Em 1968, quando José Afonso gravou Cantares do Andarilho, o seu segundo LP, já não estava longe de imaginar o que se seguiria: que o disco, agora reeditado em CD e disponível pela primeira vez em streaming no Spotify (inaugurando uma série de reedições que continua com Contos Velhos Rumos Novos a 29 de outubro e Traz Outro Amigo Também a 26 de novembro), seria um rutura com a música portuguesa que se faria na altura – e que dali para a frente ele, Zeca, se tornaria a grande figura da música portuguesa e encetaria uma carreira tão brilhante e experimental quando pejada de incidentes.
As primeiras aventuras discográficas, datadas da década de 50, tinham como fonte o fado de Coimbra mas, em 1963, duas canções – “Os Vampiros” e “Menino do Bairro Negro” – insinuavam que José Afonso começava a apartar-se do seu universo inicial, ao criar baladas com raiz no folclore com a particularidade de (metaforicamente, já que estávamos em ditadura) atacarem os sistemas políticos e económicos da época, algo bem patente em linhas como “Eles comem tudo / eles comem tudo / e não deixam nada”, de Os Vampiros.
Mas no dia em que entrou nos estúdios da RDP (no Monte da Virgem, em Gaia), nesse ano de 1968, a principal preocupação de Zeca não era revolucionar a música portuguesa, nem cantar letras que sub-repticiamente criticavam a ditadura ou o capitalismo, mas sim simplesmente abrir a boca e cantar.
[já é possível escutar “Cantares do Andarilho” em formato digital, aqui através do Spotify:]
Seria de esperar que, 34 anos depois da sua morte, a iconografia de Zeca fizesse hoje parte do senso comum nacional, mas as neuroses deste génio ainda hoje são pouco conhecidas: Zeca, ao entrar no estúdio, reparou que se tinha esquecido dos comprimidos para os nervos e decidiu que não ia cantar, contou-me um dia Arnaldo Trindade, o fundador da Orfeu, editora pela qual o músico gravou a maior parte da sua obra, inclusive Cantares do Andarilho.
O que se seguiu é tão caricato quanto belo e merecedor da nossa empatia: segundo Arnaldo (e dando de barato que poderá haver aqui uma ponta de exagero, de modo a aumentar o carácter mítico das histórias de Zeca), o enorme Adriano Correia de Oliveira, extraordinário e esquecido baladeiros português, que era amigo pessoal de Afonso, ordenou que este tirasse os sapatos, e depois aplicou-lhe toda a sorte de pancadas nos pés descalços, pancadas que – dizia Adriano – havia aprendido no karaté, e ajudariam Zeca a relaxar. E segundo Arnaldo, assim foi: Zeca acalmou e “cantou que foi uma maravilha”.
Agora podemos rir-nos desta história, mas as neuroses de José Afonso não eram uma brincadeira: nascido em Aveiro, no ano de 1929, levou uma vida de andarilho desde cedo e foi para sempre transformado por uma trágica separação dos pais; pelo resto da vida seria hipocondríaco, insomne e incapaz de desempenhar os mais simples atos diários sem ajuda (era a sua mulher, Zélia, que o transportava por Lisboa, já que o artista se negava a tirar a carta e conduzir, ato que o enervava).
Em 1930, tinha Zeca um ano, seu pai (o juiz José Nepomuceno Afonso dos Santos) foi colocado em Angola como delegado do Procurador da República; em 1937 volta para Portugal, mas apenas durante pouco tempo, seguindo para Moçambique, onde o pai havia sido recolocado.
África marcá-lo-ia profundamente, desde a presença da natureza à música, passando pelas regras sociais dos locais; mas em 1938, o ainda pequeno José estava de novo em Portugal, desta feita em Belmonte, onde vivia o seu tio Filomeno, que além de presidente da Câmara local era igualmente um salazarista convicto. Foi ali que Zeca fez a escola primária, sendo obrigado a pertencer à Mocidade Portuguesa, o que para um miúdo que crescera na liberdade africana parecia um contra-senso.
Mesmo numa ditadura, a vida raramente se reduz ao preto e ao branco e o tio Filomeno gostava não só do seu sobrinho como de cantar e levava-o pelas serras a cantar com velhotas e velhotes – talvez seja projeção nossa imaginar que isto influenciou a obra que José Afonso viria a assinar, mas se o for não será uma projeção propriamente exagerada.
O grande drama da infância chegou em 1942: em 1939 os seus pais e irmã foram colocados em Timor – e foi lá que, em 1942, foram capturados pelos ocupantes japoneses. Devido à ausência de notícias, Zeca acreditou que a sua família havia morrido – e só em 1945 descobriu que ainda tinha família.
Tudo isto fez de José Afonso um ser irrequieto, o que, se por um lado lhe trazia neuroses, insónias e medos vários, por outro o tornou extremamente sensível a ritmos e melodias, um acutilante observador da condição humana e das suas injustiças, bem como um rebelde, que nunca deixou de estar em choque com o regime salazarista, o que lhe provocou dificuldades constantes, como proibições sucessivas de lecionar, que o levaram a emigrar mais que uma vez.
Portanto, em 1968 Zeca já era figura non-grata do regime, pai de filhos, uma voz respeitada entre os músicos mas ainda não tinha saltado para o patamar icónico que hoje lhe é reconhecido. Isso começa a acontecer com Cantares do Andarilho, o primeiro momento em que explorava a demanda que marcaria a sua carreira: afundar na tradição (primeiro a portuguesa, depois a africana também) e vir à tona com nova música na boca.
É possível que quem chegar hoje a Cantares do Andarilho, em particular se pertencer a uma geração mais nova, não identifique de imediato o grau de rutura que o disco representou na altura – para entender isto é preciso recordar que à época a música portuguesa era dominada pelo fado e pelo nacional-cançonetismo – e, convenhamos, Tony de Matos não era Zeca Afonso.
O folclore, apesar de ser o registo musical natural do povo, aquele que melhor retratava a vida das pessoas comuns, era visto pelas autoridades como coisa baixa e não passava na rádio nem na televisão – quem quisesse ouvir folclore tinha de estar no meio dos pobres, dos trabalhadores à jorna, dos operários, nas vindimas, nas desfolhadas, na matança do porco.
Mas Cantares do Andarilho, que é antes de mais um disco de baladas não demora a mostrar o brilhantismo de José Afonso: logo ao primeiro tema, “Natal dos Simples”, é impressionante a voz que escutamos, continua a ser impressionante, do timbre ao falsete no fim de cada frase, passando por aquela coisa africana de tornar uma melodia numa brincadeira quase infantil de sílabas e ritmo. Isto é, tecnicamente, uma balada, mas isto não é sequer o típico folclore português e só Zeca saberá onde foi buscar isto.
Ou onde foi buscar essa coisa de assombro que é “Vejam Bem” – talvez a primeira canção em que a voz de Zeca (perfeita de afinação, inacreditável na entrega de cada sílaba) surge – como tantas vezes surgirá daí para a frente – como que trespassada por uma tonalidade assombrada.
Esta tristeza, esta sensação de perda, de para-lá-do-desespero regressará disco após disco, conferindo à obra de José Afonso uma humanidade quase existencialista – e está também presente, neste disco, na espantosa “Canção de Embalar”, uma canção imensamente útil para passar certidões de óbito: se não se comoverem com isto então, lamentamos, mas estão mortos.
Há muito Zeca em potência em Cantares do Andarilho, muitas características que no futuro se tornariam imagem de marca e que aqui surgiam pela primeira vez, ainda tímidas: por exemplo, em “Resineiro Engraçado”, o primeiro tema tradicional do disco, a melodia é tratada de forma lúdica, saltitona, cheio de vocábulos inesperados (“ó i ó ai”), tudo marcas de Zeca-futuro. Mesmo o ritmo, ainda que baseado no folcore português, tem um balanço que antecipa o extraordinário trabalho rítmico que cantor e compositor executaria discos à frente.
As próximas reedições são os discos seguintes de José Afonso: Contos Velhos Rumos Novos (a 29 de outubro) e Traz Outro Amigo Também (a 26 de novembro), dois discos extraordinários que antecipam dois discos ainda mais extraordinários, Cantigas do Maio e Eu Vou Ser Como a Toupeira.
Acompanhar a obra de Zeca por ordem cronológica é descobrir como ele se vai libertando e arriscando cada vez mais, tendo cada vez mais ideias, e sendo cada vez mais consequente na aplicação destas. Em Contos Velhos Rumos Novos (1969), Zeca vai buscar as palavras às mais variadas fontes (“Bailia” parte de uma trova do século XIII, “No Vale de Fuenteovejuna” usa palavras de Lope de Vega e ainda há letras de Luís de Andrade e Ary dos Santos).
A ênfase no trabalho rítmico é notória em “Vai, Maria, Vai” e nesse espanto de canção negra e duro que é “Era de Noite e Levaram”; a instrumentação começa a fugir à exclusividade da viola – em “Bailia” surge uma trompa, no resto do disco encontramos cavaquinhos, harmónicas e até marimbas em “Já o Tempo se Habitua”, a primeira presença africana declarada na música de Zeca.
Traz Outro Amigo Também, de 1970, é talvez o primeiro disco de José Afonso em que ele já está na plena posse de todos os seus talentos, seja na canção política (“Os Eunucos”), na manipulação da tradição (na espantosa “Canto Moço”), no uso de influências africanas (em “Carta a Miguel Djé-Djé”, que é homenagem a um seu antigo empregado dos tempos de África), ou naqueles momentos de esgaçamento interior em que que Zeca era ímpar (“Epígafre para a arte de roubar” e “Moda do Entrudo”).
Zeca, nesta altura, já era Zeca, um génio sem limites, com uma imaginação fervilhante e uma sede de tudo fazer e experimentar – e daí até à morte, Zeca só iria mudar e arriscar mais e melhorar.
Quando José Afonso precocemente morreu (em 1987, aos 57 anos) já tinha inventado um mundo só seu, habitado por fado e música africana, ritmos do interior luso e de Angola, repleto das alegrias e tragédias da vida, dos amores e da luta pela liberdade. Esse mundo começa em Cantares do Andarilho.