Na quarta temporada de Seinfeld, os argumentistas da série, supervisionados por Jerry Seinfeld e Larry David, imaginaram um episódio, chamado “Bubble Boy”, com um plot tão improvável e rocambolesco que só pode ter sido possível graças a doses massivas de auto-confiança e um senso de total e absoluta impunidade.
Em síntese, os quatro protagonistas iam passar um fim de semana ao campo, num café um homem diz a Seinfeld que o filho é fã dele e apreciaria muito a hipótese de o conhecer, já que o rapaz vive encerrado numa bolha, por causa da sua saúde frágil, George (que é quem fica com a morada) resolve acelerar, fazendo com que Jerry (que segue no seu carro) o perca de vista, de modo que George e a sua namorada Susan acabam a jogar Trivial Pursuit com o Bubble Boy enquanto esperam por Jerry.
O Bubble Boy responde a uma pergunta com “Os mouros” (“the moors”), mas o cartão da resposta tem uma gralha e diz moops em vez moors; George considera a resposta do rapaz errada, o rapaz zanga-se, George e rapaz envolvem-se numa luta – e a bolha do rapaz acaba por rebentar, num inacreditável momento de non-sense e humor negro impossível em argumentistas que estejam preocupados com a opinião das pessoas.
[o trailer da terceira temporada de “Succession”:]
O estado de espírito dos escritores de “Succession” devia ser semelhante, à entrada para a terceira temporada – não importa o quanto estiquem a corda, ninguém ficará chocado depois de tudo o que já vimos nas duas temporadas anteriores. E talvez seja isto que explique que escassos segundos após o começo do primeiro episódio da mencionada terceira temporada (que se estreia à meia noite de domingo para segunda) Roman Roy pergunte ao seu pai se quer que (Rom) vá com ele (Logan, o pai), ao que o pai responde:
“Why, you wanna suck my dick?”
Não é difícil imaginar o autor da frase a rir-se às gargalhadas quando a escreveu, a restante equipa de escritores a ter a mesma reação ao rever o guião e os atores idem, nas típicas sessões de leitura que antecedem a gravação. Numa simples frase está resumido o princípio de “Succession”: um pai de tal forma poderoso e bully que dá uma resposta tão ordinária e inaceitável a um filho que este (ou qualquer filho de qualquer pai que dissesse aquilo) não pode senão ficar traumatizado pelo que acabou de ouvir.
O trauma é o pano de fundo, o design de interiores, por assim dizer, de “Succession”, uma série apostada em escavar o sistema de esgotos do capitalismo, em observar ao microscópio o que acontece quando a ganância é recompensada (permitindo que um só homem adquira uma quantidade absurda de poder) e quais os efeitos secundários da autoridade desenfreada e narcísica, o friendly fire que este provoca nos privilegiados.
Para quem desconhece o assunto, “Succession” trata da família Roy, magnatas dos media vagamente (ou muito, consoante as más línguas) inspirada na família de Rupert Murdoch, o dono da Fox News (entre muitas outras coisas). Quando a série começa, o patriarca, Logan (Brian Cox), está com problemas de saúde tão graves que o seu afastamento do império que construiu parece ser o cenário mais provável, o que espoleta uma guerra entre os filhos pela sucessão; quando Logan recupera, a guerra torna-se total: o pai usa os filhos uns contra os outros, de modo a manter o poder, as fidelidades entre irmãos e colaboradores mais próximos do pai mudam constantemente, como se cada personagem fosse um atleta treinado por um tático esquizofrénico.
Um dos aspetos mais fascinantes de “Succession” é a evolução do seu tom: agora a série é descrita como uma comédia negra, mas nos primeiros episódios parecia situar-se num cenário quase Bergmaniano de exploração das relações filiais, dos traumas que a ambição de Logan provocou em quem o rodeia: Logan aplica aos quatro filhos o mesmo bullying que tanto sucesso lhe trouxe nos negócios, com resultados que um ser humano (digamos) mais ou menos normal qualificaria como tóxicos.
O filho mais velho, Connor (Alan Ruck), vive distanciado da família, apaixonado por uma prostituta que claramente não o ama e ambiciona candidatar-se à presidência dos EUA com um programa (?) ultra-neo-liberal; o segundo, Kendall (Jeremy Strong), é simultaneamente o mais capaz e com mais visão, mas também aquele que mais quer a validação do pai – e, como ela nunca chega ou, quando chega, chega sob a forma de manipulação – é o mais disposto a traí-lo à primeira oportunidade; Roman (Kieran Culkin) é criativo e sociável (por oposição a Kendall, que é um monstro de tensão e se esforça por ser cool) mas também completamente irresponsável, incapaz de penetrar uma namorada e viciado em ser insultado enquanto se masturba; enquanto a mais nova, Siobhan (Sarah Snook), é a que apresenta um maior dom de diplomacia, que esconde o seu auto-centramento (característica comum aos quatro irmãos) e a sua incapacidade de sentir amor ou de colocar o amor à frente das suas ambições.
E se inicialmente as peças no xadrez parecem mover-se com algum pingo de humanidade, ali a meio da primeira temporada alguém deve ter posto alguma coisa na água dos argumentistas porque eles mandaram às malvas as interpretações psicológicas e começaram a ter verdadeiro prazer em tornar cada uma destas personagens num ser humano execrável, capaz de trair pai, mãe e irmão (ou irmãos), se isso trouxer um pouco mais de poder.
Imaginem que têm quatro gatos, que sujeitam à mesma experiência: durante anos dão com uma moca violentamente em cada gato e depois alimentam-nos; um dia deixam os gatos à fome durante dias, após o que metem os gatos todos no mesmo saco, fecham o saco e ao lado colocam um prato de comida. Depois sentam-se numa cadeira e assistem ao espectáculo dos gatos a esgadanharem-se (vamos imaginar que o saco era transparente e permitia que os gatos respirassem, mas pouco).
É isso que “Succession” faz, quando larga a psicologia e se diverte a tratar mal as suas personagens: os palavrões sucedem-se, disparam-se mais acusações que balas num western, há traições matrimoniais, traições na fidelidade laboral, drogas, mortes que são escondidas da polícia, num circo tão demencial que faz “Dallas” – que era, até “Succession”, a bandeira das novelas capitalistas – parecer uma história pacata de meninos do coro que um dia deixaram cair a caixa das esmolas.
(E, sim, “Succession” é uma novela e foi exatamente no momento em que assumiu esse lado que a série levantou voo e se tornou viciante.)
Ao longo das duas primeiras temporadas, a Waystar (a empresa-mãe dos negócios da família) sofre problemas de cash-flow por causa do seu grau de endividamento, o que leva a movimentações para a venda parcial ou total da empresa, o que implica uma série de traições nas alianças familiares e atos de gestão de uma crueldade desumana, demonstrativos de como os super-capitalistas vivem a leste do resto da humanidade, sem noções básicas de piedade ou empatia humana.
Quando a segunda temporada chega ao fim, a Waystar está sob escrutínio, depois de ter sido revelado que a sua linha de cruzeiros havia estado envolvida, ao longo de anos, em casos de abuso sexual que foram abafados graças ao recurso a cheques chorudos. No último episódio, Kendall, depois de ouvir o pai dizer-lhe que nunca o havia visto como seu sucessor porque lhe faltava instinto assassino, assume publicamente que o pai sempre soubera dos abusos e procurou ativamente escondê-los.
É nestes preparos que se inicia a terceira temporada; ora, se na primeira se foram enumerando os traumas de cada um dos filhos, e na segunda estes libertaram a franga e se atiraram à jugular do pai, que posteriormente os manipulava uns contra os outros, na terceira já não se perde tempo a mostrar o passado de uma personagem ou as suas reflexões – basicamente, a terceira temporada de “Succession” é um massacre do início ao fim: o número de tiros disparados em cada cena deixaria Rambo envergonhado, as facadas nas costas são tantas que Júlio César reveria em alta a sua opinião sobre Brutus.
Nada nem ninguém está a salvo – da traição do pai, da mãe, de um irmão e muito menos de si próprio, do seu próprio ego. Como escorpiões enlouquecidos os membros desta família envenenam tudo ao seu redor, rodopiando sem parar em torno do seu próprio narcisismo malévolo. “Succession” ainda é uma comédia mas agora tornou-se implacável e quase amarga – como se nos quisesse esfregar na cara o resultado do capitalismo desenfreado, do excesso de poder, da ausência de rédeas.
Sendo “Succession” uma espécie de passaporte para os bastidores da peça de teatro em que os mais ricos vivem, por vezes quase nos esquecemos que estamos a lidar com uma das famílias mais ricas e poderosas do mundo, com o poder de escolher presidentes – mas quando nos recordamos, torna-se claro que muitas das decisões dos ricos e poderosos não são frias nem racionais, antes baseadas em poder, vingança, vontade de humilhar ou amesquinhar o outro e um narcisismo desenfreado.
“Succession” não tem a mínima tendência pedagógica, mas ensina-nos uma coisa: que a ferida aberta na infância continua a sangrar vida fora, pelo menos enquanto não a aceitarmos e continuarmos a arrancar a crosta e a coçá-la. Ninguém é pai de si próprio, ninguém é completamente responsável pelas suas próprias dificuldades, somos imitações dos nossos pais que um dia ganham vida própria – mas todos podemos escolher deixar de ser apenas filhos. As personagens de “Succession”, trágicas no sentido grego de trazerem a si o mal, não conseguem evitar libertar-se do seu egocentrismo, da sua ferida aberta na infância, e acabam, como escorpiões febris, a picarem-se e envenenarem-se a si mesmas.