A canção que abre Transumante engana. É um jogo de palavras sobre as ironias da atualidade, uma quase-crítica social sobre uma maneira de viver mais feita de forma do que de conteúdo. Mas rapidamente percebemos que se trata de um aperitivo com sabor familiar. Tem a marca de Jorge Cruz — aquele ping pong de vocábulos que bailam uma espécie de malhão urbano — mas também deixa o aviso claro: este regresso mostra o mesmo músico, ainda que diferente.
Transumante é o retorno à música gravada após o fim da banda que liderou até 2019, os Diabo na Cruz (que em 2018 editaram Lebre). Uma mudança desenhava-se já, graças à intensidade do rock’n’roll que começava a gerar consequências. Mas um “golpe acústico” num ouvido gerou tinnitus, um doença que, na prática, deixa um ruído permanente no sistema auditivo e que tornou impossível a relação com a música, pelo menos durante algum tempo.
O processo pessoal que Jorge Cruz fez desde então foi o mesmo que gerou este álbum — eliminar “o que estava a mais”, o que impedia o caminho rumo ao objetivo. E este desígnio implicou uma simplicidade complexa. Na vida, a relação com um quotidiano até então desconhecido; na música, a vulnerabilidade que a dupla voz&guitarra implica. Tudo junto resultou em 10 canções: a primeira, Caminho de Casa, é o tal cartão de apresentação mais abstrato. As restantes 9 são uma revelação íntima como o compositor nunca tinha feito.
[o álbum “Transumante” de Jorge Cruz está disponível na íntegra no Youtube e no Spotify:]
Primeiro, a forma destas canções: é baseada naquilo que Jorge Cruz, de 49 anos, tem vindo a fazer, uma exploração da tradição portuguesa com uma linguagem de música indie, agora mais acústica e mais detalhada. As canções desenham paisagens, são cenários melódicos que invocam montes, vales, rios e riachos, caminhos por entre os campos, casas abandonadas, campos agrícolas, cafés isolados para descanso do pessoal, regaços campestres para namoros ocultos ou até cemitérios pintados de branco para descansos eternos.
Depois, o conteúdo, construído em volta da noção de tempo. São dez canções sobre o tempo que já foi e o que está por vir, o que desejamos e o que não volta mais, o tempo de um dia e o de uma vida, o tempo das conquistas e dos arrependimentos, o tempo de uma relação, de um filho, o tempo de uma jorna ao sol e de uma noite carpida pela despedida. Transumante é uma revelação de segredos e de caminhos. E pede que seja apresentado ao vivo, como vai acontecer em breve: na Casa da Música, no Porto, a 4 de abril; e no Teatro Maria Matos, em Lisboa, a 9 do mesmo mês.
Fomos ao encontro de Jorge Cruz na terra onde vive, perto de Coruche. Próximo da cidade grande na medida certa, para lá estar quando é preciso. Longe quanto importa para que tudo o resto funcione e se revele. Em entrevista, o músico fala-nos do momento presente que vive e daquilo que o distingue do passado recente; viaja ao tempo dos Diabo na Cruz, explica-nos o que aconteceu no fim e como um grito ao ouvido lhe mudou a vida; conta-nos mais sobre as canções que escreve, para ele e para os outros; e sobre a intimidade que revela no novo disco.
Depois de um longo período de ausência, quando regressa é com um disco surpresa. Fez dois concertos no ano passado, percebemos que alguma coisa estava a acontecer. Mas quando aparece o disco, é sem aviso. Porquê?
Principalmente porque não tinha vontade, nem me fazia muito sentido, fazer o processo habitual. Já o fiz uma série de vezes. Não tenho saudades dele.
Há alguma coisa desse processo “habitual” e desse período que hoje o incomoda?
Talvez. Sem dúvida que o meu movimento tem sido mais de procurar uma certa pureza no fazer. No compor, no que tenho para dizer, na essência do que tenho para fazer, do que sinto que tenho para fazer. Do caminho que tenho para percorrer. E tudo o que não está nessa linha representa um esforço. Mas sei que há uma parte que é necessária. Neste momento, por exemplo, sinto que o disco merece ser mostrado. Mostrado a quem possa gostar dele, principalmente. Não é tentar conquistar o mundo com um disco. Sei bem distinguir o que é uma coisa para o público todo e o que é uma coisa para um público mais específico. Mas mesmo esse público específico precisa de saber que este disco existe. Estou a sentir-me agora mais disponível para o mostrar. Se calhar mais do que há duas ou três semanas, quando ainda estava a a terminar detalhes. Mas só faço uma coisa de cada vez. Enquanto não tinha o disco terminado, não conseguia sequer falar com pessoas sobre isto. Não o mostrei a ninguém.
A ninguém?
Ninguém. E foi a primeira vez que não o fiz.
Além de o ter feito sozinho também.
Há uma fragilidade no fazer que, não sei… que é muito preciosa. Há coisas que ainda podem ser preciosas. E é difícil lidar com as opiniões dos outros quando eu próprio talvez fique influenciado. Mesmo entre amigos muito próximos que não têm nada a ver com o mundo da música, mas que me conhecem e que terão uma sensibilidade para o meu percurso e para o lado mais humano da questão. A tal pureza do fazer. Quando o mostrei foi com receio. E eu próprio ainda não estava certo do resultado final. Só comecei a perceber o que é que o disco era quando o terminei. Quando o levei ao Mário Barreiros para masterizar.
O que tinha imaginado não era o que estava a ouvir?
Nada. Tive que me habituar. Porque o resultado final é sempre outra coisa. É como diz o Tom Waits. Ele pode tentar imitar o Louis Armstrong ou o Captain Beefheart. Mas no fim, o que fica? Um disco do Tom Waits, pronto.
Mas nunca pior do que na imaginação.
Não, nunca. O [escritor Augusto] Abelaira dizia que cada um de nós dá a sua arrecadada. E depois é.nos devolvida. Ou seja, não podemos fazer outra coisa senão o nosso movimento.
E se é para mostrar o que fazemos a amigos, que vão ser totalmente parciais…
Não tem interesse nenhum. Houve uma altura em que eu recebia, geralmente, críticas muito más na imprensa, ali entre 1999, 2000 [nas bandas Super Ego e Pequeno Aquiles]. Tive essa fase até ser realmente eliminado das contas. E nessa altura o meu pai dizia-me que eu não devia ligar às críticas más. Da mesma maneira que não devia ligar às boas. Mas era difícil.
E o que é que fez nessa altura? Deixou de ler críticas?
Deixei. Deixei porque também deixaram de existir. Quando lancei o Sede (2005) e o Poeira (2007), discos que talvez tenham sido muito específicos, em que eu próprio ainda não sabia bem como é que podia fazer música, ninguém escrevia sobre o que eu fazia. Na verdade não era bem recebida. Passou a haver silêncio, depois de em 98, quando lançámos o Quem Concebeu o Mundo Não Lia Romances, ter havido um certo hype, no Blitz e etc. Talvez tenha sido falado por causa da escrita.
O que mudou?
Comecei a perceber que o que queria fazer era muito virado para a cultura portuguesa e comecei a confrontar a cultura existente com o facto de cantarem todos em inglês. Não arranjei muitos amigos.
Curioso que agora, e já desde há vários anos, essa não é uma questão.
Acho que foi preciso criar uma linguagem para os tempos. E isso foi sendo feito. Deu imenso trabalho. E várias pessoas que levaram isso muito a sério. Talvez eu tenha sido uma delas, o Tiago Pereira [A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria], o [B] Fachada, o Tiago Guillul. Pessoas de quem sou amigo e com quem colaborei. Esse movimento que há entre 2008, 2009, 2010, foi importante. Depois começaram a vir novas gerações.
Diabo na Cruz também participou nesse trabalho.
Sim, andar de um lado para o outro, tentar quebrar barreiras de preconceito com o que era a música pimba, o que é que era popular. Hoje vê-se a relação que existe com o kitsch. O que é erudito, o que não é. O que é que é moderno, o que é que não é. A minha relação com a música é sempre muito mais histórica do que instrumental. E havia muitos vazios e divórcios, principalmente a partir do PREC, um divórcio entre a música moderna portuguesa e a música popular portuguesa. E era esse vazio que, de certo modo, para mim não fazia sentido. Um bocado como para o Caetano, para quem a diferença entre a bossa nova e o tropicalismo não faz sentido, não é? Ele vê Jorge Ben, Roberto Carlos, João Gilberto e toda a gente como parte da mesma cultura. E tudo pode coexistir e trabalhar.
Esse trabalho está feito? Esta é outra fase? Está à procura de outra coisa ou não está objetivamente à procura de nada em específico?
Isso para mim não funciona, isso de não ter objetivos específicos. Mas digamos que a missão agregadora de trazer vivência ao público, uma vivência musical da sua própria raiz cultural, misturada com linguagens contemporâneas, um certo recuperar de autoestima e de interesse pela própria cultura, penso que isso está resolvido de uma boa forma e não me parece que volte aí. Os meus interesses agora são mais específicos.
Tais como?
São sempre de territórios que ainda não vejo percorridos, mas agora, neste disco, são mais interiores, são acerca do interior, dos vários interiores e do que vejo que não está dito ou musicado. Em determinada tour com Diabo na Cruz, andávamos a tocar todos os dias de um lado para o outro, não havia tempo para nada, mas uma vez parámos na Serra da Estrela, íamos tocar entre a Covilhã e Trás os Montes. Desci com o Fachada e fomos encontrar um riacho, sentámos-nos a fumar um cigarrinho e a conversar. Lembro-me de partilhar com ele, de dizer algo como “porque é que ainda não existe a música deste riacho?”. E essa relação entre a paisagem, a língua e a musicalidade, neste momento, é aquilo que me interessa. Quero que a textura do território passe para a língua e depois para a melodia, claro.
Investe muito mais no detalhe das letras do que na música?
É uma análise sobre a qual não tenho domínio. A música popular é relativamente simples, mas tem os seus mistérios. A escrita não é necessariamente assim. E isso interessa-me. As melodias sobrevivem precisamente por não serem incrivelmente complexa, cantamo-las e elas ficam aqui, connosco. É isso que gera sobrevivência. Têm uma perdura tal que há mesmo algumas que nos irritam. A letra, depende. Se o objetivo é a complexidade da língua, isso treina-se, há livros, dicionários, ganha-se vocabulário. Mas nunca foi isso que quis. Como diria o Hemingway, o que me preocupa é que a frase seja curta e que diga exatamente o que tem que dizer, que não haja artifícios. Não quero ser um brinca-na-areia, como se diz no futebol. Muita finta e pouco resultado. Quero que aquilo que estou a escrever diga uma determinada coisa e que aquilo que contribui enquanto ornamento tenha mensagem, que não seja barroquismo vazio. Porque essa também é uma solução possível.
Já foi mais assim, mais adepto desse brinca-na-areia e desse barroquismo?
Há algumas coisas no Roque Popular em que claramente aprendi, percebi que para mim aquele caminho não era suficiente, queria simplificar, queria ir direito ao tutano da coisa. Daí que haja uma depuração. De tal maneira que por vezes demoro tempo quando me pedem uma canção. Às vezes querem-na muito rápido, mas mesmo depois de terminar a letra, gosto de ter pelo menos uns 15 dias para a deixar maturar e olhar para ela tranquilo. Vou ouvindo e provavelmente mudo sempre alguma coisa.
Gosta desse lado tarefeiro, de escrever para outros?
Tornou-se um pouco uma profissão durante uma fase. Ultimamente, tenho andado à volta deste disco e vivo menos desse lado, mas houve uns anos em que foi até libertador face a um certo cansaço da exposição, de ter de sempre estar a lutar e a dar a cara pelas canções. Tem sido muito bom, até porque tenho trabalhado com intérpretes incríveis, Gisela João, Ana Moura, Ana Bacalhau, Cristina Branco, Marisa Liz…
Houve algum momento de viragem nesse trabalho de “compositor de serviço”?
Não diria ponto de viragem. Houve ali uma espécie de zeitgeist na altura do pico de Diabo na Cruz, com o terceiro álbum, quando saiu o Dia de Folga da Ana Moura. Foi também no pico de Diabo na Cruz, com o terceiro álbum, com o Meu Amor de Longe [Raquel Tavares], estavam umas quantas músicas minhas na berra. E o mercado é assim. Mas não gostei da sensação de estar na berra.
Porquê? Isso para um compositor não é bom?
Em princípio sim, mas acaba por implicar com o meu trabalho. Porque fica no ar uma espécie de resultado. Não é apenas expectativa, é eu ficar associado a uma gaveta, a um tipo de compositor e de canção e depois vêm ter comigo porque querem um tipo de composição muito específico, que segue determinados parâmetros.
E não é bom trabalhar segundo parâmetros definidos.
Depende. Uma vez pediram-me para fazer uma canção sobre amantes. Achei muita piada. Fiz uma chamada Boatos para a Cristina Branco, por exemplo. Tem piada, de repente ter um tema para trabalhar. Mas ninguém me diz como é que a canção vai ser ou qual é o tipo de canção ou que tem de ser um êxito.
Mas dizia que não lidou bem com a exposição. O que fez com esse desconforto? Começou a recusar pedidos?
É difícil para mim dizer que não, mas comecei a aprender.
Na vida em geral ou só nas canções?
Na vida em geral, sim. Mas para quem demorou tanto tempo para ter uma oportunidade, que teve tanto tempo em que não tinha espaço para mostrar a sua música, ter depois este tipo de oportunidade já com 30 e tal anos… o certo foi aprender a lidar com a situação. Mas não foi fácil. Aconteceu muita coisa ao mesmo tempo. Estava a correr o país de um lado para o outro. Estava em qualquer lado e era “o Cruz”, no meio da rua, no supermercado. Senti uma espécie de culpa de sobrevivente. Não estava confortável, mas, por outro lado, sabia que tinha de estar grato pelo que estava a acontecer. E sabia que aquilo vinha de milhares de horas de trabalho. Mas isso teve o seu preço em mim. E tive que encontrar o equilíbrio entre o reconhecimento e o que em mim é um espírito livre e artístico, que tem um bichinho que precisa de ser alimentado, é a coisa mais preciosa que tenho. E foi essa a prioridade a partir da certa altura.
E como é que cuidou dessa prioridade?
Começando a eliminar tudo aquilo que me afastava dela e começando a cultivá-la o mais possível. Procurando os interesses que me mantêm curioso, que me fazem avançar para novas realidades e eliminando aquelas que me parecem fazer estagnar, que só me fazem participar ou pertencer a coisas, fazer parte da mobília, coisas que são ruídos. A pressão estava nesse sentido, de ser repetitivo sobre mim mesmo. Tenho de fazer a minha própria viagem porque tenho um tempo limitado, como todos neste mundo. Tenho de criar o máximo que puder e sentir que estou a avançar no que estou a criar.
Durante essa tomada de consciência, e no fim de Diabo na Cruz, há uma questão de saúde que se torna urgente.
Já vinha de um grande desgaste físico e emocional, de um cansaço extremo. E quando acontece a situação do tinnitus de um dia para o outro… Foi um choque acústico, um miúdo que me gritou com um tubo no ouvido. Foi muito chocante para mim.
[Jorge Cruz pega no telemóvel para mostrar um som agudo contínuo, para tentar reproduzir aquilo que acontece num ouvido com tinnitus]
É sempre assim, mas muito alto. O que é muito complicado. Na hora de dormir… E a música alta passou a ser proibida, piora tudo. É preciso fazer meditação, acalmar aquele sintoma, baixar a energia e fazer com que os ouvidos fiquem menos curiosos. E como foi de um momento para o outro, foi altamente chocante. Vinha de uma série de meses e meses a trabalhar com Diabo na Cruz, umas 14 horas por dia.
Foi o gatilho decisivo para uma mudança?
Foi um pouco, fiquei altamente confuso sem saber o que havia de fazer. Depois não quis que ninguém soubesse porque percebi que havia quem se tivesse curado e queria-me curar. E queria privacidade para me curar. Depois acabei por não conseguir, nunca cheguei a acalmar realmente como precisava. Ainda fiz os concertos dos Coliseus já nesse estado, ainda promovi o Lebre, o que foi um esforço enorme. Depois não conseguir continuar mais. Isto acontece a 14 de agosto de 2018, o álbum saiu a 6 de outubro, portanto já estava há um mês e tal… Já tínhamos os Coliseus marcados, toda a máquina que tinha à minha volta estava a fazer o melhor que podia. Mas não aguentei mais.
E aí parou e tomou a decisão de sair da banda?
Eu não tomei a decisão de sair da banda. A banda acabou, mas não quis que os meus colegas fossem privados da expectativa que tinham de fazer uma tour e de receberem o seu dinheiro, etc. Portanto, permiti que eles fizessem a tour e acabaria a banda no fim. Foi doloroso não poder despedir-me do meu público e daquilo que tinha sido feito da forma que eu gostaria. Ter de ser assim custou-me muito. Foi difícil atravessar e foi novo. Não fazia a mínima ideia de como viver esse processo e das repercussões que isso teria em mim. Todas as bandas acabam, mas poucos tomam atitudes pessoais sobre isso. Eu tive necessidade de escrever um texto. Era um projeto de vida que tinha e eu precisei de falar sobre isso. Foi a minha forma de fazer a minha despedida e de iniciar o meu luto. Mas foi difícil não poder vivê-lo com os outros. Dei prioridade à necessidade de outras pessoas. Não me arrependo porque acho que não quis prejudicar ninguém e isso é importante para mim.
Como foi esse processo de luto? Sozinho? Com que ferramentas?
Fiquei muito tempo sem conseguir fazer nada com música. Bastante tempo. Desapaixonei-me. Fiquei triste com a música. Não tinha vontade de ouvir. Os meus ouvidos não tinham vontade de ouvir nada. E também foi uma fase em que se calhar precisava simplesmente de não estar a fazer nada de especial. Pediam-me músicas, ainda, mas não estava constantemente a lidar com música. Passei a ter uma vida diferente, a dar espaço para outras áreas da minha vida, a família… E no processo de pegar na viola e compor para outras pessoas, que era uma coisa que não tinha agressividade nenhuma para os meus ouvidos, comecei a ter algo que nunca tinha tido, que foi um novo interesse instrumental.
Nunca tinha tido?
Não componho com instrumentos, componho sempre na cabeça. Um bocado como o Zeca ou o Variações. E depois vou sacar na viola o que imaginei. Também porque isso me deixa mais próximo da tradição oral que me interessa. Precisamente por isso, nunca tinha pensado em inserir a viola com tanto protagonismo. Sempre achei que não fazia nada de especial na viola, nada que valesse a pena ser ouvido, sequer por mim.
O que mudou?
Comecei a pensar “porque é que não aprendo a fazer umas coisas novas na viola, coisas que me interessem?”. E meti-me nisso de repente. Comecei a comprar instrumentos novos e começou o caminho que veio dar aqui, ao Transumante. Já tinha um disco a solo mais ou menos pronto, um conceito novo em que estava a trabalhar ainda antes do Lebre de Diabo na Cruz. Mas com esta questão dos ouvidos… Aquilo era uma coisa mais plástica, com beats, máquinas. Era diferente, uma maneira nova para mim, muito interior também. Está toda maquetada em GarageBand. Quando mais à frente comecei a ficar com vontade de pegar em coisas novas, minhas, já não parecia ser o tempo daquilo.
E começou a compor com outra perspetiva.
Comecei esta viagem na viola, uma coisa mais folk, com novas afinações, fui comprar umas violas diferentes para sacar sons, ver o que é que queria fazer, e comecei a compor. No meio de muitas ideias, apercebi-me que havia 10 que precisavam de sair primeiro. Afinal, fiz um disco sobre mim próprio, que era a última coisa que queria.
Mas não é esse um dos processos naturais de uma manifestação artística, partir da experiência íntima?
Talvez, mas não me estava a apetecer lidar com isso. Estava interessado em contar histórias. E aqui tenho um lado que me parece muito pessoal e não sei se alguma vez o tinha feito desta forma tão descarada.
E que fica ainda mais descarada quando cantar as canções ao vivo, sozinho.
Há uma parte que pode ser, mas é a minha tarefa. Era tudo para ser gravado só com viola e voz. Os arranjos foram toda uma surpresa até para mim. Comecei a gravar, juntei uma coisa, juntei outra, de repente estava metido neste mundo novo. E percebi que ia ter de lidar com o que tinha para dizer agora, algo que fosse explicativo sobre o sítio onde estava. Não é outra pessoa, não é uma quebra. Tenho um diálogo com as pessoas que me ouvem e isto é uma continuação. Talvez precise de uma reapresentação. E nesse sentido, talvez seja um pouco egoísta.
Não é preciso ser um pouco egoísta quando se faz a própria arte?
Talvez, mas há um lado… Por exemplo, há uma coisa que adoro no Jorge Palma, a generosidade dele. A generosidade que as canções têm. Aquilo serve-me a mim também.
Mas tem alguma ideia sobre a forma como as pessoas o ouvem, a imagem que têm de si?
Acho que as pessoas que me acompanham ou que acompanhavam o grupo provavelmente estão divididas. Umas fazem julgamentos, outras mantêm o apoio. Recebi, se calhar, um pouco de ambas as coisas neste processo. No início recebi, se calhar, desconfiança por ser o responsável pelo fim do grupo. Não faço ideia. Hoje não. Mas também recebi muito apoio e consideração dos meus colegas. Interessa-me isso, interessa-me que outras pessoas que procuram criar também se identifiquem. Que encontrem no que faço qualquer coisa que também que lhes seja fresco e único. Mas, em última instância, são coisas que não posso controlar. A única coisa que posso controlar é o quão investido, entregue e realizado estou com o meu processo.
Fazer um disco sozinho, foi bom como esperava ou chegou a ser desesperante?
Talvez tenha sido desesperante, por vezes. Acho que é o próprio Lobo Antunes que diz que escrever livros é horrível, não é? Um gajo compõe, escreve, depois grava sozinho, depois até mistura, faz aquilo tudo até ao fim. Foi a primeira vez que fiz o percurso todo assim. É uma espécie de complexo de Deus, posso inventar um universo todo sozinho. Mas também é meio desesperante, eventualmente… Sou picuinhas com a alma da coisa, com a narrativa, o ambiente, a atmosfera a história. E tudo o que me distraia está a dar-me cabo do juízo.
Não foi um processo organizado? Não é disciplinado?
Não sou nada desorganizado. Pelo contrário, trabalhei de mais. Só trabalhava. Não vi os meus amigos, mergulhei naquilo. Não foi uma questão de escolha. Isto é uma vida, é o preço a pagar.
No meio de tudo isto, teve saudades de ter uma banda?
No meio disto tudo, no meio destes dias da gravação, de fazer o disco, agora a pensar em concertos… Não, sem ofensa nenhuma aos meus antigos colegas, pelos quais tenho o maior respeito e a quem desejo tudo o que é bom, não tenho saudades nenhumas de ter uma banda. Tem muitas coisas boas. A camaradagem, a partilha de momentos intensos e fortes. Sinto é que é algo que já fiz e que fiz bem. E repetir-me não é a minha intenção. Além disso, os meus ouvidos…
Teria sido impossível?
Tive receio de voltar às coisas todas do tempo de estúdio. Ter algum controlo sobre o ritmo, o tempo, o volume, tudo isso ajudou-me a ir avançando. A ideia de estar com um percussionista numa sala a tocar não me atrai. Não tenho estado nesse tipo de ambientes. O volume alto é uma coisa que não me é confortável ainda.
No ano passado voltou aos palcos, deu dois concertos. Como foi regressar? Isto porque em breve terá mais espectáculos…
Foi uma pilha de nervos, mas ao mesmo tempo foi bonito, foi muito bonito. Mas senti-me muito vulnerável, eu com uma viola, uma série de canções que as pessoas não conheciam, toquei muitas deste álbum e recriei outras coisas. Tentei apresentar todas as minhas fases, por estarem ligadas nesta estética simples de viola. Queria fazer uma coisa que pudesse tocar na casa de alguém. Quase toda a gente tem uma viola de cordas de nylon. Porque não fazer concertos nesse formato? Se juntar as canções de Barra 90 com as de Diabo na Cruz, as que a Gisela João canta com as deste disco, parecem todas de países diferentes, mas quando as toco à viola, se calhar cabem todas no mesmo sítio. Enfim, isto já é conversa de nerd musical.
Diria que ouve todo o tipo de música, ainda que esteja concentrado em cultivar uma linguagem em particular?
Claro. Sou fã de música pop. E consigo trabalhar nessa área com gosto. Interessa-me. Gosto de refrões, ouço com o meu filho, tenho playlists organizadas das formas mais específicas.
Como a personagem do Alta Fidelidade, que organizava os discos de forma autobiográfica…
Sou esse gajo. Sou pior do que esse gajo, muito pior. Mas senti que me faltava a época do meu filho, que é adolescente. E então comecei uma playlist com hits desde 2009. Bad Bunny, The Weeknd, Bruno Mars, Taylor Swift… Mas só as que eu gostei mais. E o que sinto é que é exatamente igual. A pop de agora é exatamente igual à dos anos 80 quando eu tinha a idade dele. Não sou tão fã da pop dos anos 90, aí já ouvi mais música alternativa e rock. Mas a qualidade, o hook, a cena entusiasmante e excitante que a música pop dava e continua a dar, é igual. Hoje acontece a mesma coisa.
Mas isto tudo enquanto ouvinte ou compositor para outras vozes. Não como intérprete.
Isso, tal e qual. Há pessoas certas para cantar esse tipo de canções. Essa pessoa não sou eu.