Era como se algures num ponto da atmosfera houvesse um berço de tempestades a alimentar o planeta com um caos que horas depois viria a desabar em Lisboa. Umas atrás das outras, nuvens densas e muito brancas brotavam na atmosfera entre a Madeira e os Açores e encaminhavam-se em fileira exatamente na direção da capital portuguesa. Nada as desviava do caminho.
Quem, sem entender, olhasse para as imagens de satélite transmitidas nos monitores do Instituto Português do Mar e da Atmsofera (IPMA) ao longo da madrugada desta terça-feira podia desvalorizar essas formações: pareciam pequenas e, de tão claras e redondas, aparentemente inofensivas. Mas foram elas a dar origem às chuvas da noite passada — as mesmas que mergulharam Lisboa em cheias ainda mais intensas do que as da semana passada.
O comboio de nuvens nasceu no Atlântico. Primeira estação: Lisboa
É o resultado de uma instabilidade da atmosfera, que está extremamente saturada de vapor de água. Nos últimos dias, o país está a ser afetado por uma massa de ar vinda dos trópicos depois de atravessar o oceano, carregando muita água em suspensão. É quente, mas carregada de água, e condensa em nuvens muito altas ao encontrar ar mais frio. Chegando ao limite da sua capacidade, as nuvens descarregam grandes quantidades de chuva.
Foi precisamente o contrário do que se passa no norte da Europa, que está no percurso de uma massa de ar polar que provocou queda de neve em Londres. “Tem a ver com as propriedades termodinâmicas do ar”, resumiu Jorge Ponte ao Observador: “Quanto maior a temperatura, mais capacidade tem para reter vapor de água sem a precipitar. O ar frio, assim que ganha um pouco de humidade, tem de a precipitar porque tem pouca capacidade de a reter. Não consegue ter muito armazenamento.”
É também por isso que, quando a Península Ibérica foi atingida pela tempestade Filomena em janeiro de 2021, se registaram nevões em Espanha e um frio seco em Portugal. Inicialmente, os países estavam sob a influência de uma massa de ar muito fria vinda do polo norte. Mas outra massa de ar quente e húmido vinda do sudoeste da Península Ibérica atingiu esta região e alimentou as nuvens com mais vapor de água, que depois precipitou sob a forma de neve.
Desta vez, não há nenhuma massa de ar frio a enfrentar o ar húmido e quente vindo do Atlântico logo por cima de Portugal e Espanha. Por isso, a água demora mais a cair: acumula-se em grandes quantidades e descarrega
Estação registou 120 litros de chuva por metro quadrado. Valor real deve ser maior
No total, entre as 9h de segunda-feira e a mesma hora desta terça-feira, registou-se numa das estações do IPMA — a do Jardim Botânico Tropical — 120,3 milímetros de precipitação. Ou seja, por cada metro quadrado de área, acumularam-se 120,3 litros de chuva. O valor real deve ser superior a esse: as estações geofísicas só detetam o que chove num ponto específico. É muito improvável esse ser o local mais crítico.
É muito mais do que se estima ter caído na quarta-feira passada. Na verdade, valores desta ordem não têm precedentes nos registos meteorológicos. É preciso recuar até 2008 para encontrar o último recorde em Lisboa: 118,4 milímetros na estação no Jardim Botânico, em Lisboa. Em 1967, nas 24 horas entre os dias 25 e 26 de novembro, foram 112,5. Morreram 700 pessoas e 20 mil casas ficaram destruídas — o pior desastre desde o terramoto de 1755.
O maior valor da precipitação em 24 horas de sempre em todo o país foi registado do Pico do Arieiro, na Madeira, também em 2008: foram 346,8 milímetros. Ou seja, quase 350 litros por metro quadrado. Em Portugal Continental, foram 220 milímetros em 1977 nas Penhas da Saúde.
Os valores de precipitação registados esta madrugada indicam que a fase mais crítica ocorreu entre as quatro e as seis da manhã: mais de metade de toda a chuva caída ao longo dessas 24 horas (65,9 milímetros) acumulou-se nesse intervalo de apenas duas horas. Foi também nesse intervalo de tempo, por volta das 4h30, que o IPMA agravou o aviso meteorológico para o nível vermelho.
Em declarações ao Observador, um dos meteorologistas de serviço, Jorge Ponte, explicou o motivo: até àquela hora, as estações já tinham registado um máximo de precipitação de 47 milímetros, a maioria entre as 2h30 e as 4h30. Com mais nuvens a chegar de sudoeste, seria provável que se ultrapassasse os 60 milímetros de precipitação em 24 horas. No fim de contas, excedeu-se mesmo o dobro disso.
Convecção: o fenómeno que transforma a atmosfera numa panela de água ao lume
As próximas horas devem trazer mais um período de acalmia a Portugal Continental — na Madeira, continuam ativos os avisos de precipitação —, mas será sol de pouca dura. Neste momento, os únicos avisos meteorológicos ativos no continente dizem respeito à agitação marítima e abrangem todos os distritos costeiros entre Leiria e Faro. Mas a manhã de quarta-feira vai trazer novos avisos amarelos de precipitação em todos os distritos de Portugal Continental com exceção de Bragança.
Segundo o IPMA, estes fenómenos acontecem por causa de um fenómeno chamado convecção, isto é, “um processo de transferência de energia calorifica na atmosfera, em que um corpo portador de calor se desloca de um local para outro”. É o mesmo que acontece quando se coloca uma panela de água ao lume: a camada mais próxima do bico do fogão aquece, torna-se menos densa e sobe; enquanto a camada mais superficial, sendo mais fria, é mais densa e desce. Na atmosfera acontece o mesmo entre o ar quente e o ar frio, formando correntes de convecção que dão origem a nuvens muito altas e saturadas de água.
As novas ondas de precipitação a caminho do país surgirão porque uma massa de ar quente, muito rica em água, está a viajar do leste da Madeira em direção ao continente. Tal como aconteceu esta noite, essa água vai condensar em nuvens extremamente altas — “células”, como lhes chamam os cientistas, que serão muito ativas. A atmosfera está muito instável, com movimentos verticais ascendentes cheios de humidade até à troposfera”.
Quando isso acontece, esperam-se “trovoadas, aguaceiros fortes — precipitação intensa intermitente (que podem ser sob a forma de neve, chuva e granizo), ventos fortes (com rajadas excedendo 90km/h) e tornados”. A boa notícia? Provavelmente não será pior ou sequer igual ao fenómeno que atingiu o país na última semana e não haverá tanta precipitação como a que se registou esta noite. A partir de quinta-feira, o tempo deve dar tréguas ao país e a situação normalizará no sábado.
A nuvem com 9.000 metros que iniciou o caos em Lisboa
É um fenómeno diferente do que ocorreu na noite de quarta-feira, quando Portugal Continental “foi condicionado pela presença de uma depressão centrada a leste dos Açores” que provocava um fluxo de sudoeste sobre o país.
Lisboa foi afetada por uma nuvem com nove quilómetros de espessura, resultado desse bloqueio — isto é, uma vasta área de pressões atmosféricas elevadas, normalmente associadas a bom tempo — que estava praticamente parado no norte do Atlântico. E que tem dois efeitos: ao colidir com uma massa de ar mais frio, satura a atmosfera de humidade; e empurra para sul as depressões (áreas de baixa pressão atmosférica, associadas ao mau tempo) que existiam a oeste.
Essa nuvem era, na realidade, o resultado da junção de várias nuvens que se tinham formado em linha, mas que acabaram por se juntar. O distrito, mais precisamente a região entre a Grande Lisboa e Lisboa Oriental, estavam assim no caminho da área mais carregada desta gigantesca nuvem: uma linha com 60 quilómetros de comprimento, mas apenas 10 a 15 quilómetros de largura, carregada de chuva e que demorou perto de uma hora a atravessar o país longitudinalmente, de sul para norte. Ou seja, caiu muita chuva durante muito tempo, sempre na mesma região.
Na noite passada, duas coisas permitiram que a situação não se tornasse ainda mais caótica do que se revelou ser: as nuvens que se dirigiram para Portugal não se uniram numa só, como aconteceu há menos de uma semana; e viajavam muito mais rapidamente. Por isso é que havia períodos de precipitação muito forte e intensa, mas outros períodos de acalmia, entre a partida de uma nuvem e a chegada de outra.