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© Maria Gralheiro

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O segundo SuperNanny visto à lupa por três especialistas. "Aquele happy ending é uma mentira"

O Observador pediu a três especialistas que assistissem ao segundo episódio. Há críticas à exposição dos menores, à falta de profundidade da intervenção e até às técnicas utilizadas.

Um aviso em fundo negro e letras brancas começa por dizer que “a privacidade dos intervenientes” foi “respeitada” e que as imagens foram exibidas “com a sua concordância”. O trabalho “da educadora” usa técnicas e instrumentos “pedo-pedagógicos”, mas não substitui o acompanhamento de “profissionais de saúde”.

A SIC optou por iniciar assim o segundo episódio do programa SuperNanny, que foi exibido este domingo, respondendo aos avisos e recomendações por parte de entidades como a Comissão Nacional de Proteção de Direitos das Crianças e Jovens (CNPDCJ), a Unicef e o Instituto de Apoio à Criança, que apontaram violações dos direitos da criança como o direito à “imagem”, “reserva da vida privada” e “intimidade” dos menores envolvidos. Esta segunda-feira, a Ordem dos Advogados juntou-se ao coro de críticas, falando numa exposição mediática “inadmissível” das crianças.

Depois do aviso em fundo negro surgem, como aperitivo, imagens a antecipar o que será exibido neste episódio. Uma criança a chorar, deitada no chão da casa-de-banho, descontrolada, tenta pontapear a mãe. Dois irmãos batem um no outro. Uma mãe grita com a filha, que responde insultando-a. Depois, é-nos dada a conhecer a nova família que pediu ajuda à SuperNanny: dois pais que trabalham a tempo inteiro e dois filhos, uma de 13 anos e um de cinco.

© Divulgação

O Observador pediu a três profissionais da área da psicologia e da terapia familiar que assistissem a este episódio e partilhassem as suas observações sobre as estratégias ali aplicadas e a relevância (ou falta dela) do formato. Alguns revelaram não ter assistido ao episódio por opção, como forma de “boicote” a um formato que consideram negativo. Outros preferiram não comentar para não “alimentar a polémica”.

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Entre aqueles que aceitaram partilhar as suas opiniões, um consenso instalou-se: o programa poderia ser positivo, mas o facto de incluir crianças reais e expor os seus nomes, rostos e rotinas na intimidade é um grande problema. “O formato em si poderia ser positivo se a identidade das crianças fosse protegida”, resume a psicóloga clínica Raquel Martins Ferreira ao Observador.

Não é o caso. E, mesmo nessa situação, seria necessário reforçar que não há uma solução mágica que resulte com toda a gente: “Não há uma intervenção padrão. Não podemos impingir as mesmas estratégias a todas as famílias”, explica Isabel Abreu Lima, especialista em psicologia educacional e professora na Universidade do Porto. As respostas clínicas dadas nestas situações, sublinham os especialistas ouvidos pelo Observador, são dadas em consultório, respeitando a confidencialidade e intimidade dos intervenientes. E vão muito além das estratégias apresentadas no último episódio, como colocar uma criança descompensada, a fazer uma birra, num “cantinho da pausa” ou estimular a comunicação entre mãe e filha através de uma carta.

Nanny “não está ali como psicóloga”, mas usa estratégias da psicologia

Para os profissionais ouvidos pelo Observador, a polémica começa logo pelo facto de não ser claro se Teresa Paula Marques, a SuperNanny, formada em Psicologia, está ali na qualidade de psicóloga ou não. Em caso afirmativo, diz Raquel Martins Ferreira, levantam-se “questões éticas”. Teresa Paula Marques sublinhou ao Observador não estar no programa como psicóloga e o aviso emitido pela SIC define-a como “educadora”, apesar de inicialmente ter sido apresentada como psicóloga nas promoções do programa; mas Martins Ferreira não tem dúvidas em classificar as soluções apresentadas pela Nanny no programa como “estratégias da psicologia e da terapia familiar”.

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João Lázaro, psicólogo clínico com 27 anos de experiência, cuja clínica inclui consultas especializadas para crianças e adolescentes, é ainda mais taxativo: “Ela será licenciada em psicologia, psicóloga não é”, resume, tendo em conta a violação de princípios éticos a que diz ter assistido. “Os papéis não se podem confundir”, diz, referindo-se às justificações apresentadas pela própria, que classifica de “desculpas de mau pagador”. “Aquele aviso inicial que a SIC apresenta no programa ilustra bem as questões da legalidade e da moralidade. As pessoas podem dizer ‘isto é legal’, mas o programa também se inscreve numa dimensão de imoralidade”, resume o clínico.

As críticas à postura de Teresa Paula Marques vão ainda mais longe. “Se ela está lá como psicóloga, há uma data de coisas que estão a falhar, como a empatia. Eu não posso fazer aquele olhar reprovador, é um juízo de valor que não pode ser feito por uma psicóloga”, atira Raquel Martins Ferreira. Já a especialista em educação Isabel Abreu Lima reforça essa mesma crítica, sublinhando a posição de “paternalismo total” da “Supernanny”, presente sobretudo no diagnóstico que Teresa Paula Marques faz aos dois pais da família em questão, depois de assistir a alguns serões em casa da família: “Ela faz acusações como ‘não há respeito’, usa um tom acusatório… Até o tipo de vocabulário que ela usa, como dizer que algo é ‘inadmissível’, não é correto.”

“Se ela está lá como psicóloga, há uma data de coisas que estão a falhar, como a empatia. Eu não posso fazer aquele olhar reprovador, é um juízo de valor que não pode ser feito por uma psicóloga.”
Raquel Martins Ferreira, psicóloga clínica

Os profissionais destacam ainda outro tipo de violações daquilo que deve ser uma intervenção terapêutica correta. “Uma criança que tenha estes comportamentos desafiantes acentua a birra em frente a estranhos. Não sei até que ponto isto não a intensifica, com os operadores de câmara ali, aquela gente toda à volta…”, destaca Raquel Martins Ferreira. João Lázaro, por seu lado, sublinha a confidencialidade como sendo “a base” no tratamento das questões mentais e de comportamento, que expõem “o íntimo das pessoas e não uma simples dor de estômago”. “Eu costumo dizer aos meus pacientes que estou disponível 365 dias por ano para os ouvir, mas se não me quiserem cumprimentar na rua, eu compreendo perfeitamente”, resume.

“Só vemos uma parte daqueles miúdos, que parecem uns demónios”

Neste segundo episódio, o filho mais novo da família, de apenas cinco anos, é apresentado como uma criança problemática que protagoniza birras violentas, insultando a mãe, puxando-lhe os cabelos e chegando a tentar pontapeá-la. Numa das cenas exibidas no episódio, a criança aparece a tomar banho a contragosto — deitado no chão da casa-de-banho por se recusar levantar e depois na banheira em pé, coberto apenas por uma toalha na cabeça.

Os espectadores assistem à criança a espernear enquanto lhe é vestido o pijama do Batman, a recusar-se a comer a sopa de legumes que tem à frente e a escorregar da cadeira, bem como a arrastar-se pelo chão de uma das divisões da casa, recusando-se a ir para o “cantinho da pausa”, uma das estratégias apresentadas pela SuperNanny para lidar com a sua birra. Isabel Abreu Lima aponta igualmente críticas à forma como essa solução é apresentada: “É uma estratégia totalmente errada. Ou é uma pausa ou é um tempo sozinho e ela faz um híbrido dos dois”, diz, destacando que o objetivo deve ser não um “castigo”, mas sim que a criança “aprenda a auto acalmar-se”. “Muitos daqueles comportamentos foram quase punitivos, e esses só são aplicados em situações mais graves.”

A especialista — que também não viu com bons olhos a distribuição de tarefas domésticas pelos filhos, falando numa situação “artificial” e “imposta” pela Nanny — critica ainda a obrigação de a criança pedir desculpa e dar um beijinho à mãe depois de ter estado cinco minutos no “cantinho”. “A criança teve aquele descontrolo mas não é porque é má ou diabólica, é porque não sabe como se comportar”, explica, acrescentando que “muitas vezes estas crianças não sabem o que se espera delas.” A alternativa, diz Abreu Lima, que se foca na parentalidade positiva, deveria ser ir buscar a criança calmamente e reintroduzi-la na rotina normal. “Se possível, pô-la a fazer outra coisa que possa ser positiva.”

“A criança teve aquele descontrolo mas não é porque é má ou diabólica, é porque não sabe como se comportar.”
Isabel Abreu Lima, especialista em psicologia educacional

João Lázaro prefere não comentar as técnicas aplicadas, por se inserirem na área “cognitivo-comportamentalista”, que não é a sua especialidade. Mas critica outro tipo de estratégias por parte da produção do programa, que classifica de desonestas, “como a mãe aparecer com um ar descuidado e no fim já terem tido o cuidado de a maquilhar e pentear.” “Como se o programa tivesse resolvido todos os problemas”, resume.

“Os casos clínicos não se observam numa relação causa-efeito. É preciso perceber como os pais se veem como pais, quais as memórias que têm da sua educação…”, acrescenta Lázaro, que desaprova ainda a ideia apresentada da mãe das crianças como “a general” e o pai como “simpático e bonacheirão”, para ilustrar uma dinâmica de “polícia bom e polícia mau”. “Como é que estes pais vão ser vistos publicamente depois? Aquele happy ending é uma mentira”, considera o profissional.

Também Martins Ferreira e Abreu Lima sublinharam a falta de “etapas prévias”, como a intervenção com os pais, e o foco excessivo nas crianças. Para a docente da Universidade do Porto, o programa acaba por se revelar paradoxal, porque expõe os menores mas apresenta-os de forma unidimensional: “Nós só vemos a parte negativa daqueles miúdos, que parecem uns demónios”, diz, criticando o “sensacionalismo do programa” que se foca apenas nos comportamentos inadequados. “O comportamento daquelas crianças não é só birras — há outras coisas que ali são omissas” e com as quais os profissionais de saúde também trabalham.

Efeitos nas famílias só serão visíveis a longo prazo

Se o filho mais novo é apresentado neste episódio como sendo uma fonte constante de birras, a filha mais velha, de 13 anos, também tem a sua quota de maus momentos. As discussões com a mãe são várias vezes referidas, mas apenas ilustradas duas vezes: quando a adolescente chama ‘parvalhona’ à mãe que grita com ela e quando se esconde na despensa recusando-se a aspirar a sala. Com ela, a Nanny não recorreu a estratégias como o tempo de pausa, mas apresentou várias soluções para melhorar a comunicação com a família: tirar fotos aos pais e ao irmão e escrever uma carta para a mãe que foi depois lida num momento a sós das duas, mas onde as câmaras estiveram presentes.

A SuperNanny, Teresa Paula Marques

© SIC

Raquel Martins Ferreira, que acompanha vários pré-adolescentes e adolescentes no seu consultório, considera que a exposição desta menor pode, até certo ponto, ser mais problemática, já que ela “tem muito mais consciência” do que o irmão. Isabel Abreu Lima critica o “exibicionismo” da cena (“parecia que estávamos no ‘Perdoa-me’”, diz) e o facto de a conversa não ter partido da mãe, mas ter sim sido imposta por Teresa Paula Marques. Já João Lázaro sublinha que aquele momento faz sentido, mas nunca exposto em público: “Eu não digo à minha mulher e aos meus filhos que os amo à frente de milhões de pessoas. O que vincula a relação de uma família é a porta da nossa casa”, resume.

Martins Ferreira considera que os efeitos podem ser ainda mais perniciosos por se ter aberto uma caixa de Pandora na relação entre a adolescente e a sua família que pode ser positiva, mas que necessita de acompanhamento. “Ela diz repetidamente à mãe que precisa de atenção e isso pode ser muito positivo em contexto terapêutico”, aponta a profissional, destacando que a tensão entre mãe e filha revelou ser fruto “de uma saturação que ela revela do irmão e de partilhar o quarto com ele”. “Mas neste contexto não sei até que ponto isto não pode levar a uma culpabilização dos pais e do irmão, porque a puseram numa situação de vulnerabilidade em público.” “Quando a SuperNanny introduz estratégias como a da carta e não lhes dá seguimento, fica a faltar estrutura. A família fica desamparada”, critica.

“Eu não digo à minha mulher e aos meus filhos que os amo à frente de milhões de pessoas. O que vincula a relação de uma família é a porta da nossa casa.”
João Lázaro, psicólogo

Para além de todas estas apreciações, os especialistas ouvidos pelo Observador concordam em absoluto que o formato do programa é particularmente preocupante pela exposição em público de dimensões da vida íntima de menores de idade — e acreditam que podem ter consequências nefastas a longo prazo. João Lázaro, que classifica o programa como “um Big Brother da família” e uma experiência “tenebrosa”, teme as consequências para estas crianças na escola e na própria relação com a família, com os filhos a poderem acusar os pais no futuro de terem exposto a sua “incompetência na televisão”: “Como é que esta adolescente vai encarar os seus pares agora que a viram no seu robezinho às bolinhas cor de rosa, no seu quarto? Isto é uma violência muito grande”, diz. “Vai ficar marcado. Vai acompanhá-los o resto da vida. O bullying não é só quando se bate ou quando se goza. Só daqui a muitos anos vamos ver os efeitos disto.”

Isabel Abreu Lima sublinha que estamos perante “a devassa” da intimidade de uma criança que tem vizinhos, amigos e que ali é identificada às claras. “Nunca faria aquilo com um filho meu, mas reconheço que alguns pais se identificam, pensam ‘não sou a única a sentir isto’, e a TV podia cumprir um papel muito importante ensinando aos pais o que podem fazer”, volta a sublinhar, dando como exemplo o problema apresentado neste episódio de apenas um dos pais ter o papel disciplinador. “Mas expor as crianças na sua própria cama, a tomarem banho… É inadmissível. Até custa ver.”

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