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Os três filhos Roy, bilionários, a fazerem um lanche noturno em casa da mãe inexistente, como outros putos quaisquer
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Os três filhos Roy, bilionários, a fazerem um lanche noturno em casa da mãe inexistente, como outros putos quaisquer

Os três filhos Roy, bilionários, a fazerem um lanche noturno em casa da mãe inexistente, como outros putos quaisquer

O final de "Succession", último episódio: a história como tinha de ser contada, até à cena derradeira

Não deixa saudades porque nunca faria uma pieguice dessas. Não desilude porque nunca alimentou ilusões. Chegou ao fim uma das melhores séries dos últimos anos. Aguentem, suas crianças do papá.

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[ALERTA SPOILER: este artigo contém detalhes sobre o último episódio de “Succession”. Se não os quer conhecer, não leia]

“With Open Eyes”, “De Olhos Abertos”, é o título do episódio final de “Succession”. É um verso de “Dream Song 29”, poema de John Berryman, retirado do livro 77 Dream Songs com que venceu o Pulitzer em 1964. Alguém na internet o notou há algum tempo: todas as temporadas de “Succession” terminam com um episódio com título extraído desse mesmo poema: “Nobody is Ever Missing” fecha a primeira, “This is not for Tears” a segunda, “All the Bells Say” a terceira. Todos se reportam a Kendall (o crime dostoievskiano na primeira, o desafio à liderança do pai na segunda, a confissão perante os irmãos na terceira) – e é Kendall que vai fechar mais uma vez a temporada — e a série. De olhos abertos.

Há quem interprete o poema como um texto acerca do sentimento de perda irreversível depois da morte de um pai e outros como a expiação da culpa depois de uma traição matrimonial. Berryman passou por ambos: o suicídio do pai e o divórcio, na sequência de uma traição. Portanto, é escolher. Só não venha à espera de encontrar alguma espécie de colo no fecho de “Succession”: a série não seria justa com ela mesma se tratasse melhor os espectadores do que as próprias personagens. Somos todos órfãos. Ficamos todos órfãos. “A vida não é agradável”, disse Kendall, profeticamente, na semana passada. “Quem diz que nos ama também nos f***”. Ninguém nos virá salvar.

De olhos abertos

É com uma sólida longa-metragem de 84 minutos que Jesse Armstrong termina aquela que é talvez a menos unânime das mais aclamadas séries dos últimos anos, tão cheia de admiradores como de pessoas que “não acham nada de especial”, “não percebem o hype”.

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Roman, para nos lembrar o que o genérico de abertura de todos os episódios sempre insistiu em reforçar: sempre foram crianças

Esqueçam a América. O estado da nação, o paralelo com o país, a situação política, são praticamente esquecidos no desfecho da história, reduzidos à informação de que, provavelmente, a vitória do candidato “nazi” será, afinal, travada nos tribunais. Foco total na família que é a empresa, que é a família. Começamos com Kendall (Jeremy Strong) a contar votos no Conselho de Administração, quem está pela manutenção da Waystar nas mãos da família Roy e quem está pela venda ao império de streaming, apostas, redes sociais, desporto e etc, do estrangeiro Lukas Matsson (Alexander Skarsgard). A seguir, vamos para Shiv (Sarah Snook), com Matsson, a fazer precisamente o mesmo: contas. Há 13 votos, ninguém tem a certeza de ter os sete necessários à vitória e não sabem onde anda Roman (Kieran Culkin). Pelo meio, vemos pela última vez o genérico da série – e notamos o óbvio: são crianças. Sempre foram. Todo o genérico mostra os Roy em crianças, nas suas brincadeiras de meninos ricos, nas suas pegas de irmãos, à mesa do pai que já não se senta à cabeceira. Nada mais do que crianças, agora – quem sabe, sempre – órfãs.

Kendall sempre convencido de que continua no controlo, Matsson fugidio, Shiv e Tom (Matthew Macfadyen) numa última conversa das deles: ele apenas preocupado em saber se continuará a ter emprego, ela num dia ímpar a sugerir que se deem mais uma oportunidade antes do divórcio. Falam de uma “separação de veludo”, à checoslovaca, da conveniência de se apaixonar pelas oportunidades logísticas, da vantagem de já conhecerem os piores pensamentos um do outro. Mas Tom parece já ter desistido desta empresa – e Shiv não se percebe bem porque ainda não fez, afinal, o mesmo.

O episódio final que, verdadeiramente, nos interessa, está a acontecer em casa da mãe do trio de meninos Roy. Prolonga-se por uma noite e por todo o dia e noite seguintes. Shiv e Kendall lutam pelo voto de Roman que, ao acordar, nos deixa um ligeiro foreshadowing de como tudo acabará: “a festa dos escorpiões!”

De repente, estamos todos em casa de Lady Caroline (Harriet Walter), a mãe menos maternal da história da televisão: uma mansão nas Barbados que “continua cheia de infiltrações”, lamenta. Foi lá que Roman se escondeu depois do confronto com os manifestantes nas ruas e é lá que os irmãos o vão encontrar para tentarem garantir o voto para os respetivos partidos na luta pela Waystar – “Tive uma discussão com alguns meus teus sobre os méritos da democracia liberal”, diz Roman a Shiv, para explicar os pontos e pensos que tem no rosto.

Fora dali, os Roy afastados ou por casamento lutam pela vida. Greg (Nicholas Braun) ronda Tom que ronda Matsson. E a surpresa é que este quer aquele para CEO, em vez de Shiv. “Não preciso de um sócio, preciso de um testa-de-ferro”, “não preciso de ideias, tenho montes de ideias”, “preciso de um amortecedor humano, uma esponja de dor”. Porque o que ele vai fazer à Waystar não será mais meigo do que Logan. Aliás, será o nível seguinte disso: “Logan Mark II”, diz Matsson. Um upgrade de crueldade. Quanto a Shiv, confessa que a quer comer. “Um bocadinho”. Ao marido. “Desculpa se isto te deixa desconfortável…” “Não, não. Somos homens”, facilita Tom. Porque complicaria?

A festa dos escorpiões

Mas o episódio final que, verdadeiramente, nos interessa, está a acontecer em casa da mãe do trio de meninos Roy. Prolonga-se por uma noite e por todo o dia e noite seguintes. Shiv e Kendall lutam pelo voto de Roman que, ao acordar, nos deixa um ligeiro foreshadowing de como tudo acabará: “a festa dos escorpiões!”, diz, ao vê-los de manhã. Shiv não está para colaborar: “O pai morreu e vocês agarraram na coroa e deixaram-me de fora”; “Desculpem ter ganho. Joguei melhor. Aguentem como homens e engulam”.

Matsson ao centro, à procura de um brinde, a mover constantemente as peças do jogo que tanto gozo lhe dá

Mas todo este plot vai evoluir quase como um episódio autónomo, com as peças a mudarem, várias vezes, de posição. A ilusão de que o débil estado físico de Roman tivesse, enfim, despertado em Lady Caroline instintos maternais termina quando descobrimos que, afinal, apenas tenta reter ali os filhos para que o marido Peter (Pip Torrens) e um amigo “que veio de propósito do Mónaco” lhes apresente “um esquema”, uma ideia qualquer de negócio para o futuro da Waystar que não chegamos a perceber nem importa. Kendall descobre que Matsson deixou cair Shiv e que procura outro CEO e aqui está ele, de novo, a pedir aos irmãos que fiquem todos do mesmo lado: do lado dele.

Muita da arte de “Succession” acontece nisto: em como parece que estamos sempre exatamente no ponto onde começámos há quatro anos, sem nos fazer perder o interesse. Mas, desta vez, tudo vai mesmo avançar para outro lugar. Inevitável.

Quem tem mais legitimidade para suceder a Logan no trono, afinal? Discutem. Percebem que o trono foi prometido a todos, a cada, à vez. Esse pai que tanto admiram esteve sempre a dividi-los e a alimentar a competição, como pequenos cavalos ou cães. A Roman prometeu no fim da vida; a Shiv antes, a meio da série; e a Kendall, sabemos agora, logo aos 7 anos, numa loja, ironicamente, de doces. “Eu fui o último a quem ele prometeu!”, diz Roman, “e eu fui o primeiro”, argumenta Kendall. “E eu?”, tenta Shiv. Que credibilidade teria?, aponta Kendall. “Ainda ontem vendias a ladainha do nosso adversário”. Promete a Shiv a ATN, ou seja, a fatia dos media tradicionais, e “podes salvar o mundo”, a Roman as redes sociais “e podes fazer merda outra vez”. Dividem domínios como os viquingues, serão imparáveis.

Tal como, ao contrário de muitas outras ficções contemporâneas, não cedeu nunca ao espírito do tempo. Conta o que tem para contar, até ao fim. E não é bonito.

Kendall está a ganhar, percebemos isso – estamos mesmo perto do fim. Cai a noite, Kendall mergulha no mar, sente-se o perigo. Shiv e Roman debatem-se: matamo-lo numa brincadeira acidental? “A ele, odeio-o”, diz Shiv, “mas de ti tenho medo”; “ele seria insuportável, mas tu serias um desastre”. Olham Kendall, rodeado de água, a mesma água em que se afogou, por culpa dele, o empregado do casamento de Shiv. Que ia comprar droga para ele. Que ele não salvou. Shiv e Roman nadam até lá: “vamos ungir-te”, decidiram. “Fica com o brinquedo”. Cederam, finalmente. Sabem que ele é o melhor para o lugar. A luta chegou ao fim.

E então, aquele pequeno grande plot termina com uma das cenas mais brilhantes de “Sucession”: os três filhos Roy, bilionários, a fazerem um lanche noturno em casa da mãe inexistente, como outros putos quaisquer. A misturarem o pouco que há no frigorífico, a partilharem as pontas do pão de forma, a fazerem mistelas nojentas que o novo rei tem de beber até ao fim, se quer mesmo ser rei.

Tudo no lugar certo. Afinal, “Succession” também é capaz da salvação. Também seria, se a quisesse. Mas só nos quis mostrar isso mesmo, porque o que tem a dizer é outra coisa. Tal como, ao contrário de muitas outras ficções contemporâneas, não cedeu nunca ao espírito do tempo. Conta o que tem para contar, até ao fim. E não é bonito.

Estilo império

Terceiro ato. 35 minutos para o fim. A banda sonora triunfante não deixa margem para dúvidas. Nem os fatos estilosos, nem o jato privado com que aterram: os Roy estão de volta e vão levar tudo com eles. Param na mansão que foi do pai e que agora é de Connor (Alan Ruck) e Willa (Justine Lupe) para verem com que móveis e objetos querem ficar, até porque ela já comprou um sofá de pele de vaca e outras coisas e precisa de espaço para as trazer. Almoçam vendo um vídeo antigo do pai, em que Logan (Brian Cox) troca piadas com a família e os diretores da Waystar e canta uma velha canção de folclore com qualquer coisa que se parece, estranhamente, com um sentimento.

Shiv (Sarah Snook): decisiva ou previsível? Jogadora ou instintiva?

“Sou eu”, diz Tom a Shiv, “foi a mim que ele escolheu para novo CEO”. Não acreditaríamos, mas o silêncio sepulcral da cena diz-nos que é a sério. Shiv passa-se. “Ele escolheu-te a ti?! A porra dum fato vazio?!”, as palavras simpáticas de quem, ainda no início do episódio, propôs àquele fato vazio ainda lutarem pelo casamento. Tom e Greg pegam-se à bofetada, Matsson está finalmente nervoso. Parece mesmo que os “heróis” vão ganhar.

Os irmãos entram na Waystar para a votação decisiva. O rosto e o corpo de Kendall pedem silenciosamente a Shiv e Rom autorização para se sentar no lugar do pai. Eles assentem. Finalmente. O trono. Em volta, a capa da Time com o rosto de Logan, todos os artefactos bélicos colecionados ao longo de uma vida, o topo do império romano. Roman está terrivelmente frágil, ainda queria ser ele naquele lugar, mas é tão fraco… Kendall abraça-o. É uma cena terrível, duríssima, é um abraço e quase um estrangulamento, uma agressão. Apertam-se um contra o outro, a ferida na testa de Roman contra o ombro de Kendall. Mas quem força quem? É masoquismo ou sadismo? Amor ou morte? São ambos. São todos. Não se sabem amar de outra maneira.

Mas ainda faltam 15 minutos. Entram, por fim, para a votação da venda. Uns sins, uns nãos. Roman vota não, Kendall celebra. Shiv hesita. Tem dúvidas. Sai. Ninguém quer acreditar. Está 6-6. Falta o voto decisivo. Shiv ainda tem dúvidas. Outra vez. Kendall vai atrás dela. Estamos a 10 minutos do fim, ou cinco, e “Succession” está tão em dúvida como há quatro anos. Quem sucede a Logan Roy?

No fim, toda a tragédia salta cá para fora. Todas as acusações. Todas as memórias, falsas ou verdadeiras, todas as trocas de palavras que faltavam, todas as contracurvas.

“Estás na dúvida?”, grita Ken. “Entre ficarmos com a empresa ou entregá-la ao Tom e ao filho da puta que matou o pai?” Toda a tragédia salta cá para fora. “Não podes ser CEO. Mataste uma pessoa”, diz ela. “Não matei! Criei uma falsa memória! Eu nem sequer estava lá!” Junta-se Roman, trocam-se mais gritos, agressões, insinuações horríveis. “Isto é a única coisa que eu sei fazer! Se perder isto, eu morro!”, diz Ken. Shiv sai. Quando Kendall regressa à sala da votação, a contagem já aconteceu: 7-6. A Waystar vai ser vendida à GoJo. Kendall perdeu.

É a sua natureza

Porque é que Shiv fez isto, se perdeu a empresa para o marido que odeia e o tipo que a atraiçoou? Porque, como em tantas guerras de miúdos, se não era para ela, também não podia ser para nenhum dos irmãos. Mas assim ela também vai ao fundo? E voltamos a pensar na água. A água em que se afogou o rapaz talvez por culpa de Kendall, a água em que Kendall não se afogou, nem dessa vez, nem há pouco, em casa da mãe. Recordam-se da fábula, aqui nunca nomeada? Do escorpião e da rã? “A festa dos escorpiões”, disse Roman quando os viu a discutirem de manhã, mas Kendall não é um escorpião, ou já se teria afogado na água antes. É? Mas Shiv. O que lhe chamou Tom uns episódios antes, quando lhe ofereceu um presente de reconciliação? Um escorpião. Um pisa-papéis acrílico com um escorpião. Que ela odiou. Porque é que ela os levou a todos ao fundo? É a sua natureza.

Kendall, como nos créditos d'"Os Sopranos". Cada um decida o que acontece depois

Tom entra triunfante, para a consagração. E Greg. E Matsson e a sua entourage sueca. Também Shiv está ali. Até Roman fica para assinar os papéis (mas não aceita pousar para a foto). Nunca os lambe-botas chegaram tão longe.

Tom e Shiv saem de carro, dão as mãos, o mais funesto casal real que nos vem à memória (e haveria muitos candidatos). Kendall senta-se num banco em Battery Park, extremo sul de Manhattan. Olhos bem abertos. Desfeito. Olha o mar. Uns metros atrás, guarda-o o segurança Colin (Scott Nicholson), cuja colaboração pediu no penúltimo episódio, na altura não percebemos porquê ou para quê. Kendall vai atirar-se à água? Vai pedir a Colin que o mate e atire à água? Colin é o homem que sabe de tudo, que, a pedido de Logan, limpou os vestígios que incriminariam Kendall no caso da morte do rapaz. Entram os créditos. Como n’ “Os Sopranos”, cada um decide, na sua cabeça, o que aconteceu a seguir.

Mas não se ponham com salvações. Não é o sítio. Perdemos, como Kendall. “Succession” entra para o cânone. Venha outra série tão consistente e adulta como esta. Mas vai demorar.

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