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O pai do psicadelismo morreu há 100 anos

Houve compositores “normais”, excêntricos e muito excêntricos. E houve Scriabin. O centenário da sua morte é ocasião para abrirmos portas para uma nova dimensão. Entre nela com José Carlos Fernandes.

O compositor cujo génio vulcânico concebeu uma obra que iria desencadear um cataclismo universal foi impedido, por circunstâncias mesquinhas, de a terminar. Em 1914, quando dava uma série de recitais de piano em Londres, uma borbulha surgira no seu lábio superior. A borbulha desapareceu mas reemergiu após o regresso de Scriabin a Moscovo e desta vez infectou e degenerou em septicemia, causando a sua morte a 27 de Abril de 1915. Acaso a humanidade tivesse consciência do cataclismo que estivera prestes a desencadear-se, teria soltado um suspiro de alívio. Estando em curso um cataclismo “menor”, a I Guerra Mundial, a morte de Scriabin passou despercebida. Mas há que reconhecer que é impossível imaginar um fim menos apropriado para alguém que se julgava um Messias.

Aleksandr Nikolayevich Scriabin nasceu em Moscovo a 6 de Janeiro de 1872, o que, de acordo com o obsoleto calendário juliano que ainda vigorava no Império Russo, correspondia a 25 de Dezembro de 1871, data que não será de todo dispicienda para o curso da sua vida.

“Se a encararmos como uma droga, a música de Scriabin tem alguma relevância, ainda que seja completamente supérflua. Já temos a cocaína, a morfina, o haxixe, a heroína e incontáveis produtos similares, já sem falar no álcool. É mais do que suficiente”

A mãe, uma pianista de concerto que fora aluna de Anton Rubinstein, morreu quando ele tinha apenas um ano e a carreira diplomática do pai levou-o para a Turquia, de que resultou que o pequeno Sasha foi criado pelas tias e outras familiares. Revelou cedo uma notável apetência pela música e pelas artes, concebendo óperas e peças de teatro e fabricando pianos rudimentares. Em 1884, aos 12 anos, tornou-se aluno do mais afamado professor de piano da Rússia, o rígido e exigente Nikolay Zverev (as aulas começavam às seis da manhã e estendiam-se por 16 horas), com o qual também estudava Sergei Rachmaninov, um ano mais novo do que ele e igualmente sobredotado, ainda que completamente oposto em temperamento (Scriabin era tão exuberante e amante da vida social quanto Rachmaninov era reservado, tímido e sorumbático).

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Datam desta época as suas primeiras peças: a “Valsa op. 1”, composta aos 13 anos, é claramente devedora do seu ídolo, Chopin, mas revela já uma surpreendente maturidade.

https://www.youtube.com/watch?v=jkGwnEG5tV8

Scriabin e Rachmaninov voltariam a ser colegas no Conservatório de Moscovo, cuja classe de piano incluía também Josef Levin, que viria a ter carreira de sucesso como professor e concertista (depois de o nome ter sido alterado, pelo seu empresário, para Lhévinne, para ocultar a origem judaica). A rivalidade entre os três rapazes acabou por ter consequências sérias, quando, numa competição em torno das tecnicamente temíveis “Reminiscências de Don Juan”, de Liszt, Scriabin lesionou a mão direita. Os médicos disseram-lhe que não voltaria a poder tocar e Scriabin, devastado, incluiu na “Sonata para piano n.º 1”, que compôs por esta altura (1892-3), um quarto andamento, “Funèbre”, de tom lúgubre (e atmosfera chopiniana), concebido como um lamento contra a crueldade de Deus por ter decepado à nascença uma brilhante carreira como virtuoso do piano.

Scriabin recuperaria, lentamente, o uso da mão direita, mas as dificuldades experimentadas levaram-no a compor, um ano depois, uma peça destinada apenas à mão esquerda: o “Prelúdio & Nocturno op. 9” (1894).

Na verdade, por ser de muito baixa estatura, Scriabin tinha mãos pequenas, o que lhe vedava as peças mais “atléticas” do repertório dos virtuosos do piano, o que não o impediu de fazer carreira de concertista e de compor – e executar – peças de grande dificuldade técnica.

Em 1894, a sua carreira recebeu um bom empurrão pela mão do editor (e amigo) Mitrofan Belyayev, que lhe pagou um estipêndio em troca do direito de publicar as suas obras. Fez tournées, bem recebidas, pela Europa e pela Rússia e em 1897 foi nomeado professor do Conservatório de Moscovo.

No plano sentimental, as coisas correram pior, já que o casamento, em 1897, com Vera Isakovich, outra pianista de topo do conservatório, se revelou desastroso. Scriabin começou por seduzir uma aluna de 15 anos num colégio de raparigas onde dava aulas de piano, o que causou escândalo em Moscovo, depois conheceu Tatiana Schloezer, outra das suas alunas de piano, e foi viver com ela para a Suíça, abandonando os quatro filhos e a mulher, a quem explicou que esta opção era um “sacrifício” que ele fazia “em nome da arte”.

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Da direita para a esquerda: Scriabin com Tatiana Schloezer e o compositor Leonid Sabaneyev, 1912

“Sou a apoteose de toda a Criação”

À abundante produção de música para piano solo da juventude, juntaram-se, na viragem dos séculos XIX-XX, as primeiras peças importantes para orquestra: um concerto para piano em 1896, brilhante mas relativamente convencional; a “Sinfonia n.º 1” em 1900, uma ambiciosa peça coral, talvez inspirada, no conceito, na “Sinfonia n.º 9” de Beethoven, e cujo texto, da autoria de Scriabin, celebra, em termos exaltados, a música, as artes e o espírito criativo, revelando já a veia messiânica que haveria de tomar conta dele; a “Sinfonia n.º 2” em 1902, que em certos momentos exibe um colorido, uma sensualidade e um arrebatamento dignos de Wagner.

Vasily Safonov, que fora professor de Scriabin no Conservatório de Moscovo e se tornara maestro da Filarmónica de Nova Iorque, dirigiu a estreia americana da “Sinfonia n.º 2” – nos ensaios exibiu a partitura perante a orquestra e anunciou: “Cavalheiros, eis a nova Bíblia”. A estreia em São Petersburgo suscitara reacção bem diversa de Anton Arensky: “Creio que se cometeu um grave equívoco: em vez de ‘sinfonia’ deveria ter-se anunciado uma ‘cacofonia’. […] Durante 30 ou 40 minutos, o silêncio é quebrado por uma sucessão ininterrupta de dissonâncias empilhadas umas sobre as outras, sem qualquer critério discernível”.

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Anton Arensky (1861-1906), que perfilhava o modelo estético de Tchaikovsky, só ouvia cacofonia em Scriabin

Arensky, um compositor estimável mas convencional, também fora professor no Conservatório de Moscovo quando Scriabin lá estudara e já então as suas divergências estéticas tinham feito faísca – a ponto de Arensky ter omitido a sua assinatura do diploma de Scriabin. As peças de Scriabin sempre tiveram o condão de dividir radicalmente as opiniões, sendo aclamadas por uns como o futuro da música, por outros como o produto de uma mente insana.

Pela mesma altura, Scriabin considerou a ideia de compor uma ópera, mas parece ter-se empenhado mais no libreto do que na música – os únicos vestígios musicais de tal labor foram duas peças para piano resultantes da reciclagem de duas árias, o “Poème op. 32” e o “Poème tragique op. 34”. Do libreto só se sabe o que transmitiu aos amigos: teria por protagonista um herói-filósofo-músico-poeta (a que não deu nome, mas não é difícil adivinhar a sua identidade) e seria, essencialmente “uma ópera filosófica, altissonante e terrivelmente patética, completamente desprovida de acção, tendo por personagens abstracções filosóficas e não pessoas” (assim a descreveu um seu confidente). A dada altura, o herói proclamaria: “Sou a apoteose de toda a criação. Sou o propósito dos propósitos, o fim dos fins”.

Uma revista musical disse tratar-se da “obra de um neurótico, um festejo de 4 de Julho em que cada membro da orquestra subscreveu uma Declaração de Independência e tenta fazer tanto ruído quanto possível”.

Em 1905 estreou a “Sinfonia n.º 3 Le divin poème”, destinada a uma orquestra de proporções gigantescas e que, segundo o compositor, exprimia a evolução espiritual da humanidade, desde um passado envolto na bruma de mitos e crenças até a uma proclamação de liberdade e comunhão com o cosmos.

É uma obra irrequieta, em fluxo permanente, cuja agitação, sensualidade e arrebatamento deixaram muitos críticos perplexos – a revista Musical America, de Nova Iorque, proclamou, em 1907, tratar-se da “obra de um neurótico, um festejo de 4 de Julho em que cada membro da orquestra subscreveu uma Declaração de Independência e tenta fazer tanto ruído quanto possível”.

“O Tempo do Êxtase chegará”

Presume-se que as leituras dos textos de Nietzsche sobre o advento do super-homem terão alimentado os delírios messiânicos de Scriabin – que receberam novo impulso quando, em 1905, o compositor descobriu a teosofia de Helena Blavatsky. As ruminações teosóficas de Scriabin inspiraram o poema sinfónico “Le poème de l’extase” (1907), uma obra que avança ainda mais na instalação da ambiguidade rítmica e na dissolução das harmonias convencionais. A composição de Scriabin começara a assumir características muito idiossincráticas, com base em transposições do “acorde místico”, ou pleroma, que, segundo Scriabin “era concebido para proporcionar a percepção instantânea daquilo que estava para lá da capacidade conceptual da mente humana. A sua estranha quietude é uma sugestão gnóstica de uma alteridade oculta”.

As notas que acompanhavam o programa não eram menos grandiloquentes e anunciavam que “quando o Espírito tiver atingido o zénite da sua actividade e se tiver libertado do amplexo da teleologia e do relativismo, quando tiver esgotado completamente a sua substância e a sua energia activa, o Tempo do Êxtase chegará”. O Daily Advertiser, de Boston, viu na obra motivações bem mais prosaicas: “Fez lembrar o êxtase dos cavalheiros folgazões que crêem que o ar está povoado de macacos verdes de olhos vermelhos e caudas flamejantes, um tipo de êxtase que na Rússia é vendido a dois rublos a garrafa”.

Chopin on acid

A música orquestral reflectia a vertiginosa evolução por que passava a música para piano de Scriabin – e é nas 10 Sonatas, compostas entre 1893 e 1913, que essa evolução é mais patente. As influências de Chopin e Liszt foram dando lugar uma linguagem cada vez mais pessoal, que descarta a estrutura tradicional, favorece harmonias cada vez menos convencionais, desenvolvimentos imprevisíveis, alternância de momentos de rarefacção com densos turbilhões sonoros, cintilações feéricas com negrume comatoso, roncos subterrâneos com martelamentos obsessivos.

Um ponto de viragem decisivo é a “Sonata n.º 5″ (1907), contemporânea de” Le poème de l’extase” e que vem acompanhada de versos extraídos do programa desta: “Chamo-vos à vida, forças misteriosas,/ Afogadas nas tenebrosas profundezas do espírito criador,/ Timoratos embriões de vida,/ Trago-vos a audácia”. Audácia é, com efeito, o denominador comum de todas a obra de Scriabin daqui em diante.

As três últimas sonatas foram concluídas em simultâneo em 1913 e, mais de um século depois, mantêm o poder de intimidar muitos ouvintes. A “Sonata n.º 9”, a que Scriabin deu o título de “Poème satanique” (mas que ficou conhecida como “Missa negra”), foi descrita pelo compositor como um pesadelo assombrado por visões demoníacas e é, com efeito, uma das peças mais desoladas e tenebrosas jamais compostas.

Os demónios parecem ter sido exorcizados, pois a “Sonata n.º 10” tem atmosfera mais apaziguada e vê o negrume dar lugar à luz. Scriabin comentá-la-ia assim: “Os insectos nascem do sol que os alimenta. São os beijos do sol como a minha Sonata n.º 10 é uma sonata de insectos. Quão perfeita é a compreensão do mundo quando olhamos para as coisas desta forma”. O discurso sugere que o seu espírito sobreaquecido estava cada vez mais alheado da realidade, mas é impossível não ficar fascinado pelo universo sonoro que ele era capaz de destilar.

O psicadelismo avant la lettre

Entretanto, em 1911, estreara o poema sinfónico “Prométhée: Le poème du feu”, vagamente baseado no mito de Prometeu, que seria a última obra orquestral que Scriabin completaria. À extraordinária audácia no plano sonoro, o compositor juntaria uma dimensão inédita: a partitura incluía uma parte para “teclado de luzes”. Scriabin estabelecia um vínculo muito preciso entre tons musicais e cores, um fenómeno comummente designado por sinestesia, ainda que, no caso de Scriabin não seja claro se se tratava de uma associação “automática” a nível neurológico ou se resultava de uma elaboração intelectual influenciada pelas doutrinas teosóficas e pela sua ambição de unir todas as formas de expressão artística. A sinestesia não é incomum entre compositores (e entre pessoas sem apetência ou talento musical), embora o único a tê-la tomado como relevante critério composicional tenha sido (além de Scriabin) Olivier Messiaen (1908-1992), que, talvez não por acaso, foi um compositor também dado a misticismos e a discursos altissonantes.

Uma apresentação em Nova Iorque, em 1915, já incluiu projecção de luzes num ecrã, mas o resultado ficou bem aquém da ambição de Scriabin, que pretendia que toda a sala ficasse banhada em luzes coloridas.

Seja como for, Scriabin corria à frente do seu tempo e o “teclado de luzes” ou “órgão de cores” que faria corresponder notas a luzes coloridas estava ainda por inventar, pelo que a estreia da obra, em Moscovo, em 1911, teve “só” música. Uma apresentação em Nova Iorque, em 1915, já incluiu projecção de luzes num ecrã, mas o resultado ficou bem aquém da ambição de Scriabin, que pretendia que toda a sala ficasse banhada em luzes coloridas.

[Documentário com making of e execução integral (a partir de 9’45) de “Prométhée: Le poème du feu”, em 2010, pela Yale Symphony Orchestra, no Woolsey Hall, com acompanhamento luminoso que reconstitui as associações de notas e cores pretendidas por Scriabin]

Com ou sem luzes, a obra defrontou-se com a incompreensão: “É o produto de um compositor outrora estimável que sofre de um desarranjo mental”, proclamou o nova-iorquino Musical Quarterly. Quando Cecil Gray, em A survey of contemporary music, de 1924, associou a música de Scriabin a substâncias psicotrópicas talvez tivesse o proto-psicadelismo de “Prométhée” em mente: “Se a encararmos como uma droga, a música de Scriabin tem alguma relevância, ainda que seja completamente supérflua. Já temos a cocaína, a morfina, o haxixe, a heroína e incontáveis produtos similares, já sem falar no álcool. É mais do que suficiente”. Não era, mas seriam precisos mais algumas décadas para que o LSD fosse sintetizado, para que Timothy Leary advogasse entusiasticamente o seu uso e para que Syd Barrett ou Jimi Hendrix descobrissem as suas potencialidades.

Uma mariposa atraída pela chama

Vladimir Ashkenazy tem sido, como pianista e maestro, um paladino da obra de Scriabin e, após a gravação integral das 10 sonatas (Decca), realizada entre 1972 e 1984, regressa agora ao compositor para nos oferecer, em “Vers la flamme” (Decca), uma colecção de miniaturas para piano menos conhecidas, compostas entre 1889 (“op.2/1”) e 1914 (“op.74”).

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A breve duração das peças – a maioria tem 1-2 minutos – não é sinónimo de pouca relevância, já que Scriabin investiu nelas alguma da sua melhor inspiração e levou a arte da concisão a um patamar raramente atingido por outros grandes compositores. A disposição das peças por ordem cronológica torna evidente a crescente divergência de Scriabin em relação ao modelo romântico e o internamento em territórios cada vez mais bravios e remotos. A partir de um terço do CD – ou seja, por volta de 1903 – a música passa a fazer-se de fogos-fátuos (“op.42/3”), ondulações irregulares (“op.52/1”), bruxuleios caprichosos (“op.52/2”), danças de duendes (“op.63/3”), chuvas de estilhaços (“op.74/1”), ou de um tactear no escuro que termina num braseiro furioso (“op.72”, o “Vers la flamme” que dá título ao CD).

Ashkenazy já se aproxima dos 80 anos, mas conserva as suas capacidades pianísticas intactas e compreende como poucos o universo sonoro scriabiniano.

Uma fugaz cintilação de génio

O CD é fechado por uma obra que exerce um fascínio duradouro, apesar de durar apenas um minuto. É uma peça – o “Prelúdio op.3/1” – composta aos 10 anos de idade, em 1918, por Julian, o filho mais novo do segundo casamento de Scriabin, com Tatiana Schloezer. Ainda muito novo, Julian recebeu lições de piano do pai e revelou dotes extraordinariamente precoces de compositor e pianista.

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Os três filhos da união de Scriabin com Tatiana Schloezer: Julian, Marina e Ariadna

O “op.3/1”, um dos quatro breves prelúdios que nos deixou, exibe uma prodigiosa maturidade e uma perturbante afinidade com o onirismo agitado da música paterna. Alguns estudiosos contestam que os prelúdios sejam da autoria de Julian – a verdade é que houve mais crianças-prodígio que começaram a compor aos 10 anos, mas costumam ficar-se pelas peças amáveis e convencionais, não revelam a sofisticação e ousadia destes prelúdios.

Onde poderia ter chegado alguém que compunha assim aos 10 anos? Nunca saberemos, pois Julian desapareceu no rio Dnieper, em Kiev, em 1919, com apenas 11 anos, num acidente com um barco – o corpo nunca foi encontrado.

O lado oculto de Scriabin

Tal como acontece com “Vers la flamme”, dir-se-ia que o programa de “Nuances” (Decca), pela pianista Valentina Lisitsa, foi delineado para colmatar as lacunas na “Scriabin Edition”, a edição completa da obra do compositor editada pela Decca. A maioria das peças são ainda mais obscuras do que as do CD de Ashkenazy e são raramente gravadas, pelo que este CD é precioso para os fãs de Scriabin.

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Dominam as peças de juventude, muito breves mas revelando um domínio técnico e expressivo admirável. A “Valsa WoO7”, composta aos 14 anos, não se sai mal no cotejamento com as valsas de Chopin que lhe serviram de modelo; do acima mencionado “Nocturno” do “Prelúdio & Nocturno para a mão esquerda op. 9”, composto aos 22 anos, emana uma magnífica melancolia; e o “Impromptu op. 14/2”, um ano posterior, é uma ondulação lenta de forte poder hipnótico.

As peças de juventude circulam na órbita dos modelos românticos, mas com o “Poème op. 41”, de 1903, entra-se noutra galáxia: não há contornos definidos nem sentido de progressão óbvio, “apenas” ondulações e cintilações. O adjectivo “pontilhista”, aplicado à obra para piano da fase madura de Scriabin, por analogia com Seurat e outros pintores impressionistas contemporâneos, não é deslocado.

Avançando ainda mais na desintegração das convenções pianísticas, o “Étude op. 65/2”, de 1911-2 é fluido e diáfano como a recordação de um sonho e rivaliza, em génio e ousadia, com os “Préludes” que Debussy compunha pela mesma altura.

Como usual, a interpretação de Valentina Lisitsa exibe um domínio técnico tal que tudo parece fácil e natural, mas a pianista ucraniana está longe de ser um robot: até consegue infundir emoção e profundidade a “curiosidades” académicas como as Fugas WoO13 e 20.

Lisitsa (n. Kiev, 1973) revelou desde cedo excepcionais qualidades como pianista, mas após uma mudança para os EUA e vários avanços e recuos, esteve à beira de abandonar uma carreira periclitante e aceitar um emprego seguro como tradutora na CIA. Lisitsa acabou por angariar tão grande número de entusiastas no YouTube que a Decca acabou por reparar nela e oferecer-lhe um contrato de exclusividade – se o YouTube se tem revelado eficaz a veicular e amplificar a vulgaridade e a imbecilidade, também tem destes momentos redentores. A CIA terá certamente encontrado uma tradutora tão competente como Lisitsa, mas o mundo teria dificuldade em encontrar uma pianista deste gabarito.

Toda a Criação numa caixa

Uma vez que Scriabin morreu com apenas 43 anos e boa parte da sua numerosa obra para piano são miniaturas, a sua opera omnia, reunida na Scriabin Edition da Decca, cabe em apenas 15 CDs. A música para piano solo ocupa nove CDs: os primeiros oito contêm as obras com número de opus, arrumadas por ordem cronológica, o nono diz respeito a obras não editadas.

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As interpretações são confiadas a Vladimir Ashkenazy, Valentina Lisitsa e Gordon Fergus-Thompson, com contributos pontuais de Pierre-Laurent Aimard, Ivo Pogorelich, Sviatoslav Richter, Benjamin Grosvenor, Roberto Szidon e Anna Gourari. O CD 18 é consagrado a uma perspectiva histórica da interpretação da obra para piano de Scriabin, de mestres lendários como Vladimir Horowitz, Sviatoslav Richter e Shura Cherkassy, até às jovens promessas Benjamin Grosvenor e Daniil Trifonov, passando por Mikhail Pletnev e Yevgeny Kissin.

A música orquestral preenche cinco CDs e está maioritariamente confiada aos maestros Vladimir Ashkenazy (com a RSO Berlin), Valery Gergiev (com a orquestra do Kirov) e Eliahu Inbal (com a RSO Frankfurt).

Scriabin queria organizar uma cerimónia/ experiência mística que duraria sete dias, uma síntese que fundiria todas as artes – música, poesia, bailado, imagens, odores e mirabolantes efeitos especiais.

Parte do CD 15 e os CDs 16 e 17 da Scriabin Edition estão consagrados ao opus magnum que deveria coroar a obra de Scriabin. Na verdade, o que a Decca gravou não foi o “Mysterium”, mas aquilo a que foi dado o nome de “Preparação para o Mistério Final”: uma reconstituição, muito especulativa, por Aleksandr Nemtin, das 53 páginas de esboços e do texto com 1000 versos que Scriabin elaborou para a introdução (“L’acte préalable”) do “dito Mysterium”. A obra, cuja reconstituição consumiu a Nemtin 26 anos de labor, requer coro, piano solista, grande orquestra e “teclado de luzes”.

Scriabin delineou “L’acte préalable” de “Mysterium” em 1912-13, graças a adiantamentos pagos pelo maestro Serge Koussevitzky, que adquirira os direitos de execução da obra. Mas Scriabin passou boa parte do tempo, não a compor, mas a traçar planos megalómanos para a estreia – que requereria a construção de um templo no sopé dos Himalaias. Scriabin levou o projecto tão a sério que, planeando fazer uma repérage de locais viáveis para o evento na Índia, chegou a comprar um chapéu tropical e uma gramática de sânscrito.

O conceito de Gesamtkunstwerk (“obra de arte total”) de Wagner era uma brincadeira de crianças face ao mega-evento multimédia, que Scriabin tinha em mente: tratar-se-ia de uma cerimónia/experiência mística que duraria sete dias, uma síntese que fundiria todas as artes – música, poesia, bailado, imagens, odores e mirabolantes efeitos especiais – e que desencadearia o fim do mundo e o início de um novo ciclo cósmico, com uma nova raça de homens. O papel de Messias estaria, claro, reservado a Scriabin: “Não morrerei. Sufocarei em êxtase após o Mysterium”. O facto de ter nascido a 25 de Dezembro contribuiu para reforçar a sua convicção de que lhe estava reservado o papel de conduzir o mundo a uma nova era.

A descrição que Faubion Bowers, o primeiro biógrafo de Scriabin, faz de “Mysterium”, baseado nas notas do compositor e nas conversas que este teve com amigos, é esclarecedora: “O público será convocado de todos os cantos do mundo por sinos suspensos das nuvens. A cerimónia terá lugar num templo a construir na Índia”, cuja forma de meia esfera seria complementada pelo seu reflexo num espelho de água, perfazendo a perfeição do círculo. “O público dispor-se-ia em arquibancadas do outro lado da água. […] No centro do palco, estaria Scriabin, sentado ao piano, rodeado por falanges de instrumentistas, cantores e bailarinos”, a que se somariam procissões de recitantes trajados a rigor. “A coreografia incluiria olhares, expressões, movimentos dos olhos, toques com as mãos”. Seriam difundidos “perfumes agradáveis mas também os fumos acres do olíbano e da mirra e haveria colunas de incenso a fazer parte do cenário. Luzes, fogos e efeitos luminosos em constante mutação envolveriam os executantes e o público”. Esta inebriante combinação de sensações “prepararia as pessoas para a sua dissolução no êxtase”.

Nos tempos de hoje, habituados como estamos à prodigiosa parafernália multimédia dos mega-concertos rock, articulando jogos de luzes, estroboscópios, ecrãs gigantes, máquinas de fumos, lasers, hologramas, fogo-de-artifício, projecções vídeo, gadgets cénicos e coreografias complexas, as concepções de Scriabin poderão ter impacto algo mitigado, mas no contexto do que eram os concertos há um século, eram absolutamente revolucionárias.

Mesmo admitindo que parte de “Preparação para o Mistério Final” é obra de Nemtin, há que reconhecer que é uma obra que, tal como “Prométhée”, está à frente do seu tempo. Na verdade, ao contrário dos outros grandes vultos que marcaram a música dos alvores do século XX – Mahler, Debussy, Stravinsky, Schoenberg – Scriabin não teve continuadores e se é possível encontrar afinidades, em termos de atmosfera, com “Preparação para o Mistério Final” em “Amériques” (1921), de Edgard Varèse, ou na “Sinfonia Turangalîl”a (1948), de Olivier Messiaen, estes compositores empregaram técnicas de composição bem diversas das de Scriabin.

Em 1915, o Musical Courier, acusava Scriabin de ser “vítima da ilusão, comum entre os degenerados neuróticos, sejam eles homens de génio ou idiotas vulgares, de que dilatou as fronteiras da arte […] Em vez disso, deu um passo atrás”. É um julgamento profundamente injusto: se colocarmos de lado a personalidade obsessivamente narcísica e o discurso grandiloquente de Scriabin, a sua obra é de uma originalidade e intensidade que desafiam o tempo.

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