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O golpe que nunca existiu, mas podia ter derrubado Salazar

O golpe de Botelho Moniz não existiu porque foi na verdade um pronunciamento. Mas também quase não existe na nossa memória porque Salazar quis ocultar a Abrilada de 1961. Ensaio de Bruno Cardoso Reis.

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A 13 de abril de 1961, portanto, há seis décadas , Salazar esteve à beira de ser afastado do poder por um movimento militar de que a maioria dos portugueses nunca ouviu falar. Não é de estranhar. Os fracassos raramente merecem muito destaque na escrita da história ou deixam grande marca na memória coletiva. Tanto mais quanto na época Salazar fez tudo para abafar a seriedade da ameaça por que passou. Na verdade, quem acabou literalmente apeado há sessenta anos dos seus comandos, funções e viaturas oficiais foram os chefes militares que procuraram derrubar Salazar, a começar pelo ministro da Defesa, o general Júlio Botelho Moniz (n.1900-m.1970). O evento ficou conhecido entre os historiadores precisamente como o Golpe de Botelho Moniz ou a Abrilada de 1961. Alguns chamaram-lhe o golpe militar mais mal preparado da história portuguesa. Mas na verdade tratou-se de um pronunciamento militar com importante apoio dos principais responsáveis das Forças Armadas e reais hipóteses de sucesso num momento decisivo da história portuguesa, quando se iniciavam as campanhas de combate à guerrilha independentista em Angola. Quais as origens deste movimento de militares contra um regime salazarista fundado por militares? O que sucedeu e o que determinou o fracasso deste movimento liderado pelo general Botelho Moniz? Quais foram as consequências de tudo isto e a sua ligação com o 25 de Abril de 1974?

Forças Armadas divididas num país ao rubro

Tudo começou, como com o 25 de Abril de 1974, com queixas internas e tensões corporativas nas Forças Armadas. Mas tudo avançou graças a uma grave crise de legitimidade do regime salazarista. Desde logo provada pelas alegações de fraude nas eleições presidenciais de 1958 – as primeiras em que um general no ativo, Humberto Delgado, um dos oficiais do 28 de Maio de 1926, concorreu contra o regime e mobilizou enormes multidões, recusando desistir. Depois agravadas pelo chamado caso do bispo do Porto, que pôs em questão de forma estrondosa que ser católico e ser salazarista fossem naturais sinónimos.

Para o que aqui nos interessa, importa sobretudo que nos anos anteriores a 1961 cresceu a insatisfação no seio dos altos escalões da Forças Armadas com o coronel Santos Costa. Este último era o braço direito de Salazar desde a década de 1930 para as questões militares. E geria com mão de ferro os militares, nomeadamente, desde 1950, como ministro da Defesa. Além do desgaste natural de um consulado de duas décadas, Santos Costa perdera legitimidade numas Forças Armadas que se tinham profissionalizado e internacionalizado por via da sua participação na NATO e de uma formação cada vez mais exigente. Santos Costa apoiou muitas mudanças, até para livrar o regime dos velhos generais republicanos, mas ele próprio não passou por elas. Delgado deu voz a esta tensão no seio da corporação militar citando “um camarada”, “um general em alta posição”, segundo o qual Santos Costa era um “medíocre oficial na Infantaria, sem [o curso de] Estado Maior”, que “exerce há 22 anos uma horrível ação deletéria”. Claro que Humberto Delgado era, em 1958, parte interessada. Mas é relevante que achasse por bem escrever nestes termos, precisamente ao general Júlio Botelho Moniz.

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Conta Marcelo Caetano: “Julgavam-me inimigo do ministro da Defesa”. Efetivamente, Caetano e Santos Costa eram vistos como chefes informais e rivais da linha mais moderada e da linha mais dura do regime salazarista. Portanto, de acordo com testemunho do próprio Caetano, este último tomou conhecimento, mas não denunciou a Salazar esta dissidência militar. Ter-se-ia, sempre a acreditar no seu testemunho, limitado “a sorrir e a dizer: Ah, sim!’”.

Outro testemunho importante é Marcelo Caetano, que, nas suas memórias, nos relata que “houve várias conspirações contra Santos Costa”. Concretamente refere que “por 1957”, num banquete oficial, o Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, “que fora anteriormente amigo de Santos Costa, mas depois se desaviera com ele, chegou-se ao pé de mim e disse-me em grande confidência: ‘Vê aquele grupo de generais? Estão todos na conspiração contra Santos Costa!’” Quem era este CEMGFA? O nosso general Júlio Botelho Moniz, que desde 1955 exercia as funções de chefe máximo das Forças Armadas. Uma tal confidência mostra-nos que não devermos subestimar a importância política de meros eventos sociais, mas também que Botelho Moniz confiava em Marcelo Caetano, que era então, ministro da Presidência de Salazar. A razão dessa potencialmente arriscada confidência foi prontamente esclarecida pelo próprio Caetano: “Julgavam-me inimigo do ministro da Defesa”. Efetivamente, Caetano e Santos Costa eram vistos como chefes informais e rivais da linha mais moderada e da linha mais dura do regime salazarista. Portanto, de acordo com testemunho do próprio Caetano, este último tomou conhecimento, mas não denunciou a Salazar esta dissidência militar. Ter-se-ia, sempre a acreditar no seu testemunho, limitado “a sorrir e a dizer: Ah, sim!’”. E afirma para memória futura que “não sabia que houvesse tal conspiração” ou “que o próprio Chefe do Estado Maior General” das Forças Armadas, o dito Botelho Moniz, “andasse metido nela”. Evidentemente deixou de ser o caso a partir dessa data. Este padrão de comportamento de Marcelo Caetano, sem um comprometimento claro, mas também sem rutura ou denúncia destes conspiradores militares manteve-se nos anos seguintes, inclusive durante a Abrilada de 1961, em que abundaram especulações de que seria ele o nome pensado para substituir Salazar como chefe do governo no caso de Botelho Moniz assumir o poder.

Salazar escolhe um almirante e paga o preço

A dissidência militar que levou à Abrilada de 1961 tinha, portanto, raízes já antigas e refletia um crescendo de rivalidades pessoais, políticas e corporativas no interior do regime salazarista. Um exemplo destas tensões foi a recusa por parte de Salazar em apoiar a reeleição do general da Força Aérea, Craveiro Lopes, para Presidente da República, em 1958. O candidato apoiado por Salazar e o seu regime foi o ministro da Marinha, o almirante Américo Tomás. Esta decisão resultou de Salazar ter alguma noção destas movimentações políticas e militares. E, consequentemente, de ver como um risco inaceitável poder estar alinhado com Caetano e Botelho Moniz o próprio Presidente da República, Craveiro Lopes. Efetivamente, o politicamente ingénuo Presidente da República teria confessado a Salazar que, se ele estivesse realmente cansado de décadas no poder e desejoso de regressar a Santa Comba, como tantas vezes afirmava, então ele, Craveiro Lopes, via Caetano como um digno sucessor. Convém lembrar que, de acordo com a Constituição de 1933, o Presidente da República tinha o poder de legalmente demitir Salazar da chefia do governo. A escolha de Américo Tomás foi, portanto, uma forma de Salazar garantir que no topo da hierarquia política e militar estaria uma figura que lhe era inteiramente leal, uma opção que se revelou crucial para evitar ser afastado do poder em Abril de 1961. As acusações credíveis de fraude nas eleições presidenciais de 1958 reforçaram até a ligação política umbilical de Tomás a Salazar: um não sobreviveria politicamente sem o outro. Mas esta opção presidencial de Salazar também teve um custo elevado: aumentou ainda mais as tensões entre os ramos das Forças Armadas e enfraqueceu o predomínio inquestionável sobre os militares que Salazar vinha consolidando desde a década de 1930.

O resultado mais imediato desta opção de Salazar por Américo Tomás foi o seu regime ver-se confrontado, pela primeira vez na sua história, com uma candidatura presidencial que foi até às eleições de um carismático general no ativo: Humberto Delgado.

É o próprio almirante Tomás quem, nas suas memórias, resume os problemas nas Forças Armadas resultantes da “solução dada à questão presidencial”, em 1958, com a escolha do seu nome para o cargo. Afirma que assim se “privara o Exército de ter, direta ou indiretamente, na sua posse [sic] a chefatura do Estado, possivelmente considerada já como feudo seu, desde o 28 de Maio”. Recorde-se que era do Exército o Marechal Carmona, presidente desde 1928 até à sua morte em 1950. Mas também o era originalmente o seu sucessor, Craveiro Lopes, ou o próprio Humberto Delgado, pois só em Julho de 1952 a Força Aérea se tinha constituído como ramo autónomo. Para o almirante Tomás defender esta tese era evidentemente conveniente, pois eliminava da discussão relativamente às eleições de 1958 questões relativas ao seu perfil pessoal. É evidente que a séria, quase fatal crise do regime salazarista entre 1958-1961, não se pode reduzir a uma rivalidade corporativa entre ramos das Forças Armadas. Mas também é claro que estas tensões corporativas são muito relevantes. Nomeadamente as queixas de importantes setores do Exército e da Força Aérea de que os poderes instalados favoreciam a Marinha foram importantes na Abrilada.

O resultado mais imediato desta opção de Salazar por Tomás foi o seu regime ver-se confrontado, pela primeira vez na sua história, com uma candidatura presidencial que foi até às eleições de um carismático general no ativo: Humberto Delgado. Fora um dos tenentes do 28 de Maio de 1926, era um histórico do regime, mas, tendo passado pelos EUA e entrado em rutura com Salazar, depois de algumas hesitações iniciais, acabou apoiado pelo conjunto da oposição. Ora, o próprio Delgado terá afirmado a Marcelo Caetano: “Se Craveiro Lopes fosse candidato à reeleição ele, Delgado, não se proporia, porque não queria atravessar-se no caminho de um camarada da sua arma. Se não…”

É verdade que as memórias são a continuação da política por outros meios. Pode desconfiar-se que um tal relato seja politicamente interessado. Mas se o objetivo de Caetano era caluniar Delgado poderia ter avançado afirmações bem mais danosas. Mais, este não é o único testemunho de que Humberto Delgado foi fortemente marcado por este tipo de identidade corporativa e rivalidade militar. Isso fica claro numa carta publicada de Delgado aos seus “camaradas”, os generais Chefes do Estado Maior, a apelar para que evitassem a posse do almirante Tomás. Nessa missiva reclamava com 30 anos de serviço ao Exército, sublinhando o facto, já referido, de que a Força Aérea “esteve até há pouco integrada” nele, bem como, o seu orgulho por ser “do Corpo de Estado Maior”, a elite da oficialidade. Salientava ainda que excluía naturalmente dos destinatários da missiva destinada ao CEMGFA e aos Chefes do Estado Maior do Exército e da Força Aérea, o da Armada, que alegava não lhe merecia confiança pois “disse-me” que tinha numa empresa privada “um daqueles lugares muito rendosos e pouco trabalhosos” e também porque queria “deixar livre aquela corporação para julgar” se deveria “um almirante gozar do benefício de um roubo” eleitoral. Delgado podia ter entrado em rutura com o regime salazarista, mas não com uma lógica militar profundamente corporativa.

Porque é que Botelho Moniz não apoiou Delgado em 1958?

Tudo isto torna inevitável a pergunta: porque é que Botelho Moniz e os demais chefes militares envolvidos na Abrilada de 1961 não usaram as Forças Armadas para afastar Salazar a favor de Humberto Delgado logo em 1958? Segundo o testemunho a Manuela Cruzeiro do tenente-coronel, futuro marechal, Costa Gomes, o então subsecretário de Estado do Exército e um dos principais envolvidos na Abrilada, o fundamental terá sido Delgado “ser da Força Aérea”, e não das armas mais tradicionais do Exército, e também porque “tinha estado muito tempo afastado do serviço militar” no sentido tradicional, nomeadamente em cargos de nomeação política e no exterior. Mais, o estilo direto de Delgado e a dificuldade em submeter-se a consensos, que o tornou um candidato presidencial tão carismático, e o veio a tornar problemático para a própria oposição, causava ainda mais dúvidas entre os seus camaradas de armas. Como refere Viana Lemos, um outro oficial do núcleo duro de Botelho Moniz, no testemunho que publicou sobre este tema, não lhes parecia que “um oficial tão impulsivo” pudesse liderar uma mudança política delicada como aquela que queriam levar a cabo: mudar o rumo do regime, até afastar Salazar, mas sem ceder o poder à oposição, em que pesavam os comunistas.

Delgado errou ao exagerar a força da ligação e lealdade que existia entre ele e as principais chefias militares. Mas Salazar também pagou um preço pesado pela sua escolha presidencial em 1958. Sentiu-se forçado, para aliviar estas tensão crescente nas Forças Armadas, a sacrificar o seu braço-direito para as questões militares desde a década de 1930: Santos Costa. Foi o próprio Presidente Craveiro Lopes quem praticamente garantiu esse desfecho ao escrever a Salazar, uns dias antes de deixar o Palácio de Belém: “Achamo-nos na véspera de um levantamento militar para impor a saída do coronel Santos Costa do Governo”. A substituição de Santos Costa como ministro da Defesa acalmou momentaneamente os ânimos. Mas Salazar saiu enfraquecido dessa opção, e mais ainda pela escolha do sucessor, em que ficou evidente uma cedência em toda a linha às chefias militares. Efetivamente, não só estes não foram punidos por toda esta agitação, não só viram satisfeita a sua principal reclamação com o afastamento de Santos Costa, como viram elevado o seu líder, o general Botelho Moniz, que ocupava o posto cimeiro da hierarquia militar profissional como CEMGFA, a ministro da Defesa.

A partir de 1956 Salazar tentou fazer da guerra de guerrilha contra os movimentos nacionalistas e anticoloniais em África a prioridade da política de defesa, desinvestindo do compromisso português na Aliança Atlântica, de que Portugal era membro fundador desde Abril de 1949. O resultado foi um choque de prioridades estratégicas entre Salazar e Botelho Moniz.

É uma regra básica das relações civis-militares que quando o poder político cede à pressão militar para afastar um ministro da Defesa ou promover um Chefe Militar está a alimentar uma dinâmica muito perigosa para a sua capacidade de tutela efetiva das Forças Armadas. Apesar de tudo esta mudança podia ser apresentada por Salazar, no rescaldo do furacão Delgado, como a confirmação de que os militares se mantinham leais ao regime. Afinal, em 1958 Botelho Moniz tinha sido responsável por um Estado Maior de crise para reprimir as perturbações da ordem estabelecida aquando das eleições presidenciais. E entre 1944-45, até tinha exercido as funções de ministro do Interior. Como tal, tinha tido um papel fundamental na repressão de uma oposição cada vez mais afoita com a derrota do Eixo na Segunda Guerra Mundial, tendo mesmo ficado conhecido pelas declarações de que o regime “não cai, nem a tiros, nem a votos!”.

O facto é que a lealdade das chefias militares ao regime salazarista saiu chamuscada da crise de 1958. O Chefe do Estado Maior da Força Aérea, general Albuquerque de Freitas, no memorando de Fevereiro de 1961, que marcou o verdadeiro arranque da dinâmica da Abrilada como movimento aberto de contestação militar a aspetos centrais do regime, referiu expressamente que “existe, largamente generalizado em Portugal, o sentimento de que o regime político nacional se mantém só porque as forças militares o apoiam”. E afirmou ainda que, com a mudança que se seguiu da Constituição de 1933 para tornar indireta a eleição do Presidente da República, se deu “mais um argumento para se atribuir exclusivamente à força das baionetas a sobrevivência do regime atual”. Mas se Delgado ou Santos Costa não levaram o grupo de Botelho Moniz a tentar afastar Salazar, o que precipitou as coisas em 1961?

Prioridade a guerras de guerrilha em África ou à Aliança Atlântica com os EUA?

O teste de uma efetiva tutela civil sobre as Forças Armadas verifica-se quando o poder político procura implementar mudanças com implicações de fundo na Defesa Nacional. Na definição deste tipo de prioridades, a supremacia do poder político civil sobre as Forças Armadas expressa-se, nas palavras de Peter Feaver, um dos maiores especialistas no tema em “the right to be wrong”, ou seja, no direito a estar errado. Este é um teste comum a qualquer tipo de regime. Claro que um regime autoritário que dependa fortemente do apoio das Forças Armadas parte de uma posição de fraqueza face a um regime com uma legitimação democrática. Salazar procurou afastar as Forças Armadas da governação, mas nunca pode ultrapassar esse problema fundamental, aliás expresso na sua opção por ter sempre um oficial general como Chefe de Estado. Um teste desse tipo surgiu em Portugal, a partir da crise internacional do Suez, de 1956, que veio mostrar a fragilidade crescente do colonialismo ocidental, mas foi-se acentuando até atingir o ponto de rutura, faz agora sessenta anos, em Abril de 1961.

A partir de 1956 Salazar tentou fazer da guerra de guerrilha contra os movimentos nacionalistas e anticoloniais em África a prioridade da política de defesa, desinvestindo do compromisso português na Aliança Atlântica, de que Portugal era membro fundador desde Abril de 1949. O resultado foi um choque de prioridades estratégicas entre Salazar e Botelho Moniz. Num importante Conselho Superior de Defesa Nacional, em 1959, Botelho Moniz, seguindo até alguns dos seus escritos anteriores sobre estratégia nacional, defendeu que a prioridade em termos de empenhamento militar português devia ser dada “largamente” ao “objetivo principal único” na Guerra Fria entre o bloco pró-soviético e pró-ocidental, que era o controlo da Europa, e não de África. O que tinha ainda a vantagem de garantir meios sofisticadas e relações internacionais muito prestigiosas às Forças Armadas portuguesas. Salazar contra-argumentou que a Guerra Fria tinha essa designação precisamente porque o conflito estava congelado na Europa. Era na periferia, nomeadamente africana, que a ameaça armada soviética se ia manifestando de forma mais real e aberta, sendo aí também que Portugal podia e devia ser militarmente mais eficaz. O compromisso final acabou por ser que “novos compromissos NATO que envolvam novas despesas devem ser cuidadosamente evitados, mas os vigentes serão honrados”, ao mesmo tempo “haveria o cuidado de aumentar, tanto quanto possível, o esforço na defesa do Ultramar”.

Este compromisso de 1959 não deixou ninguém satisfeito e criou expectativas contraditórias. Salazar esperou que as chefias militares encontrassem forma de gastar mais daquilo que já tinham em África. Os chefes militares viram nisso um compromisso para haver muito mais recursos para novas missões africanas. Sobretudo, este compromisso tornou-se insustentável com a violenta explosão da revolta anticolonial em Angola nos primeiros meses de 1961. Este foi o catalisador que levou diretamente à Abrilada de 1961.

Da revolta armada em Angola ao pronunciamento militar em Portugal

Foi numa reunião de meados de Fevereiro de 1961 do Conselho Superior Militar – que reunia o ministro da Defesa, o CEMGFA, os ministros e secretários de Estado e os Chefes de Estado Maior dos ramos. Ele foi realizado na sequência das primeiras ações armadas em Angola, na repressão de uma revolta laboral mas também já com alguns laivos nacionalistas no Leste, no Cassanje. Paradoxalmente, à luz do seu percurso posterior, desde logo na derrota da Abrilada, foi o tenente-coronel Kaúlza de Arriaga, responsável pela pasta governamental da Força Aérea, quem aparentemente tomou a iniciativa de avançar com a posição mais crítica. E nisso foi fortemente apoiado pelo Chefe do Estado Maior do ramo, general Albuquerque de Freitas. Recorde-se que, até 1974, os ramos das Forças Armadas não dependiam apenas do respetivo Chefe do Estado Maior, mas também de um ministro ou secretário de Estado, coordenados, por sua vez, pelo ministro da Defesa.

Kaúlza anunciou mesmo na referida reunião que tinha preparado um memorando formalizando as suas críticas à política governamental. Num testemunho escrito logo a 16 de Abril de 1961 – poucos dias após o desfecho destes acontecimentos – o general Freitas recordava: “Com surpresa e satisfação vi que o ministro da Defesa [Botelho Moniz] também via as coisas como eu e os ministros militares (exceto a Marinha, está claro [sic]) e até mencionava as várias diligências que fizera para que se aligeirasse a situação política e se aligeirasse a pressão [externa], embora com as cautelas necessárias. Prometeu ainda que ia fazer saber ao chefe do Governo as preocupações que ali tinham sido apresentadas.”

Em dois dias de longas audiências entre Moniz e Salazar no final de Março de 1961, o general insistiu na necessidade de mudar o rumo do governo. Estes encontros terminaram num impasse. Aparentemente algo adoentado, o ministro da Defesa optou por ir gozar as férias da Páscoa no Algarve, como tantos outros lisboetas até hoje. Mas faz sentido um golpista tirar férias?

Note-se que Freitas sublinhou que a Marinha evidentemente não alinhava nestas críticas. Numa lógica de pura política corporativa a posição que cada um tomava era vista como naturalmente dependente da posição institucional que ocupava, nomeadamente em termos das rivalidades entre os diversos ramos. Diga-se que neste contexto a Força Aérea a que pertencia o general Craveiro Lopes via-se como lesada, não apenas pelo afastamento deste da Presidência em 1958, mas também por este estatuto de relativa menoridade da Aeronáutica estar até institucionalizado na categoria de mera Subsecretaria de Estado – enquanto o Exército e a Marinha tinham direito a Ministérios. Este era efetivamente o ramo mais jovem das Forças Armadas, por isso, afirmava o próprio Kaúlza de Arriaga, em carta a Salazar, “possui um pouco o complexo da desproteção, pois bem ou mal considera-se o ramo menos acarinhado das Forças Armadas”. Este era também um ponto em que as ambições pessoais de Kaúlza coincidam com as do seu ramo. Ambas foram parcialmente satisfeitas como resultado da Abrilada, pois na remodelação governamental de 1961, a Aeronáutica foi elevada ao estatuto, não de Ministério, mas pelo menos de Secretaria de Estado.

O 15 de Março, o início da insurreição armada em larga escala da UPA no Norte de Angola, veio confirmar os piores receios dos líderes militares críticos da política salazarista. As Forças Armadas seriam forçadas a dispersar-se para combater movimentos anticoloniais armados em várias frentes, separadas por milhares de quilómetros. Pior, teriam de o fazer sem o apoio do mais poderoso aliado militar – os EUA – cujo embaixador mantinha informado o ministro da Defesa das diligências da Administração Kennedy no sentido de pressionar Salazar a comprometer-se com alguma fórmula de autodeterminação, mesmo que de longo prazo. A recusa de Salazar em ceder levou a que também em meados de Março de 1961 se verificasse o primeiro voto hostil dos EUA a Portugal na ONU.

A partir de então, passou-se de declarações para uma dinâmica de pronunciamento. Ou seja, um movimento de pelo menos uma parte das principais chefias militares visando forçar o governo a alterar as suas opções ou mesmo procurando uma alteração da situação política vigente. Embora o sentido e limites exatos dessa mudança não estivessem nunca completamente claros, provavelmente até para os próprios líderes militares envolvidos nestas movimentações.

O que queria Botelho Moniz e companhia?

Numa carta de Botelho Moniz a Salazar do final de Março de 1961, que marca o arranque do pronunciamento militar, pois o general diz escrevê-la como porta-voz das Forças Armadas, começa por apresentar, efetivamente, um diagnóstico muito crítico da situação. Porém, evoca “o espírito que inspirou o 28 de Maio”, em que o próprio Moniz tinha estado envolvido, que diz estar a ser “adulterado” “por aqueles que mais servem por conveniência”. Acaba por se pronunciar depois por se “renovar, dentro da continuidade”. Uma frase tão equívoca que se tornou o mote do período do chamado marcelismo, a partir de 1968, e que poderá, já em 1961, ter sido inspirada pelo próprio Marcelo Caetano. Mais, apesar de apelar ao “ataque sem quartel” a “valores político gastos e, em muitos casos sem idoneidade moral”, Moniz não excluía ser Salazar a executar esta “mutação política profunda” exigida pelos militares.

O pronunciamento de Março-Abril de 1961 caraterizou-se, portanto, por, a partir do interior do regime salazarista, defender uma mudança vaga na política interna, e, sobretudo, uma mudança na política colonial e internacional tendo como principal objetivo afinar melhor pelo diapasão dos nossos aliados mais importantes, os EUA. Uma posição politicamente algo ingénua e paradoxal, no entanto natural dada a longa ligação destas altas patentes ao regime que agora tentavam mudar alguma coisa para evitar que as Forças Armadas fossem transformadas em bode expiatório de dificuldades militares sérias.

Em dois dias de longas audiências entre Moniz e Salazar no final de Março de 1961, o general insistiu na necessidade de mudar o rumo do governo, de rever as políticas coloniais e internas, por forma a captar apoios externos e maior abertura e integração das diferentes sensibilidades políticas internas – exatamente em que termos foi um ponto em que o próprio Salazar muito insistiu sem grandes resultados. Estes encontros terminaram num impasse. Aparentemente algo adoentado, o ministro da Defesa optou por ir gozar as férias da Páscoa no Algarve, como tantos outros lisboetas até hoje. Mas faz sentido um golpista tirar férias? Esta atitude não valida a ideia de que este foi o golpe mais incompetente da história nacional?

Moniz vai de férias, o pronunciamento falha e o golpe não chega existir

Botelho Moniz deveria ter percebido que Salazar não cedia a pressões e o simples passar do tempo não o ia levar a ceder. Se muitos chamaram a atenção para o facto de não fazer sentido alguém que quer derrubar o governo ir tirar férias, poucos sublinharam o outro paradoxo desta situação. Salazar não reagiu imediatamente e de forma decisiva a este desafio claro à sua autoridade. Não demitiu, nem prendeu, o general Botelho Moniz enquanto esteve gozando as suas férias no Algarve. Portanto, o juízo de Botelho Moniz sobre a sua força relativa e a relativa fragilidade de Salazar não estava completamente errado. Adriano Moreira descreve, em entrevista a Freire Antunes, um Salazar desanimado e paralisado, que lhe terá dito: “Nunca estive tão perplexo na minha vida!”. Ele tinha enfrentado golpes e pronunciamentos antes, mas sempre com um forte setor militar ao seu lado. Adriano Moreira sublinha ainda: “Percebi que Salazar duvidava da sua capacidade para dominar a ofensiva dos generais”. Na verdade, a sua capacidade de reação com apoio de alguma força militar só viria por via de Kaúlza de Arriaga, e não estava garantida à partida, pois este último estava longe de ser um líder da direita militar nesta época.

Foi sobretudo a partir do seu regresso das famosas férias no Algarve que o pronunciamento de Botelho Moniz começou a somar erros que cumulativamente se revelaram fatais. Primeiro, Moniz subiu a parada, e insistiu na sua exigência de mudança de políticas, com ou sem Salazar, numa audiência com o Presidente da República a 5 de Abril, mas sem resultados. Começou então uma nova espera vã, desta feita por uma mudança de atitude do Presidente Tomás. Só a 10 de Abril Moniz insistiu na urgência de um novo encontro com Tomás, fazendo-se acompanhar pelo ministro do Exército – geralmente o ramo dominante em qualquer golpe militar, pois tem, à partida, mais tropas operacionais que pode usar para ameaçar ou agir militarmente. A audiência presidencial realizou-se dramaticamente próxima da meia-noite, e com o chefe da Casa Militar do Presidente oculto e armado para o caso de o general Botelho Moniz usar da força contra o Chefe de Estado. Não o fez nessa altura, nem o faria. Mas, pela primeira vez, Botelho Moniz, exigiu claramente a demissão de Salazar em nome das Forças Armadas.

De forma hábil, o almirante Tomás, conhecedor das hesitações do coronel Almeida Fernandes, ministro do Exército, insistiu que ele, assim como outros oficiais, não estariam, na verdade, de acordo com o ministro da Defesa. Confrontado com a pressão, Almeida Fernandes procurou conciliar o inconciliável, insistiu na necessidade de mudanças, mas sem exigir a saída de Salazar e recusando dar crédito à ameaça de uso da força pelas Forças Armadas. Tomás aproveitou esta divisão para concluir que esta diligência não era, afinal, um pronunciamento claro do conjunto das Forças Armadas ou sequer do Exército pelo afastamento de Salazar. No dia seguinte, Tomás sublinhou esta sua conclusão numa ocasião pública formal em que estava Almeida Fernandes, apelando ainda à unidade disciplinada dos militares em torno do regime. O almirante Tomás foi efetivamente uma figura fundamental na derrota da Abrilada de 1961, em colaboração próxima, na sombra, com o ex-ministro, coronel Santos Costa, que ia trabalhando no sentido de obter informações e de mobilizar e indicar oficiais disponíveis a alinhar com o regime contra Botelho Moniz. Tomás renovou formalmente a confiança política em Salazar ainda antes de receber Botelho Moniz e Almeida Fernandes. Mas, sobretudo, encarregou o chefe da sua Casa Militar, General Humberto Pais, de fazer a ligação com a Marinha e de sancionar formalmente as ações de Kaúlza de Arriaga na Força Aérea, este tinha-se afastado, entretanto, do golpe.

A Abrilada como pronunciamento falhou nessa noite de 11-12 de Abril de 1961, sobretudo por causa das hesitações e ambiguidades do ministro do Exército, Almeida Fernandes, que Botelho Moniz imprudentemente tinha optado por ignorar. Era o princípio do fim para estes dissidentes militares de alta patente, se não avançassem rapidamente para um golpe de força, que deviam até ter preparado previamente. Mas a cultura estratégica portuguesa é mais reativa do que preventiva. Apesar de tudo, a derrota de Botelho Moniz e dos seu próximos, nos principais comandos do Exército ainda não podia ser dada como absolutamente garantida.

A grande questão a partir de 11 de Abril passou a ser, portanto, se Botelho Moniz e os seus seguidores estavam prontos para passar de um pronunciamento para um efetivo golpe de Estado. Moniz decidiu adiar a resposta a esta questão decisiva para uma reunião dos principais comandos que lhe eram leais numa espécie de Conselho Superior Militar alargado, a 13 de Abril, às cinco da tarde. Foi tarde demais. Embora Moniz, num aparente sinal de vontade de forçar uma decisão, mas também de falta de preparação ou eficácia, ainda tenha dado uma ordem não cumprida a duas unidades da Escola Prática de Infantaria de Mafra para marcharem sobre Lisboa. Depois, foi ainda “ventilada” a possibilidade de avançarem os blindados de Santa Margarida já a 13 de Abril. Em ambos os casos não há sinais de que houvesse um plano operacional claro, pelo contrário. A verdade é que a passagem de um pronunciamento para um golpe está longe de ser fácil. A lógica de um e outro são distintas, opostas, exigindo a passagem da sinalização aberta e da mera ameaça da força, à conspiração fechada e a uma efetiva operação militar de tomada do poder. Os participantes na reunião de 13 de Abril já tinham sido demitidos por Salazar conforme anúncio público feito na Emissora Nacional às 15 horas. No final dessa reunião, os quase-golpistas não foram presos, mas literalmente apeados – os respetivos carros oficiais tinham recebido instruções para abandonar o local, já não tinham individualidades para transportar.

O salazarismo final, de vitória em vitória até à derrota final

Salazar, no momento da vitória sobre o pronunciamento, no discurso radiodifundido do início da tarde de 13 de Abril, justificou a sua decisão de demitir os principais chefes militares nestes termos: “Se é preciso uma explicação para o facto de assumir a pasta da Defesa Nacional […] a explicação concretiza-se numa palavra e ela é: Angola”. E concluiu: “Andar rapidamente e em força é o objetivo que vai pôr à prova a nossa capacidade de decisão!”. O fundador do Estado Novo estabeleceu desta forma como teste político derradeiro do seu regime a capacidade de resposta vitoriosa à revolta armada que procurava pôr fim ao poder português em África. O regime nacionalista do salazarismo consolidou-se por uma última vez, como tinha acontecido face à Guerra Civil de Espanha, à Segunda Guerra Mundial e à Guerra Fria, usando eficazmente uma ameaça externa para apelar à lealdade de todos os portugueses. Mas acabou, no médio prazo, por perder a aposta e cair face à erosão crescente que estas guerras de guerrilha em três frentes provocaram num dos seus pilares: os quadros militares. A Abrilada foi um primeiro alerta pela reação de boa parte da máxima liderança militar mais ciente da seriedade da ameaça e do contexto internacional adverso à aposta portuguesa de se manter em África, se necessário pela força.

Na carta demitindo o ministro do Exército e sua equipa, Salazar pediu-lhe para transmitir a Costa Gomes “os agradecimentos que lhe devo pelos esforços realizados no subsecretariado quanto ao Ultramar e o apreço em que fiquei tendo o seu trabalho”. Isso talvez também explique que, ao contrário dos oficiais generais que foram para a reserva, Costa Gomes tenha sido mantido no ativo e, depois de uma travessia do deserto, retomou a sua brilhante carreira.

Menos notada neste movimento de dissidência militar tem sido a sua forte dimensão anticapitalismo e de crítica ao sistema colonial português. É o insuspeito Kaúlza de Arriaga quem afirma: “As forças militares que atuavam na Baixa do Caçanje adquiriam a convicção de que a causa fundamental dos acontecimentos era a exploração dos trabalhadores pretos […] E verificava-se a tendência para se generalizar nas Forças Armadas o conceito de que, em África, defendiam não o País, mas apenas os interesses de alguns capitalistas”. Mais, assume que “dado existir realmente […] [no] Caçanje, injustiça social, e dado o perigo daquela tendência” ele próprio teria focado “o assunto no Conselho Superior Militar” que verdadeiramente iniciou a crise da Abrilada.

Segundo Albuquerque de Freitas, em testemunho escrito logo a seguir aos eventos, na mesma reunião do Conselho Superior Militar em que Kaúlza falou nestes termos, até o normalmente moderado ministro do Exército manifestou o “desagrado do Exército pela existência das quadrilhas de Tenreiros, Algodoeiros, Açucareiros, enfim, arranjistas de uma forma geral.” Semanas depois dos eventos, Freitas lamentava a “teimosia” de Salazar, que não lhe permitiu seguir “o ‘convite’ dos comandos” militares que “ter-lhe-ia permitido afastar os ‘vampiros’ e levar isto saneado”. Que esta postura anticapitalista entre os militares sobreviveu à própria Abrilada fica claro numa carta para Kaúlza de Arriaga do comandante de região aérea de Angola, que afirma a respeito dos rumores de nomeação de certo general para novo comandante-chefe, “Deus queira que seja boato!” e isto “não porque tenha qualquer ideia preconcebida contra o sujeito (nem sequer o conheço), mas sim porque está ou estava ligado à alta finança, que é o pior curriculum”.

Seria evidentemente precipitado deduzir daqui que uma vitória do 13 de Abril de 1961 teria consequências revolucionárias no campo da mobilização social e das mudanças económicas, como teve o 25 de Abril de 1974. Um facto fica claro, porém – as ideias, os slogans anticoloniais e anticapitalistas que se tornaram populares entre os militares a partir de Abril de 1974 não surgiram do nada, e não eram exclusivos dos meios tradicionais da oposição e da esquerda. Já estavam presentes de alguma forma no topo da hierarquia militar pelo menos em Abril de 1961, antes da alegada proletarização do corpo de oficiais ou do influxo de oficiais milicianos vindos das universidades.

E depois do adeus…

A única resposta pública permitida aos Abrilistas foi a publicação de uma carta pelo tenente-coronel Costa Gomes ao Diário Popular, em que este último afirmou que uma guerra de guerrilha é uma realidade complexa que tem de ter resposta política, e onde a componente militar “está longe de ser o mais importante”. Talvez essa excecional possibilidade de defesa resultasse de ele ter sido, de facto, um dos principais promotores dos esforços para preparar o Exército para combater uma futura insurreição anticolonial a partir de 1959. Isto foi reconhecido por Salazar em privado. Na carta demitindo o ministro do Exército e sua equipa, Salazar pediu-lhe para transmitir a Costa Gomes “os agradecimentos que lhe devo pelos esforços realizados no subsecretariado quanto ao Ultramar e o apreço em que fiquei tendo o seu trabalho”. Isso talvez também explique que, ao contrário dos oficiais generais que foram para a reserva, Costa Gomes tenha sido mantido no ativo e, depois de uma travessia do deserto, em Beja, retomou a sua brilhante carreira. Mas, sobretudo, a resposta de Costa Gomes acabava por servir a hábil manobra política salazarista em torno da Abrilada. Vemos isso na reação que esta posição de Costa Gomes provocou, não só do diretor do jornal em causa, mas também, por exemplo, de Joaquim Paço d’Arcos – um intelectual próximo do regime: “Que a solução militar não é solução definitiva todos nós o sabemos. Mas que os chefes militares, que não cumpriam o seu dever e tudo resolviam traindo, venham insistir, depois de demitidos nesta tecla, revela […] o seu estado de espírito.”

Embora não fosse inteiramente justa para todos os alinhados com a Abrilada, esta versão salazarista do sucedido, como toda a boa propaganda, tinha algo de verdade. Uma das fontes de tensão entre Salazar e as chefias militares nos últimos anos tinha sido realmente a insistência do líder do Estado Novo em que se transferissem meios e homens de missões convencionais NATO para missões de contraguerrilha. Esta passara a ser ainda mais estrategicamente prioritária com a súbita aceleração da descolonização nos territórios ultramarinos franceses e belgas vizinhos dos portugueses.

Em Fevereiro e Março de 1961 é possível documentar que continua a resistência de algumas das principais chefias militares a encarar a insurreição armada que de uma possibilidade tinha passado a uma realidade no norte de Angola como a prioridade. É assim, por exemplo, com a missão a Angola do Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas e do Chefe do Estado Maior do Exército. Ambos estavam, aparentemente, de acordo em menosprezar o que consideraram ser uma “guerra de catanas”, e em desvalorizarem a necessidade de mobilizar forças militares consideráveis para combater estes “pequenos motins que estavam completamente controlados”. Esta reação, esta perigosa subestimação, é aliás um facto frequente na fase inicial de atividade de grupos irregulares de guerrilheiros. Foi assim em Angola em 1961, mas também o foi no Iraque em 2003, ou em Moçambique na atualidade.

A melhor prova de que esta dimensão teve um papel fundamental na Abrilada de 1961 é a carta de Moniz a Salazar a exigir mudanças, em que se afirma: “Caminhamos para uma situação insustentável, onde poderemos ficar à mercê de um ataque frontal, com forças dispersas por quatro continentes sem meios bastantes e com uma missão de suicídio da qual não seremos capazes de sair, uma vez que a política lhe não encontra solução nem parece capaz de a procurar.” Logicamente, não se resolve uma missão de suicídio empenhando nela mais tropas. No fundo, é este o mesmo argumento que o Presidente Biden utiliza hoje em dia para justificar a saída do Afeganistão. Botelho Moniz era crítico da opção por um aumento do número de tropas para conduzir uma campanha de contrainsurreição em Angola. Salazar era seu defensor. Aliás, independentemente de convicções pessoais, é evidente que o abandono do Ultramar português seria politicamente suicida para um regime nacionalista como o do Estado Novo.

Embora o início da guerra de guerrilha em Angola seja, portanto, o principal catalisador deste pronunciamento, tal não significa que o alinhamento dos chefes militares por Botelho Moniz ou Salazar corresponda exatamente a uma mesma posição relativamente a como lidar com a guerrilha independentista em Angola. Nomeadamente o Chefe de Estado Maior da Força Aérea, general Albuquerque de Freitas, figura central do pronunciamento, um dos mais duros críticos do regime, revela, num texto escrito dias depois dos eventos aqui relatados, que numa reunião do Conselho Superior Militar fizera “um ataque cerrado” aos que defendiam que “um homem com uma hemorragia” se devia “tratar” com “panos quentes, em vez de lhe fazer uma transfusão de sangue revigorante. Caiu-me tudo em cima. Fu [Beleza Ferraz], [Câmara] Pina, Costa Gomes e Almeida Fernandes”. Essa recusa era justificada pelo argumento de que tudo estava a caminho de ser resolvido; ou pelo argumento de que tudo estava perdido sem o apoio dos EUA; ou ainda pela ideia de que havia apenas um número limitado de unidades preparadas para este tipo de conflito. Tais argumentos pareciam irrelevantes a Freitas, que afirmava que, no imediato, podia até ir a Guarda Fiscal para Angola, pois “o que era necessário era tropa com armas” para controlar militarmente a situação em Angola. Portanto, Freitas concordava com Salazar que era “também necessário obrigar” uma série de chefes militar “a mudarem de atitude.” O que unia então, apesar desta divisão, os apoiantes da Abrilada? Todos alinhavam com Botelho Moniz na defesa da necessidade urgente de mudar a resposta política – interna, ultramarina e externa – a esta crise violenta.

Autópsia de um pronunciamento falhado

Como é que com tantos trunfos na mão – o apoio ou neutralidade da maioria dos principais chefes militares, dos comandantes das principais unidades – o pronunciamento de Botelho Moniz foi incapaz de derrubar Salazar? A Abrilada de 1961 falhou por uma série de contingências. A começar pela ausência do general Albuquerque de Freitas em visita de trabalho aos EUA, sendo chamado urgentemente de volta por Botelho Moniz, mas tarde demais. O que justifica pensar-se que este pronunciamento poderia ter-se transformado num golpe vitorioso, afastar Salazar, e mudar a história portuguesa, em sentido incerto, mas certamente muito significativo, em Abril de 1961, há seis décadas.

A primeira razão fundamental do fracasso da Abrilada foi o facto de os militares dissidentes terem demorado demasiado tempo a agir, e terem-no feito sempre de forma hesitante, reativa, não planeada. A gestão do tempo é vital numa manobra deste tipo. E mais ainda quando se trata da eventual passagem a um golpe de força: quanto mais tempo uma ameaça falha em produzir os efeitos desejados, ou em concretizar-se, menos credível se torna e mais tempo dá a uma reação. Mário de Figueiredo, um dos companheiros e conselheiros políticos mais antigos e mais próximos de Salazar, terá comentado a 13 de Abril relativamente a Botelho Moniz: “Ah! O gajo ainda não marrou, está fodido!”. O The Economist de Maio de 1961 adotou um tom mais elevado, mas menos rigoroso: “The leaders of the Armed Forces made the Prime Minister [Salazar] a 48h ultimatum to surrender power to a military junta headed by general Moniz. Dr. Salazar […] gave them 24h to resign”. Ora, em rigor, Salazar não deu aos militares dissidentes tempo nenhum para reagirem a uma demissão imediata. Já estes últimos deram a Salazar semanas para reagir ao choque inicial. Nas palavras do general Albuquerque de Freitas, Botelho Moniz e os seus fiéis “perderam imperdoavelmente 48 horas sem agir, o que deu a chance do governo de reagir”, entre o fracasso da estratégia de pronunciamento na reunião noturna com Tomás a 11-12 Abril e a reunião abertamente convocada de comandos militares para na tarde de 13 de Abril. Esta demora em passar para uma tomada do poder pela força resulta de muita complacência, mas também de uma reserva profunda quanto à possibilidade de um conflito aberto nas ruas.

O embaixador norte-americano Elbrick, que afirma ter mantido “contínuos contactos discretos” com Moniz, certamente no sentido de o encorajar a mudar os rumos do regime mais de acordo com as preferências do Presidente Kennedy, descreve o general português “como altamente ambicioso” e o “militar mais poderoso” do país, ocupando uma “posição altamente estratégica” no sistema de poder do Estado Novo. Até porque Moniz era visto, desde logo por causa destes contactos, como o homem dos americanos. Mas Elbrick nota também que Moniz lhe parecia alguém que “fala mais do que faz”. O cargo de ministro da Defesa tinha poderes vagos. Em suma, sendo “potencialmente decisivo” no futuro político do país, faltava ainda ver “se conseguirá agir no momento certo”. De acordo com outro dos seus próximos, Manuel Cotta Dias, entrevistado por Freire Antunes, Botelho Moniz estava, efetivamente, dominado por um “excesso de confiança”. Entre os chefes militares leais a ele “ninguém previa resistência”. Mas porque é que usar a força para lidar com uma eventual resistência a afastar Salazar era um problema para estes militares?

A segunda razão do fracasso da Abrilada de 1961 foi, efetivamente, a recusa do uso da força pelos seus líderes. O cenário de um golpe sangrento avivava o temor do regresso aos tempos caóticos de golpes e contragolpes da Primeira República e do período inicial da Ditadura Militar. Costa Gomes refere este período de “revoluções” “constantes” como um trauma da sua geração de oficiais: “Eram tiros que nunca mais acabavam”. Este último afirma explicitamente: “Quando aderi” ao pronunciamento de Botelho Moniz “estava absolutamente convencido de que não havia possibilidade de uma guerra civil”. E conclui que “me afastaria imediatamente de qualquer golpe militar” se este pudesse “degenerar em guerra civil”. Este será um ponto central e relativamente claro de todo o percurso político-militar de Costa Gomes, de resto muito tortuoso e paradoxal, que vai de ser visto como um oficial próximo dos EUA até a amigo da Coreia do Norte. Mas se foi um golpista ocasional, sempre se manteve determinado a evitar uma potencial guerra civil. Vale a pena notar que Otelo Saraiva de Carvalho, nas suas memórias, alguém que, pelo contrário, nunca hesitou em recorrer à violência armada, também destacou este “complexo sempre presente nos militares, da guerra civil” embora para o criticar.

A este receio genérico de um confronto sangrento entre camaradas, acresce naquele contexto específico o receio de que tal se poderia traduzir numa degradação ou no colapso de uma situação militar já periclitante em Angola. Para alguém tão crítico e decidido como o general Albuquerque de Freitas este teria sido o ponto decisivo. Na carta escrita sobre estes eventos ao seu camarada o comandante aéreo de Angola que temos citado, escrita dias depois do sucedido, ele afirma que não se avançou “só porque os responsáveis pelo uso da força entenderam não o fazer, pensando em vocês [em Angola], em Moçambique, na Guiné”.

Tanto Albuquerque de Freitas como Costa Gomes desvalorizam nos seus testemunhos a ideia de que a demissão por Salazar do ministros e dos chefes militares teria sido um fator decisivo. Alguns responsáveis militares poderiam ter seguido a linha do Comandante da Região Militar do Porto, General Valadas Tavares, o qual – depois do famoso discurso de Salazar a justificar a demissão de Botelho Moniz e assumir a pasta da Defesa – comunicou aos seus subordinados: “Continuamos na legalidade”. Costa Gomes, porém, diz não ter dúvidas de que teria sido possível agir à margem da legalidade reagindo pela força ao afastamento dos líderes da Abrilada por Salazar, com a lealdade das unidades militarmente mais fortes. Foi o que aconteceu noutros golpes militares no passado, por exemplo no Paquistão em 1999. O facto de os comandantes das mais importantes regiões e unidades terem sido efetivamente substituídos por Salazar a 13 de Abril e nos dias seguintes parece comprovar que este último e os seus seguidores também duvidaram seriamente da sua lealdade à legalidade do regime.

Ligada intimamente com este ponto está a terceira razão fundamental do fracasso da Abrilada: Salazar e os seus próximos encontraram brechas nas Forças Armadas que souberam explorar. Salazar tinha muitos anos de experiência como gestor das relações político-militares. A situação entre 1958 e 1961 evidentemente escapou-lhe, por vezes, ao controlo. Mas seria sempre perigoso dar-lhe oportunidade para usar a sua tática habitual do dividir para reinar nas Forças Armadas, jogando com rivalidades pessoais e entre ramos. Dividir para reinar é, aliás, o princípio básico da redução do risco de golpe em regimes autoritários. É sinal de uma democracia consolidada e da total confiança na solidez da tutela do poder civil legitimamente eleito a fórmula organizacional que prevalece hoje em dia na Europa de um comando conjunto e de um Chefe do Estado Maior General ou Chief of Defence Staff com efetivo controlo operacional sobre o conjunto das Forças Armadas.

A este respeito o afastamento do responsável governamental pela Força Aérea, o tenente-coronel Kaúlza de Arriaga, desta dinâmica de pronunciamento acabou por se revelar fatal. Esta deveu-se essencialmente a uma animosidade pessoal e corporativa entre Botelho Moniz e Kaúlza. O general Botelho Moniz há muito que chocava com a personalidade energética do tenente-coronel Kaúlza. O general Moniz não hesitou em excluir Kaúlza ostensivamente de reuniões decisivas do pronunciamento, em que este último queria participar. Recorde-se que, em Fevereiro de 1961, Kaúlza tinha sido uma das vozes mais críticas da situação, em linha com o seu ramo, a Força Aérea, também muito revoltada com a perceção de um estatuto subalterno e a humilhação do afastamento de Craveiro Lopes. Um facto que talvez ajude a explicar o famoso remoque de Salazar quando o golpe estava derrotado e Kaúlza se queixou de cansaço: “Pois é, os senhores andam para aí a conspirar!”. Dito isto, Kaúlza foi o grande campeão da criação dos paraquedistas como uma tropa aerotransportada especialmente útil em contraguerrilha, precisamente nestes anos. Esta iniciativa suscitou grandes resistências, nomeadamente da parte de setores mais conservadores no Exército. Marginalizado, adivinhando o fim de uma carreira brilhante se Moniz tomasse o poder, foi obtendo o apoio desta unidade que o jovem subsecretário de Estado da Aeronáutica deu a Salazar meios militares para reagir de forma credível a Botelho Moniz e arriscar o gesto público de o demitir e ao seus próximo por via de um discurso na Emissora Nacional na tarde de 13 de Abril. Foi portanto Kaúlza que colocou os golpistas improvisados perante o risco de um choque violento para tomarem o poder que queriam evitar a todo o custo.

Finalmente, o que podemos aprender com a Abrilada relativamente à natureza do regime? O Estado Novo está longe de ser uma típica ditadura militar. Esta era um regime autoritário compósito – coligando vários setores nacionalistas e conservadores – fortemente centralizado em Salazar. A reação de Salazar durante a Abrilada de 1961 foi no sentido de retomar a sua política de décadas de afastar os militares das grandes opções políticas do regime. Como Salazar disse a Caetano: “Levei 30 anos a desviar os militares da intervenção na política e a empurrá-los para os seus estudos, a sua instrução, os problemas da sua organização, armamento e equipamento, e não estou disposto a deixar que se perca todo esse esforço”. Mas este era um regime autoritário em que os militares desempenhavam um papel fundamental como seu sustentáculo, relativamente silencioso em períodos normais, bem mais evidente em períodos de crise. Esta tutela militar indireta sobre o regime estava formalizada na figura do Presidente da República, que não por acaso é sempre um oficial general. Ironicamente, a sua escolha, a sua rotação entre ramos, tornou-se a origem de muitos dos problemas de Salazar entre 1958-61, culminando na Abrilada.

***

O golpe de Botelho Moniz nunca existiu porque foi na verdade um pronunciamento. Mas também praticamente não existe na nossa memória coletiva porque Salazar quis deliberadamente e habilmente ocultar este momento de enorme vulnerabilidade do regime. Por isso não houve prisões, o que também facilitou a reconciliação com os vários setores militares. Mas o impacto do desfecho deste episódio foi bem real e muito importante. A purga no topo das Forças Armadas e o efeito dissuasor do fracasso de um movimento que parecia ter tudo para triunfar permitiu a reafirmação do controlo de Salazar sobre os militares e a recuperação do controlo sobre a definição de prioridades estratégicas para África. A derrota da Abrilada e a guerra em África foram um fator de consolidação do autoritarismo nacionalista do Estado Novo na sua última fase. O conflito foi usado para legitimar – inclusive por Marcelo Caetano, a partir de 1968 – a necessidade de manter um sistema repressivo contra a dita subversão da nação pluricontinental, elemento basilar da fase final do Estado Novo. Mesmo derrotada, a Abrilada de 1961 teve, portanto, um impacto profundo nas décadas seguintes em Portugal, em Angola, na Guiné-Bissau, em Moçambique. E ainda que temporariamente marginalizados, os militares foram inevitavelmente ganhando cada vez mais protagonismo à medida que estas guerras de guerrilha se foram prolongando sem fim à vista, até assumirem o poder em 25 de Abril de 1974.

Para saber mais:
José Freire Antunes (1991), Kennedy e Salazar: o Leão e a Raposa, Lisboa, Difusão Cultural.
Viana de Lemos (1977), Duas Crises, 1961 e 1974, Lisboa, Nova Gente.
Luís Nuno Rodrigues (2008),  Costa Gomes, Póvoa S. Adrião: Esfera dos Livros.
Fernando Valença (1981), A Abrilada de 1961: as Forças Armadas e as Crises Nacionais, Mem-Martins : Europa-América,

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