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No ano em que se celebram os 50 anos do 25 de Abril, estreia-se no Teatro Maria Matos, em Lisboa, um musical que conta uma história de amor proibido passada no tempo da revolução. Ela é Olívia, uma rapariga progressista, adversária do Estado Novo. Ele é Francisco, filho de um agente da PIDE. Os protagonistas vêm de sítios muito distintos da sociedade portuguesa e a narrativa de A Madrugada Que eu Esperava vai centrar-se em todos esses dilemas.
A peça estreia-se a 14 de fevereiro e os bilhetes foram colocados à venda esta segunda-feira, 11 de dezembro, com preços entre os 20€ e os 25€. Estará em cena no Teatro Maria Matos até 28 de abril. A 30 e 31 de maio, será apresentada no Coliseu do Porto, com ingressos entre os 15€ e os 35€.
Este não será o espetáculo mais convencional de todos. A ideia partiu de duas das artistas pop de maior sucesso em Portugal, Bárbara Tinoco e Carolina Deslandes, que compuseram as canções e vão protagonizar a peça. As duas cantoras e amigas uniram-se ao escritor e argumentista Hugo Gonçalves, que ficou responsável pelo texto, nesta que é também a sua estreia a escrever para teatro — e logo com um musical. Com encenação de Ricardo da Rocha, o elenco inclui ainda Diogo Branco, Brienne Keller, JP Costa, Dinarte Branco, João Maria Pinto, Jorge Mourato, José Lobo, Maria Henrique e Mariana Lencastre.
A idealização de um musical que se casa com a realidade
Bárbara Tinoco e Carolina Deslandes têm feito várias colaborações ao longo dos seus percursos artísticos. Já compuseram e atuaram juntas, mas esta terá sido a primeira ideia que tiveram quando pensaram em fazer algo como resultado de uma colaboração. “Sabem aquelas coisas que os amigos dizem, tipo: ‘bora abrir um bar? Nós foi: ‘bora fazer um musical. A mais louca e difícil das ideias, por isso é que, só agora, três anos depois, conseguimos materializar isto”, explica Bárbara Tinoco ao Observador.
Ambas assumem serem fãs de musicais, seja no teatro ou no cinema, mas Carolina Deslandes era a metade da dupla com alguma experiência na área. Interpretara Cinderela num musical no gelo e, em criança, chegou a ter aulas de representação. “Quando estamos em palco a cantar, apesar de termos os nossos músicos, somos a pessoa da fala. E no teatro, num grupo de atores, toda a gente bate texto uns com os outros e existe essa dependência mútua”, acrescenta Carolina Deslandes. “Fiquei com saudades disso, então recentemente voltámos a falar mais desta ideia. Mas, como com todas as outras ideias, eu tenho-as e de repente já foram. A Bárbara é a pessoa disciplinada neste duo que faz efetivamente as coisas acontecerem.”
Ambicionavam construir um musical, até porque sentem no país uma falta de espetáculos para o grande público que reflitam a própria vivência ou história. “Vamos à maioria das grandes cidades europeias e há sempre musicais ilustrativos, espectáculos que contam um bocadinho a história do sítio que estamos a visitar”, defende Carolina Deslandes. “E muitos dos musicais que cá existem são adaptações de musicais de fora, que são muito bem feitos, mas porque é que não há um musical que fale da história do nosso país, que tenha música escrita por artistas contemporâneos e que possa existir fora da peça, para que as canções possam ter uma vida fora da dramaturgia?”
Foi com estas premissas em mente que contactaram Hugo Gonçalves. Bárbara Tinoco tinha lido o Filho da Mãe”, publicado em 2019, e havia sido o seu “livro favorito” daquele ano. Ao Observador, Hugo Gonçalves recorda que recebeu o convite de Bárbara Tinoco e Carolina Deslandes “com alguma surpresa”, até porque nunca tinha escrito para os palcos nem conhecia as duas artistas.
Ainda assim, gostou logo da ideia do projeto. “No primeiro encontro com a Bárbara, surpreenderam-me algumas coisas: a maturidade que ela tem para a sua idade e a completa falta de deslumbramento com o mundo do espetáculo, além da seriedade tremenda em relação ao ofício. Se calhar, uma maturidade que eu não sei se tinha na idade dela. Isso deu-me alguma segurança, porque sabia que ela queria fazer uma coisa a sério.”
Hugo Gonçalves explica que sempre preferiu os “desafios” e que tem optado regularmente por sair da sua zona de conforto. “Se pensar nos artistas que mais admiro, que às vezes nem são necessariamente aqueles de que mais gosto emocionalmente, são aqueles que, depois de um suposto sucesso, vão experimentar coisas completamente novas. Há artistas, escritores ou cantores que procuram uma voz única ao longo da vida. E eu procuro sempre uma voz para cada projeto que tenho.” Daí rapidamente se juntar a esta ideia de conceber um musical, mesmo que não fosse propriamente um adepto do género.
Tendo em conta o timing dos 50 anos do 25 de Abril e o facto de ser um tema que já tinha estudado e abordado ostensivamente — nomeadamente para os romances Deus, Pátria, Família (2021) e Revolução (2023) — não foi difícil perceberem que faria sentido escolher a revolução portuguesa, o período de transição da ditadura para a democracia, como foco do espetáculo.
“A partir do momento em que avançámos, vi todos os musicais que encontrei e percebi que o género costuma ter um tema muito bem definido e normalmente apresenta uma história clássica. Escolhi um boy meets girl. Achei que era interessante, tendo em conta as músicas da Carolina e da Bárbara. Falei-lhes do 25 de Abril porque era um tema que eu conhecia profundamente.”
Além disso, seria o pano de fundo ideal para uma história de amor proibido. “Porque foi um tempo de enormes paixões, foi muito divisivo. Isso torna a história de um amor proibido muito interessante. Já não são necessariamente os Capuleto e os Montéquio [de Romeu e Julieta], mas em que é que tu acreditas? Qual é a tua tribo ideológica? É um tempo muito rocambolesco, com um dramatismo exacerbado, e muito violento, ao contrário do que as pessoas podem pensar.”
Hugo Gonçalves recorda “os atentados da extrema-direita”, “as bombas que explodiram”, “as pessoas esfaqueadas”, “os assaltos às sedes do PCP”, numa altura em que o país “estava em chamas”. “Esta ideia de um país a arder, completamente dividido, à beira da guerra civil, num tempo de muitas paixões, é ótimo para uma história de amor impossível, de duas pessoas que vêm de meios diferentes — que se querem mas, ao mesmo tempo, são muito diferentes e têm muitas coisas pelo caminho.”
Tinoco e Deslandes apreciaram de imediato a ideia e concordaram que fazia todo o sentido. “Uma revolução pacífica com flores? Parece que foi inventada para um musical, que foi escrita por alguém”, brinca Bárbara Tinoco, neta de um avô que foi soldado na guerra colonial, e que cresceu numa casa em que todos os anos “se chora” no 25 de Abril, ao “ouvir as canções”.
Um processo criativo diferente para todos
No dia em que nos encontramos com Carolina Deslandes e Bárbara Tinoco no Teatro Maria Matos, em outubro, acontecem as audições para escolher o elenco. As duas artistas, que começaram os seus percursos em concursos televisivos de talentos, sabem bem o que é estar do lado de lá, sujeitas a uma avaliação de um painel de jurados. “Sinto que estou um bocado no Glee”, brinca Deslandes. Já Bárbara Tinoco mostra-se nervosa com todo aquele processo, onde estão a ser control freaks. “Antes de começarmos, no primeiro dia, quase vomitei!”
Mais do que compositoras, ambas vão ser peças-chave deste espetáculo quando ele for apresentado ao vivo: vão partilhar o papel principal de Olívia e da sua irmã Clara. Irão trocar de personagem consoante as datas da peça. “Já que vamos ter esta experiência, fazia sentido termos o modo de desafio completamente ligado”, explica Carolina Deslandes. “São personagens com características completamente diferentes, a Olívia canta muito mais canções e tem muito mais momentos, e já que fizemos isto as duas fazia sentido ambas termos a oportunidade de uns dias cantarmos umas coisas e noutros dias cantarmos outras. Não sabemos se vamos voltar a fazer isto. Então a experiência para uma e para a outra iria ser muito discrepante, se tivéssemos papéis com dimensões diferentes. Então vamos trocando e vamos ter a experiência completa.”
Uma das características que ficou definida logo à partida é que não será um musical do princípio ao fim. As canções, tocadas por uma banda ao vivo serão intercaladas de forma “orgânica” com momentos “normais” de representação. “Queríamos que fosse muito natural e que a música se misturasse com aquilo que fizesse sentido na dramaturgia da história”, acrescenta Hugo Gonçalves. “Ou porque alguém está a ouvir na rádio, ou porque alguém tem uma guitarra e começa a tocar.”
A narrativa de A Madrugada Que Eu Esperava começa na ditadura, atravessa o 25 de Abril e o PREC, com alguns saltos temporais pelo meio. Explora, por exemplo, como é que os contextos familiares e sociais pré-definem a maneira de pensar de alguém. Olívia e Francisco vêm de contextos distintos, mas conhecem-se num grupo de teatro amador que está a produzir uma versão musical de Romeu e Julieta em 1971. Ela é uma adversária da ditadura, procurada pelas autoridades por vender livros banidos, o que a levará ao exílio em Paris, a capital francesa. Ele é filho de um agente da PIDE, sendo que o pai não aprova o seu interesse pela representação e, em particular, pela comédia. Como a grande maioria dos jovens da sua geração, Francisco ver-se-á obrigado a combater na guerra colonial. Os dois irão reencontrar-se em 1974, precisamente no dia da revolução.
À medida que ia escrevendo o guião, Hugo Gonçalves ia deixando sugestões de momentos que poderiam tornar-se musicais ou que poderiam intercalar canções, sempre num “processo colaborativo” com as compositoras. Em sentido contrário, Bárbara Tinoco e Carolina Deslandes iam enviando músicas para o dramaturgo.
“Houve um momento em que a Bárbara me enviou uma música e eu fiquei arrepiado”, recorda Hugo Gonçalves. “É uma música sobre o dia 25 de Abril, com que obviamente tenho uma ligação emocional. Tenho um sentimento de dívida tremendo e depois de fazer esta investigação sobre o período ainda mais. E quando vejo aquelas imagens emociono-me e não sou o único, há muitas pessoas que se emocionam, mesmo não tendo estado lá no dia. Tenho a certeza de que as pessoas que vão ver o musical também vão sentir isso.”
A importância da memória
Hugo Gonçalves sublinha que este não se trata de um espetáculo “didático nem ativista”. “Não escrevo para mudar o mundo. Escrevo para entendê-lo, se muito.” Ainda assim, acredita que “o direito da liberdade implica o dever da memória”, até porque a democracia estará sempre num estado “periclitante”. “A liberdade custa muito a ganhar, mas desaparece numa fração de segundo. E a verdade é que muitas pessoas mais novas hoje já não sabem o que é o 25 de Abril ou não sabem o que representou. E não digo isto enquanto velho do Restelo, acho que é normal.”
Por outro lado, importa “lembrar” a importância do 25 de Abril em tempos de “polarização”, até porque existe uma certa “ressonância” com o passado. “Julgo que em Portugal ainda não chegámos ao extremo do que aconteceu nos EUA e no Brasil, em que pais e filhos deixaram de se falar por questões políticas, mas acho que basta ter um telemóvel e ser utilizador de uma rede social para perceber como é que a notícia mais mundana pode gerar as maiores divisões… Na altura do 25 de Abril, se calhar as razões eram mais compreensíveis. Porque era um país que vinha de 50 anos de ditadura, que estava amordaçado, muito traumatizado e radicalizado por causa da guerra. Que tinha passado ao lado dos movimentos de libertação, dos direitos civis nos EUA, do maio de 68… Havia um desejo enorme de liberdade e de compensação, e isso levou a alguns exageros, e hoje as motivações são um pouco diferentes. Mas existem algumas ressonâncias.”
Para Carolina Deslandes, “nunca é de mais” falar no assunto, até porque considera que “a extrema-direita está a crescer a pique e tem havido várias manifestações disso”. “Acho que é um bom lembrete de que a liberdade foi conquistada a pulso no nosso país. Acho que é uma boa reflexão para o nosso ambiente familiar. Aqui entram dinâmicas de pais e filhos, dinâmicas amorosas e políticas.”
Bárbara Tinoco recorda o quão familiar poderá ser este musical para quem viveu aqueles tempos. “No palco vão estar personagens, mas poderiam ser reais. As pessoas vão-se lembrar da avó, do tio, do primo, porque estes problemas eram os que as pessoas tinham, era assim que as pessoas falavam. É uma memória coletiva para todos nós em Portugal.”