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Toni (António Feio): “Eu, quando morrer, não quero ser enterrado, pá”.
Zezé (José Pedro Gomes): “Então, pá? O que é que queres que a gente te faça? Que a gente te ponha a secar ao sol? Como o bacalhau! Depois a gente come postas de Toni assado e tal, com batatas a murro, um bocadinho de alho e tal, cebolita, ‘oregos’, um fiozinho de azeite…vai-te lixar, Toni, pá!”.
Toni: “Então estou a dizer-te uma coisa séria e tu estás para aí a reinar, pá?! Não quero ser enterrado, estou farto de ser enterrado. A mim não me enterram mais, hã?!”.
Zezé: “Então o que queres que a gente te faça, pá?”.
Toni: “Eu quando morrer… eu quero ser ‘cromado’, pá”.
Zezé: “Cromado’, Toni? ‘Cromado’, pá? Isso deve doer como o caraças, pá”.
Toni: “Não dói nada, pá”.
Zezé: “Olha lá, e se apanhares uma queimadura de terceiro grau? Chiiiça”.
Toni: “Pá, eu quero ser ‘cromado’, pá, e quero que sejas tu, pá, a espalhar as minhas cinzas ao vento, pá. Assim… estás a ver? [faz gesto como que a espalhar cinzas] E ser levado por uma rabanada, pá. [Assobia para imitar som do vento.] Gostava de ter o meu corpo espalhado pelos quatro cantos do mundo, pá.”
Zezé: “Pois, ‘tá’ bem visto, Toni. É poético à brava, Toni… depois cada vez que um gajo ‘tivesse’ a respirar, um gajo estava a respirar fagulhas desse teu corpo raquítico, pá. Vai-te lixar, ó Toni! Tu és maluco! Ou então ainda era pior: ‘Pá, ó Zezé, estás aí cheio de caspa no ombro. Caspa? Isto não é caspa, pá, não é caspa, pá, Isto é o meu amigo Toni que está aqui, pá, em paz, pá’. Vai-te lixar, Toni! É por causa de gajos como tu, pá, que a camada de ozono está como está, pá…cheia de pó”.

Uma treta

Em 1997, a morte não fazia parte das conversas entre António Feio e José Pedro Gomes. Era, para ambos, algo muito distante, que certamente lhes iria bater à porta, mas numa idade em que para atendê-la teriam de colocar a dentadura postiça e agarrar na bengala. Na estreia da peça de teatro “Conversa da Treta”, no Auditório Carlos Paredes, em Lisboa, ela constava, porém, das linhas iniciais do guião. O público ria-se da naturalidade disparatada com que Toni, o personagem de António Feio – um cromo de tasca vestido com um colete tresmalhado – brincava com um tema tão sério, sem imaginar, claro, que alguns anos mais tarde seria o próprio ator a enfrentá-la com um sorriso.

“Parece que estávamos a adivinhar”, diz José Pedro Gomes, 64 anos, regressado aos palcos depois de ter resistido a 42 dias de coma, na sequência de uma grave pneumonia. “Lembro-me bem disso. Tinha ouvido uma vizinha minha dizer ‘cromado’ em vez de ‘cremado’ e usámos a expressão na peça. O António adorou a ideia”.

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Passados 13 anos, a 29 de julho de 2010, António Feio, um dos mais influentes atores e encenadores da sua geração, morria 17 meses depois de ser diagnosticado com um cancro no pâncreas. Tinha 55 anos. O desportivismo com que encarou a tragédia impressionou os portugueses, que jamais tinham visto uma figura pública rir-se assim naquelas circunstâncias. “’Gostava de agradecer ao meu pâncreas. Ultimamente sou convidado para tudo e mais alguma coisa. Cheguei a ser capa de revista por causa dele. Dos meus últimos trabalhos, o último destacado pela imprensa é o pâncreas da treta.”, disse, no discurso de agradecimento dos Globos de Ouro, em Maio de 2009. Aproveitem a Vida, o livro inspiracional publicado após a sua morte — escrito por Maria João Costa com base nos testemunhos do ator ao longo dos seus últimos meses de vida — foi campeão de vendas em 2010: vai já na 13.ª edição, com cerca de 100 mil exemplares vendidos.

O corpo foi cremado no Cemitério dos Olivais, em Lisboa, e embora as cinzas não tenham sido espalhadas pelos quatro cantos do mundo por uma rabanada de vento, há pó do seu trabalho nos palcos do país e na memória de todos os portugueses forçados a enfrentar a lenta tortura do cancro. E, claro, no ombro de Zé Pedro: “Ele continua muito presente na minha vida. Até me ligou uma médium a perguntar-me se eu queria ir à televisão falar com ele, já depois de ele ter morrido. Disse-me que tinha estado em contacto com o António e que ele lhe tinha dito que eu lhe devia dinheiro”, conta. “Eu respondi-lhe: ‘Já que anda a falar com ele, diga-lhe que eu não lhe devo nada, que deve estar a fazer confusão”.

Muito antes de António Feio desaparecer, já a “Conversa da Treta” se tinha tornado num fenómeno de popularidade. O formato original gerou sequelas no teatro, programas de televisão e até filmes. “A Treta deu para tudo, mas não se esgotou”, diz Sandra Faria, produtora de “Filho da Treta”, que se estreou no passado dia 14 de setembro, e parte da formação inicial que ergueu o projeto há 19 anos. “Senti que seis anos passados da morte do António estava na altura de voltar a este espetáculo, mas com algo original. Sei que ele gostaria que a treta continuasse”.

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António era tão importante para a “Treta” como a “Treta” foi para António. Em Aproveitem a Vida, o ator reconhece que antes de fazer dupla com José Pedro Gomes não se sentia realizado profissionalmente e atuava em muitas peças que considerava “secantes”. Grande parte da sua carreira tinha sido repartida entre passagens por companhias de teatro independentes, que no pós-25 de Abril apostavam em textos políticos e revolucionários que não cativavam o público, e pelo teatro de revista. “Eu costumava brincar a dizer que vivia entalado, como o Martim Moniz, porque a malta do chamado teatro comercial da revista, do espetáculo de variedades, achava que eu era um ator dos grupos independentes, e os outros achavam que eu era um ator das revistas, das comédias”, conta no livro.

No princípio

Ainda era criança quando subiu a um palco pela primeira vez. A família tinha chegado há pouco tempo de Lourenço Marques, em Moçambique, e instalara-se em Carcavelos. Aos 11 anos, ia pela mão da mãe, Ester Feio, assistir aos ensaios da peça em que ela participava, “A Casa de Bernarda de Alba”, de Garcia Lorca, no recém-fundado Teatro Experimental de Cascais (TEC). “Ele ficava sentado a ver os ensaios e andava ali de um lado para o outro. Vi qualquer coisa nele e perguntei-lhe se queria entrar na próxima peça”, diz o encenador Carlos Avillez, de 79 anos, responsável pela descoberta de António Feio. “Não me perguntem o que foi, ao certo, que vi nele. Talvez tenha sido aquele grande sorriso que ele tinha e o sentido de humor que já mostrava em criança. Mas assim que vi o primeiro ensaio percebi que estava diante de um caso único, de uma raridade”.

António Feio começou por uma pequena participação num espetáculo infantil – “A Pastorinha e o Comboio” — e foi logo convidado para interpretar o filho de uma família de pescadores na peça “O Mar”, escrita por Miguel Torga. “Logo na noite de estreia recebeu uma grande ovação. Tornou-se rapidamente na estrela da companhia. As pessoas já não iam ver a Mirita Casimiro nem o João Vasco. Iam ver o pequeno António Feio”, afirma Avillez. “Ele percebia naturalmente o que o teatro era porque tinha o teatro dentro dele”.

Toda a gente gostava do miúdo: o encenador, os colegas e até Almada Negreiros, que tinha assinado o cenário do espectáculo e assistia regularmente aos ensaios. João Vasco, hoje com 66 anos, partilhava um pequeno camarim com o estreante. “Ele tinha tanto sentido de responsabilidade que chegava mais cedo para se preparar e deixar-me o espaço livre para eu me vestir à vontade, enquanto ele ficava sentado muito sossegado num canto”. O êxito no TEC foi tão grande que, pouco depois, António Feio já entrava em anúncios televisivos, programas radiofónicos e folhetins de sucesso, como “Gente Nova”, que catapultou a sua personagem Luisinho para a capa da revista Flama. Chegou a contracenar com Ruy de Carvalho na televisão. “Alguns gozavam comigo, mas as meninas adoravam e isso compensava o resto. Pediam-me autógrafos e tudo”, diz, em Aproveitem a Vida. “Acho que era mais conhecido nessa época do que sou hoje”.

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A ribalta durou três anos. Em 1969, António, a mãe e os irmãos regressaram a Moçambique, de onde o pai nunca tinha saído. O adolescente regressava ao anonimato, repartindo o seu tempo entre os estudos no Liceu Salazar, a prática de basquetebol, futebol, natação e hipismo e o convívio com os amigos no Clube de Lisboetas e na Associação Académica. Um dos passatempos do seu grupo era “furar” casamentos. “Quando percebia que estavam a organizar alguma coisa ia a casa, vestia o meu fatinho e lá ia eu para a festa”, diz na sua obra de memórias. “Só fui apanhado uma vez (…). Decidi levar uns colegas da escola. Como o grupo era um pouco grande deu demasiado nas vistas e puseram-nos fora”. O teatro tinha ficado para trás: António Feio escolheu arquitetura e, com 19 anos, trabalhava já no atelier Veiga Pinto Camelo. Foi quando a companhia Laura Alves, da qual faziam parte Carlos Avillez, João Vasco e outros atores com quem Feio já tinha contracenado chegou a Moçambique para fazer uma digressão.

“Quando saímos do comboio, um rapaz alto dirigiu-se a nós. Não o reconhecemos até que ele nos disse que era o António Feio. A última vez que o víramos era uma criança. Estava feito um homem”, recorda Avillez. Como faltava um ator na comitiva, António Feio encaixou-se imediatamente no elenco das peças “Comprador de Horas” e “Fuente Ovejuna”. “Ele já tinha esquecido o teatro porque em Moçambique não havia muitos espectáculos e porque o pai queria outro futuro para ele. Mas nós resgatámo-lo para a profissão, mudámos-lhe a vida”, diz João Vasco. Quando se deu o 25 de Abril, António Feio voou para Portugal com a companhia de teatro. E já não voltaria dessa viagem para as artes cénicas: voltou a inscrever o seu nome nos cartazes das peças de teatro independente em Lisboa.

Só o pai não achava muita piada. “Lembro-me de assistir a discussões entre os pais do António porque o pai queria que ele seguisse arquitetura e a mãe defendia que ele tentasse ser ator”, diz Lurdes, a mulher pela qual o ator se apaixonara e com quem casara poucos meses após o regresso a Portugal. “Ele desenhava muito bem mas não o via a ter uma atividade que o prendesse a uma cadeira das 9h às 17h. Ele precisava de convívio e de socializar”. A conta de António dava razão aos receios do pai: o teatro vivia dos subsídios e em muitos meses o salário não entrava. “Estávamos em início de carreira e ganhávamos três contos e quinhentos cada um [aproximadamente 18 euros]”, recorda Lurdes, que era jornalista. Quando nasceu a sua primeira filha, Bárbara, em 1977, não teve dinheiro para pagar as despesas médicas do Hospital Particular. “Tiveram de ser os meus pais a emprestarem-me dinheiro para as poder levar para casa”, contou Feio a Maria João Costa.

Bárbara Feio - "O meu pai era sobretudo uma pessoa séria":

Agora, 39 anos depois, Bárbara Feio admite ter sentimentos mistos em relação ao regresso da “Treta”: “Apesar de o Machado ser um ator muito talentoso, continuo a olhar para a ‘Conversa da Treta’ como algo do José Pedro Gomes e do meu pai. Por outro lado, acho incrível que se tenha tornado icónico ao ponto de passar para a geração seguinte”. Destaca o regresso do amigo José Pedro Gomes à cena, depois de ter chegado a ser dado como morto. “Gosto de pensar romanticamente que ele chegou lá acima e que o meu pai o recambiou para a vida com um chuto no rabo.”

A estilista, que chegou a desenhar figurinos para as peças do pai, recorda-se de o êxito da “Treta” ser tão pujante que os portugueses começaram a confundir o ator, António Feio, com a personagem, Toni. “E ele não se importava nada que o público tivesse dele uma imagem popular, porque sempre foi muito eclético, tinha amigos de todas as classes sociais”, diz Bárbara. “Mas o meu pai era o oposto do Toni. Era uma pessoa controlada, que raramente chorava ou ria à gargalhada. Ao contrário do que se pensa, não passava a vida a dizer piadas. Preferia uma conversa filosófica do que uma conversa da treta. Era sério, pensativo, mas com comentários ditos nos momentos certos que nos punham a chorar de riso.”

António e Zé

Feio conheceu Zé Pedro no Teatro da Comuna. “Ele fazia um espectáculo de café-concerto e eu achava-o um ator muito giro. Depois encenei uma peça na Casa da Comédia chamada “Pequeno rebanho não desesperes”. O Zé Pedro foi ver e não gostou nada e daí partiu a nossa amizade”, contava o ator em Aproveitem a Vida. O embrião de “A Conversa da Treta” foi criado a partir de horas de conversa entre ambos; nenhum deles encontrava grande interesse no que andava a fazer e queriam criar um conceito que reaproximasse o público do teatro e que permitisse digressões por todo o país.

Para isso, precisavam de uma casa inicial e encontraram-na na produtora UAU, de Sandra Faria e Paulo Dias, que até então nunca tinha feito teatro mas que a partir daí começou a trabalhar sempre com a dupla. “Naquele tempo, quase todas as produções de teatro estavam dependentes de subsídios. Nós fomos por um caminho diferente. Ficávamos com a receita de bilheteira que, no fim dos espectáculos, dividíamos irmamente por todos”, conta Sandra Faria.

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O sucesso foi instantâneo; derivava não só da identificação do público com aqueles dois personagens populares e da aguçada sátira social, como também da grande cumplicidade entre António e Zé Pedro, que resultava em improvisos delirantes. Poucas semanas após a estreia, a peça, concebida para uma hora e meia, já tinha duas horas. No fim dessa série, chegava às três. O texto nunca era o mesmo, estava em constante mutação. “O António tinha passado pela revista e tinha treino em improvisação, mas eu não”, recorda o ator na pele de Zezé. “Então, ele costumava tentar ‘tirar-me o tapete’, ou seja, sair do texto e desarmar-me com tiradas de improviso, para ver se eu respondia à altura”. O criativo jogo entre os atores chegou a proporcionar momentos de puro virtuosismo cénico. “Uma vez, improvisámos tanto que, a dada altura, eu estava com o texto do Toni e ele com o do Zezé. Continuámos trocados durante uns cinco minutos sem que o público tivesse notado, até aproveitarmos uma deixa para retomarmos o guião”, revela José Pedro Gomes.

José Pedro Gomes recorda António Feio, "genial no improviso"

Não tardou muito para que a “Treta” começasse a viajar pelo país, chegando a localidades que raramente recebiam peças de teatro. “Se todos os portugueses pagam impostos e se a cultura vive de subsídios, é justo que não só o público de Lisboa e do Porto tenha direito a assistir a teatro”, afirma Zé Pedro. Mas a equipa rapidamente percebeu que os espectáculos não podiam ser gratuitos. “Quando as peças eram de borla, o público portava-se mal. Chegámos a ter um ‘mânfias’ deitado sobre quatro cadeiras”. O cenário minimalista contribuía para a itinerância: afinal, cadeiras e cinzeiros arranjam-se em todo o lado. “Chegámos a atuar num salão paroquial em que o fundo era uma janela com estores, cortinas e tudo. Aproveitámos logo para improvisar, fomos à janela ver a vista e brincar com a situação”, conta Gomes.

A participação foi tão massiva que no último espectáculo da primeira série, em Matosinhos, não cabia mais ninguém na sala. “Quando estávamos para entrar em cena, as nossas cadeiras estavam ocupadas com espectadores. Queríamos entrar, precisávamos das cadeiras e não as encontrávamos”, relatou António Feio no seu testemunho final em livro.

O ator realizava assim uma das ambições da sua carreira: encher salas de teatro. “Ele e o Zé Pedro estiveram na vanguarda da reconciliação dos portugueses com o teatro”, diz Bárbara Feio. “O público sempre foi o motor da vida do meu pai. Ele sentia a pressão de as pessoas pagarem para ver a peça dele e de, por isso, terem de sair de lá mais satisfeitas do que quando entraram”. A UAU apercebeu-se do novo fenómeno e começou a fazer inquéritos à saída das atuações. “Percebemos que havia pessoas que nunca tinham ido ao teatro antes da ‘Treta’ e que outras não iam há 20 anos”, diz Sandra Faria. “Na peça seguinte, constatámos que essas mesmas pessoas já tinham ido, entretanto, à Cornucópia ou à Barraca, ou seja, tinham adquirido hábitos de teatro e estavam a ver espectáculos diferentes”.

[excertos da peça “Arte”]

José Pedro Gomes também se apercebeu da revolução que a dupla causou: “Quando eu, o Miguel Guilherme e o António Feio fizemos no Villaret o ‘Arte’, logo a seguir à primeira ‘Treta’, havia muita gente que pensava que ia ver o Toni e o Zezé, desta vez com a companhia do Miguel Guilherme. Eu era o primeiro a entrar em cena e sentia um silêncio de desilusão quando não me viam de bigode, fato branco e fios de ouro. Mas, no fim, aplaudiam de pé. Ou seja, a ‘Treta’ serviu para encher outros espectáculos nossos, que sem ela não teriam a mesma dimensão”.

“O melhor que lhe podiam dar era um bitoque”

O número de horas em palco e de quilómetros na estrada continuava a aumentar. António e Zé Pedro eram muito diferentes nos camarins: António era contido, acumulava nervos até ao tutano e das poucas vezes que explodia fazia-se ouvir bem longe, enquanto Zé Pedro era impulsivo, intolerante e impaciente. “O António chamava-lhe ‘bicho’”, diz a produtora. Entre sessões, Zé Pedro gostava de comer bem: “Ele anda sempre com o guia Michelin dos restaurantes debaixo do braço”, comentava António Feio, que se contentava com bifes e batatas fritas a todas as refeições. “O meu pai comia mal”, confirma Bárbara. “O melhor que lhe podiam dar era bitoques e se lhe servissem peixe cozido perguntava se tinha feito mal a alguém. Raramente comia pequeno-almoço e tinha as rotinas todas trocadas por sair tarde dos ensaios”.

Somavam-se dois maços de tabaco por dia e algumas cervejas com os amigos. Feio sabia que tratava mal o corpo e, por isso, não se revelou surpreendido quando, em Março de 2009, conheceu a possibilidade de ter um tumor no pâncreas. Andava enfartado e com dores de estômago e aproveitara a circunstância de passar mais tempo em hospitais, acompanhando os tratamentos da irmã Nica (que viria a morrer ainda em 2009 também com um cancro pancreático), para se submeter a exames. “Foi nesse fim-de-semana, em Estarreja, que começaram logo as primeiras brincadeiras sobre o pâncreas. Ele dizia ‘Gosto tanto de Estarreja que vou deixar aqui o meu pâncreas!’. Ou então, como Estarreja tinha uma incineradora: ‘Vou já deixar aí o meu pâncreas na incineradora’”, lembrou Sandra Faria em Aproveitem a Vida.

Sandra Faria, produtora de "A Conversa da Treta":

A grande inovação de António Feio foi encarar o cancro como uma contrariedade e não como uma fatalidade. A atitude não passou despercebida aos portugueses. “A reação que tive foi: ‘Pronto, e então? E agora, o que é que faço? Vamos lá!’. É óbvio que não fiquei satisfeito, mas isso sucedeu da mesma forma que em outros momentos em que não fiquei contente com outras coisas que aconteceram e que tiveram um décimo da importância desta”, lê-se no livro.

O ator lutou pela sobrevivência – recorreu aos melhores especialistas nacionais e internacionais, fez tratamentos em Espanha e em Inglaterra, foi aconselhado por peritos americanos, fez acupuntura, espiritismo e até foi ver um padre que se limitou a tocar-lhe nas partes íntimas, fazendo-o fugir a sete pés –, ao mesmo tempo que dedicou os últimos meses a enaltecer a vida. Os fãs fizeram dele um herói. À sua página de Facebook, que hoje conta ainda com mais de 560 mil seguidores, chegavam mensagens diárias. Ele tratava de arranjar tempo no intervalo entre tratamentos e espectáculos para responder a todos. “Uma vez, chegou a casa a dizer que tinha acabado de viver um dos momentos mais bonitos da sua vida. Veio a pé de uma sessão de acupuntura e, ao subir a Av. Fontes Pereira de Melo, começou a ouvir incentivos, aplausos e buzinadelas. Disse que parecia uma festa, como quando o Benfica é campeão”, conta Bárbara Feio.

Dedicou ainda o tempo que lhe restava à redenção. Aproximou-se de quem se tinha afastado, agradeceu a quem nunca tinha agradecido, resolveu problemas – que ao serem relativizados deixaram de o ser – que nunca tinha esclarecido. Nos seus últimos testemunhos, António Feio revelou que se sentia arrependido de não ter estado mais presente na infância das duas filhas mais velhas, uma vez que tinha entretanto constituído outra família (com outros dois filhos) com a atriz Cláudia Cadima. “No último ano, ele tinha a necessidade de verbalizar tudo, dizer que nos amava todos os dias”, diz a sua filha Bárbara. ”Gostava de ser cuidado e apreciava que tratássemos dele, que lhe cortássemos as unhas e que lhe preparássemos as papas proteicas – a que ele chamava bitoque – ao pequeno-almoço”.

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Era um homem de paixões, alérgico à solidão. Separou-se de Lurdes em lágrimas, abraçado a ela, porque, apesar de nunca terem discutido, a incompatibilidade de horários destruiu a relação. “Ele precisava de ter uma mulher que o acompanhasse sempre, mas a minha vocação era o jornalismo, que me ocupava o dia, enquanto ele tinha ensaios à noite. Ainda experimentei ser atriz para o satisfazer, mas não deu”, diz.

E assim deixou os álbuns com centenas de fotografias que tirara, reveladas num laboratório improvisado na casa de banho, a aparelhagem que lhe tinha custado uma pequena fortuna, as duas filhas, uma primeira vida. No início dos anos 80, apaixonou-se pela atriz Cláudia Cadima, que conheceu num casting do Teatro Adoque. “Foi a minha grande paixão”, revelou. Viveram juntos 19 anos. “Ele gostava de tocar guitarra clássica, as elétricas só vieram depois. Adorava Porsches e conseguiu concretizar o sonho de ter um. Via os jogos do Benfica. Fotografava. Sabia muito bem o que queria e fazia por isso. Era amigo do seu amigo, apesar de não ter muitos. Um pai afetuoso”, descreve Cadima. Foi um homem de família, caseiro. Experimentou seriamente a boémia somente após a segunda separação, em 2000.

O ensino foi outra das suas paixões. Deu aulas de teatro ao longo de vários anos no Centro Cultural de Benfica, por onde passaram centenas de candidatos a ator. Nuno Lopes foi um deles. “O meu melhor aluno”, afirmaria António Feio. Quando entrou na cave pejada de pó, ao lado de um ringue de patinagem, que servia como sala de aulas, Lopes deparou-se com um professor pouco convencional: “Eu tinha 15 anos, a maioria dos alunos tinha 18, e o António parecia o nosso irmão mais velho. Apesar de já ser uma estrela, passava por um de nós. Tratava-nos não como amigos, mas como colegas. E era muito menos professoral do que os meus professores da escola”.

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Eram aulas inspiradoras: primava a liberdade, o auto-conhecimento e o espaço para adolescentes poderem ser adolescentes. “Era um dos homens menos preconceituosos que conheci. E eu acho que também sou assim, pouco preconceituoso, muito por influência dele”, diz Nuno Lopes, o ator mais premiado da sua geração. No dia em que se decidiu a fazer a sua apresentação, Lopes recebeu críticas de alguém que não fazia parte da turma mas tinha vindo assistir à aula. “Olhando para trás, acho que as críticas até tinham fundamento”, diz Nuno Lopes. “Mas o António ficou fulo, possesso, defendeu-me com unhas e dentes. Acho que as críticas o magoaram mais a ele do que a mim porque, para ele, a pureza e a força da minha apresentação sobrepunham-se às falhas. Na adolescência, estás exposto à pressão da escola, dos pais, da vida. Mas ali, com o António, todos nos sentíamos protegidos”.

Nuno Lopes foi um dos muitos a homenagear Feio nos seus últimos tempos de vida. Nessa fase, esteve rodeado pelos amigos, as ex-mulheres, os quatro filhos.

Maria João Costa, que o entrevistou ao longo dos últimos seis meses de vida, viu um homem a quem o corpo ia escapando sem conseguir arrastar a mente. “Ele teve tempo para consertar erros, reconciliar-se com amigos e arrumar a vida”, diz. “E, ao mesmo tempo, trabalhou até ao fim. Até chegou a planear a festa de lançamento do livro, que acabou por não poder presenciar, e o seu próprio funeral, onde queria um concerto de uma banda rock”.

Maria João Costa, autora da biografia de António Feio:

António partiu em paz. Sandra Faria tem a certeza que sim, até porque o provou no dia seguinte à sua morte. “Eu não queria ir ao quarto porque me tinha despedido dele e queria manter a sua última imagem ainda em vida. Mas tive mesmo de entrar por razões burocráticas. Quando olhei para ele, tinha um sorriso na cara, uma expressão de paz. Há coisas que não se conseguem explicar, mas foi com um sorriso que ele partiu”. Talvez porque tenha levado até ao fim o seu lema: “Não deixem nada por fazer, nem nada por dizer”. Foram poucos os desejos de António Feio que não se materializaram: ficou o desgosto por não ter ido com os quatro filhos a Moçambique, o seu país natal, e por não ter acompanhado o crescimento de Dinis, o seu primeiro neto, que tinha três meses quando o avô morreu.

Hoje, com seis anos, o filho de Bárbara aproxima-se da varanda, no Lumiar, onde a mãe nos conta as memórias de António Feio. “Tem o andar dele e o mesmo fair-play em relação à vida”, diz a figurinista. Ao fundo, vê-se o terraço do prédio em que o ator viveu os seus últimos dias, de onde gostava de ver passar os aviões, sonhando com as viagens que tinha para fazer. Dinis reconhece o avô quando o vê na RTP Memória. Diz que toda a gente o conhece e que todos gostam dele. À noite, aponta para as estrelas e diz que o avô é uma delas.

A descendência

A intenção de fazer “Filho da Treta” surgiu há cerca de um ano; Zezé passaria a contracenar com Júnior, filho de Toni, uma evolução natural do afamado filósofo brejeiro, com conhecimentos adquiridos através da leitura da wikipédia, vernáculo anglófono, um smartphone e uma bicicleta desmontável para se deslocar. “O Júnior não imita o pai”, diz Rui Cardoso Martins, co-autor dos textos, em equipa com Filipe Homem Fonseca. “É uma espécie de hipster chungoso, um jovem que está dentro da modernidade mas ligado ao universo popular. Ele domina as novas dietas, quer fundar uma startup, diz-se vegano mas come torresmos e usa selfie sticks. Isto provoca um confronto de gerações com o Zezé, que não percebe nada de modernices”. Foi José Pedro Gomes que escolheu o sucessor de António Feio – optou por António Machado, um ator com quem ele e Feio já tinham trabalhado bastante. “Numa peça como esta a cumplicidade é muito importante. O Zé Pedro escolheu um colega a quem reconhece muitas qualidades e com quem se dá muito bem fora do teatro”, afirma Sandra Faria.

Rui Cardoso Martins fala sobre António Feio

O cenário minimalista pouco mudou desde 1997: diante do fundo negro, há duas cadeiras mais modernas, desapareceu o cinzeiro, substituído pela bicicleta desdobrável do novato. A cena abre com Júnior a explicar a Zezé o que é o empreendedorismo e acaba com o último a perguntar-lhe se está com problemas na vesícula depois de este lhe enumerar razões para ser vegetariano – pelo meio, a personagem de José Pedro Gomes refere que era como um irmão de Toni, e que por isso se sente tio de Júnior.

“O António Feio faz mesmo muita falta”, diz Sandra. “Ele está presente não só aqui como em todos os espectáculos que fazemos. A Sónia Aragão, encenadora da peça, era assistente do António. No nosso método de trabalho, pensamos muitas vezes no que ele faria em determinada situação, o que ele acharia, se ele gostaria daquela piada ou não…”.

[Excerto de “2 Amores” em que Machado contracena com António Feio – ao minuto 26:]

Quando a “Treta” original estreou na sala da freguesia de Benfica, o então jovem ator António Machado estava num dos 116 lugares da plateia. Rebolou a rir. “Lembro-me que havia uma grande cumplicidade entre eles e de reparar que improvisavam muito e bem. Era um formato nunca antes visto e que agarrou os espectadores desde a estreia”, diz. Agora, aos 43 anos, ocupa a cadeira vaga desde a morte de António Feio nos diálogos mais populares do país. “É uma carga pesada que tento levar no bom sentido”, diz o ator que interpreta o filho de Toni.

Machado contracenou com Feio em várias peças e chegou mesmo a atuar sob sua encenação. Ficaram muitas memórias: “Uma vez, no Villaret, eu fazia de polícia, o Agente Durão, e estava tão distraído nos bastidores a falar com o filho – um dos 200 — do António Feio que me esqueci de entrar em cena quando era a minha vez. Quando me apercebi, senti um grande silêncio na plateia. De repente, ouvi o António a descer as escadas e a gritar: ‘Ó senhor guarda! É a sua vez de entrar’. E lá fui eu a correr para o palco, completamente fora de tempo. Coisas destas só aconteciam com ele”.