessem noção dos perigos das alterações climáticas. “Nada é perfeito, mas a estrutura de alerta existe e é bem sustentada. Os portugueses é que acham que coisas só acontecem aos outros”, argumenta em declarações ao Observador.
A reação foi suficientemente rápida?
Marta Soares não hesita em defender os bombeiros (“a reação é sempre rápida”) e culpa as “mentalidades” dos portugueses. “Não chega uma reação rápida, é preciso sensibilizar e fazer ver às populações que não há milagres e que a estrutura faz muito, mas não há um polícia à porta de cada casa para evitar os ladrões”.
“Acho que estamos a enfrentar razoavelmente este gravíssimo problema. Quando a natureza está zangada, o homem não é capaz de a enfrentar porque não tem as mesmas armas”, sustenta o ex-presidente da Liga dos Bombeiros, dizendo que esta situação é “bem demonstrativa” que “depois de casa assaltada é que se põe trancas na porta”.
No programa Explicador, da Rádio Observador, António Nunes, atual presidente da Liga dos Bombeiros, recorda ainda que a intervenção dos bombeiros tem “resultados lentos” e não visíveis de imediato, em que a “primeira preocupação é não haver vítimas” — até ao momento registou-se uma vítima mortal entre as cheias de quarta e desta terça-feira.
Por outro lado, aos olhos de António Galamba, as reações foram “tardias”: “Houve territórios, por exemplo de Lisboa, que estiveram entregues a si próprios durante demasiado tempo, com os cidadãos expostos a situações de alto risco.”
Como é feita a articulação?
As entidades trabalham em “rede” entre si, sendo que as “informações do IPMA são transmitidas à Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil que depois difunde por todos os bombeiros e as populações”. Mas António Galamba levanta dúvidas, apontando para a existência de um “problema de desfasamento entre a estrutura de Proteção Civil e de condução política”, nomeadamente governamental. “Acima dos municípios não há nenhuma entidade que tenha a capacidade de ter esta perspetiva de integração e de articulação”, exemplifica.
E explica: na Proteção Civil existe uma estrutura ao “nível local, municipal, supramunicipal e nacional”, enquanto noutros níveis houve uma tentativa de trabalhar “o nível das comunicadas intermunicipais, mas manifestamente não parece que seja a solução porque em muitas delas os presidentes de câmara que têm funções estão sobretudo a pensar no seu território do que numa perspetiva mais abrangente”.
O último Governador Civil de Lisboa — cargo entretanto extinto, mas que tinha responsabilidades centrais ao nível da Proteção Civil — sublinhou que há um “desfasamento entre a dinâmica das realidades e a dinâmica das decisões”. “Por exemplo, um cidadão que viva em Sintra, trabalhe em Lisboa e atravesse a Amadora está sujeito a diversas tutelas, não tem nenhuma tutela que tenha uma perspetiva mais global e mais acima das quintinhas dos municípios”.
A acusação é clara: “Falha uma visão integrada.” Há várias estruturas no mesmo território e com diversos níveis de articulação, mas Galamba considera que estas “não têm rotinas de intervenção do quotidiano e — quando é uma situação de emergência — não há ninguém que consiga impor essas rotinas”.
Os militares são envolvidos?
António Nunes acredita que não deve ser colocada de parte a hipótese de “envolvimento de meios de apoio, designadamente de militares”, já que o sistema de Proteção Civil, “mesmo utilizando os privados e os meios das câmaras municipais”, pode precisar de apoio extra em determinadas situações.
“Vamos começar a ter desalojados, precisamos de retirar pessoas de zonas onde está o mapeamento feito como zonas críticas de alta vulnerabilidade… É uma operação tipicamente de Proteção Civil, de gestão de meios e de uma boa coordenação de meios em que os bombeiros são fundamentais numa primeira linha para salvamento de vidas e retirada de pessoas, mas é preciso encontrar um conjunto de mecanismos que possa conseguir resolver o escoamento de águas e a utilização de vias alternativas que têm de ser orientadas porque vai ter de haver esforço suplementar de forças de segurança”, explica o presidente da Liga dos Bombeiros.
Havia forma de prevenir esta situação?
A Câmara Municipal de Lisboa tem há muito prevista uma intervenção profunda no sistema de drenagem da cidade. Carlos Moedas apontou a 2025 para a conclusão dos dois túneis que fazem parte da obra, para o qual se estima um custo de 250 milhões de euros. Mas, com isto, o problema das inundações ficaria resolvido? O arquiteto paisagista Henrique Pereira dos Santos não sabe se é uma “boa ou má solução” ou até se o “custo/benefício” compensa.
“A ideia de que as cheias devem ser evitadas é uma ideia com uma muito baixa probabilidade de ter êxito em situações extremas e levanta um problema de fundo que é criar a sensação de que é segura a ocupação dos leitos de cheia e se em algum momento houver uma cheia este vai estar ocupado e isso vai ter consequências na vida das pessoas”, explica.
Sem dúvidas de que “a normalidade é haver cheias”, Henrique Pereira dos Santos realça que “umas vezes perdem-se bens, outras vezes perdem-se vidas — o que devemos tentar evitar — e quanto à perda de bens é uma questão de custo/benefício e os seguros são bons a fazer essa avaliação”.
O projeto da autarquia resolve entre 70 a 80% do problema e, na visão do arquiteto paisagista, poderá “funcionar bem nas [cheias] pequenas e intermédias”. E vai mais longe, dizendo que não seria “grave a Praça de Espanha ser alagada de vez em quando” e sublinhando que “as pessoas que vivem em zonas como Algés gostam de viver ali e sabem que pode inundar de vez em quando” e que olham para o “benefício que têm durante todo o outro tempo” por viver naquele local.
É possível fazer mais para resolver o problema?
Jaime Marta Soares recorda que Portugal tem “legislação aos montes“, mas aponta o dedo aos responsáveis por esta ficar a “engalanar as prateleiras da biblioteca da Assembleia da República e não passaram do papel”.
O ex-presidente da Liga Portuguesa dos Bombeiros não tem dúvidas que é preciso avançar para a criação de infraestruturas, ainda que sejam “caríssimas e complicadas”. “Têm de ser feitas, custe o que custar, para evitar que estas situações se voltem a repetir porque antes acontecia de x em x tempos e agora é a qualquer momento, com as alterações climáticas, e pode vir a ser catastrófico e fazer desaparecer determinadas zonas. Há que rapidamente começar a inverter este tipo de coisas e que as populações para que todos em conjunto possamos minorar estes problemas”, realça.