No “Bairro do Sol Nascente” — assim identificado com uma placa pregada num dos contentores que servem de casa a quem trabalha naquela exploração agrícola — quase não pára ninguém. Os trabalhadores apressam-se a ir buscar aos quartos os documentos de identificação que têm de apresentar às autoridades, que para ali afluíram numa ação de fiscalização. E o caminho até ao escritório, onde são esperados, ainda lhes demora alguns minutos, talvez cinco, a pé.
São, na sua esmagadora maioria, estrangeiros: vêm do Nepal, da Índia, do Paquistão, da Tailândia. Em português, não sabem muito mais do que dizer “olá” e mesmo o inglês custa a sair. As conversas com o Observador, apressadas, tornam-se, por isso, difíceis. Alguns gestos universais ajudam — “Do you like this?”, perguntamos, com o polegar levantado, a um trabalhador. Do outro lado, o mesmo gesto: “I like, good”. Números escritos numa folha também — como quando procurámos saber o horário de trabalho (7.30 — 4.30, escreveu, explicando depois, com dificuldade, que tem direito a apenas um dia de folga, e a 22 de férias) e as condições salariais. “Salary good?”. “Good.” “How much?”. Num caderno que lhe emprestámos escreve:
600
700
800
para explicar que, quando trabalha mais, recebe mais.
Naquele “bairro” de contentores, numa exploração na freguesia de São Teotónio, em Odemira, os sapatos e as galochas do trabalho ficam à porta de “casa”, há roupas no estendal, os gatos vadios aproveitam os bancos ao sol ou as caixas de cartão esquecidas para se aninharem, protegidos do movimento. Cada contentor — semelhante aos que são instalados nas escolas para albergar os alunos durante obras nos edifícios — tem, no exterior, uma mesa de tipo piquenique e há uma área de refeições comum. A partir do “Sol Nascente” – um nome demasiado poético para o cenário – veem-se as extensas estufas de amoras, framboesas e mirtilos onde os trabalhadores passam grande parte do dia. Mas há outras, mais pequenas, de uso pessoal, com couves, ervas aromáticas e até malaguetas, distribuídas entre as filas de contentores.
São, no entanto, os inúmeros garrafões e garrafas de água colocados junto às portas dos alojamentos que chamam particular atenção. Têm uma explicação: “Nesta situação, a água potável [canalizada], por uma questão técnica, não estava acessível nas casas. Explicaram-nos que a bomba de água não funcionava e estava a ser reparada. Mas, de facto, tem de ser corrigido rapidamente e nós faremos questão de monitorizar”. Quem o diz é Nelson Ferreira, subinspetor-geral da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) que, em conjunto com outras entidades, organizou uma ação de fiscalização àquela propriedade de uma empresa britânica, na manhã da sexta-feira passada.
Para dar resposta ao problema, “havia uma situação de contingência que estava a ser utilizada” — o recurso aos tais garrafões. Já os banhos eram tomados com água que, apesar de “tratada para uso doméstico”, não era própria para beber. A empresa foi apenas notificada para corrigir a situação. Segundo a ACT, além desse problema, foram identificados outros “menores”, como redes mosquiteiras que precisam de arranjo.
Nelson Ferreira nota que as condições de habitação que ali encontraram “são melhores do que muitas outras que já vimos“. Desde logo pelo número de trabalhadores por contentor, que varia, mas não preocupa a ACT. Num deles, vivem oito pessoas, duas por quarto, e há só uma casa de banho. Em cada quarto, cabe pouco mais do que um par de pessoas de pé. Dois colchões tocam-se no chão, ao lado de uma estante que serve de despensa, com comida, snacks, café, detergente para a roupa, papel higiénico, e há loiça por lavar no chão. Mas também um aquecedor a óleo e uma ventoinha, para os dias quentes da época alta da apanha que se avizinha.
Segundo dados do Governo enviados à Lusa, existem 229 unidades amovíveis de alojamento (contentores) na área do Aproveitamento Hidroagrícola do Mira (AHM), que abrange Odemira, e “todas elas cumprem com as condições de higiene e saúde obrigatórias”, sendo que “cada unidade pode ter até cinco trabalhadores”. Não é, porém, isso que se passa no contentor visitado pelo Observador.
Oito pessoas por casa, com a partilha de uma única casa de banho, é um número aceitável para a ACT e para a autoridade de saúde, tendo em conta os níveis de contágio no concelho? “Depende do tamanho das casas e do número de quartos. Temos aqui casas para alojamento que têm dois quartos e, normalmente, estão duas pessoas por cada quarto, o que é aceitável”, refere o subinspetor. Nelson Ferreira considera, porém, que há uma “área cinzenta legal” que não define regras sobre quantas pessoas podem viver numa mesma casa, o que suscita excessos como os que têm sido noticiados nas últimas semanas, de alojamentos sobrelotados, fora das explorações.
Trabalhadores organizaram protesto contra excesso de trabalho
Foram chegando a conta gotas ao protesto pacífico junto do edifício onde funciona o escritório daquela exploração agrícola, a cerca de 500 metros dos bairros de contentores. Uns vêm a pé, outros de bicicleta. Alguns vindos das estufas, plantadas ao longo de vários quilómetros, no enorme terreno da propriedade; os restantes, dos contentores a que chamam casa. Todos de cara tapada, apenas com finos lenços de pano que, em muitos casos, dão a volta à cabeça, deixando apenas os olhos a descoberto.
Passa pouco das 09h30 e, para a maioria, o trabalho nas estufas já começou há duas horas. Mas parou naquele momento, para todos, durante um protesto síncrono organizado por um grupo de trabalhadores imigrantes que se uniram e apresentaram uma queixa à ACT. Mesmo em frente ao escritório, dentro da propriedade agrícola, são dezenas que se vão juntando aos poucos. Imóveis, de pé, alguns gravam com o telemóvel o protesto silencioso. O objetivo é parar a produção em pleno pico da campanha dos frutos vermelhos e, no caderno de encargos, há reivindicações precisas à empresa agrícola.
“Este é um caso muito particular“, diz Nelson Ferreira. A paragem começou pouco antes de as autoridades ali chegarem, mas foi organizada de forma a coincidir com a visita. Se alguns trabalhadores (os que fizeram a queixa) sabiam que a fiscalização ia acontecer — muitos, aliás, já traziam consigo os documentos de identificação —, a empresa foi, como seria de esperar neste tipo de ação, apanhada de surpresa.
“Havia uma denúncia por parte de vários trabalhadores de condições de trabalho que não eram as mais corretas“, explica Nelson Ferreira. Na queixa apresentada constavam “problemas de horário de trabalho, acesso a água, a pausas, a organização do trabalho“. Para investigar essas denúncias e fiscalizar os espaços, a ação envolveu duas dezenas de pessoas de entidades públicas: quatro da Segurança Social, três da GNR, dois do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), três do alto comissariado para as migrações, sete da ACT, uma delegada de saúde. E demorou mais de cinco horas. Cinco horas para fiscalizar desde os certificados de testes à Covid-19, às condições de habitação e aos documentos de cada um dos 260 trabalhadores.
Inspeções como esta têm sido mais comuns nos últimos dias. Na semana passada, a ACT inspecionou 30 empresas em Odemira, com 450 trabalhadores no total, e instaurou mais de 150 processos de contraordenações. Este tipo de fiscalização só foi, no entanto, intensificada no final de abril, uma decisão que a autoridade justifica com o “aumento exponencial” do risco de contágio na atividade laboral. “A partir de abril, intensificámos a nossa presença para ter a certeza de que o uso de máscara, de equipamentos de proteção individual, estava a ser corretamente cumprido por parte das entidades empregadoras”, vinca Nelson Ferreira.
Mas os avisos e os alertas sobre o contágio nas comunidades agrícolas já vêm de trás. E muito. Por exemplo, em abril do ano passado, a revista Sábado escrevia que a identificação do primeiro caso de Covid-19 numa exploração agrícola estava a causar o pânico na comunidade. Já então, o presidente da Câmara de Odemira, José Alberto Guerreiro, alertava para a “bomba relógio em acelerada contagem decrescente”. “Temos no concelho de Odemira perto de 10 mil trabalhadores agrícolas, muitos deles a viverem amontoados em habitações precárias e sem as mínimas condições de higiene“, disse, na altura.
Nelson Ferreira nota que a ACT não tem competência para fiscalizar dentro das habitações privadas — só quando estas se localizam nas explorações agrícolas. É o que acontece naquela quinta plantada junto ao mar. Disponibiliza “casa” — ou melhor: contentores — a cerca de 60 trabalhadores.
Estes contentores são diferentes daqueles que o Governo aprovou em 2019, em Conselho de Ministros, mas que ainda não viram a luz do dia. Numa resolução desse ano, o Executivo abriu a porta à colocação de “instalações de alojamento temporário amovíveis” (IATA) na área de Aproveitamento Hidroagrícola do Mira para “acolher trabalhadores agrícolas temporários”. A decisão ganhou outra importância recentemente perante o avolumar de denúncias (nem todas elas novas) de insalubridade nas habitações de migrantes.
O ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, prefere ver o copo meio cheio e considera que esses contentores pré-fabricados terão “muito melhores condições do que as que existem nas casas de alvenaria sobreocupadas e sem condições”. O que “aconteceu de mal” foi que “as tão criticadas IATA não foram construídas”. Foi isso, argumenta, que atirou muitos trabalhadores para casas sobrelotadas. Já Catarina Martins, coordenadora do Bloco de Esquerda, prefere classificar as ‘aldeias’ de amovíveis como “guetos de contentores”.
Como a cerca sanitária agravou o recurso a horas extraordinárias
Na ação de fiscalização daquela exploração agrícola em São Teotónio, os contentores foram inspecionados pela ACT e pela autoridade de saúde, com a presença de um representante da empresa britânica. Os documentos de identificação de cada um dos 260 trabalhadores — poucos pertencem aos quadros, a maioria tem contrato com empresas de trabalho temporário — foram passados a pente fino pelo SEF. Já a Segurança Social preocupou-se em “prestar apoio não só aos trabalhadores, mas também às empresas, sobre os apoios disponíveis”, e entregou papéis informativos com os direitos “que às vezes nem sabem que têm”, em inglês. Só que a língua não é falada por muitos e, para esses casos, há tradutores do alto comissariado.
As regras em vigor ditam que um trabalhador que comece o contrato tem de ser testado à Covid-19, mas as entidades fiscalizadoras identificaram 27 situações de trabalhadores que, tendo iniciado funções recentemente, não tinham certificados de realização de testes à Covid-19. Esses trabalhadores “foram imediatamente suspensos de atividade pela ACT e o processo será seguido pela Autoridade de Saúde”.
Ao todo, a ACT identificou perto de 50 situações para levantamento de autos de notícia, que a empresa pode contestar. A maioria das situações respeitam a obrigações, não cumpridas, do empregador em realizar exames médicos aos trabalhadores. Foram também identificadas “algumas situações de incumprimento da legislação laboral referente à realização de horas extraordinárias, em particular, com excesso carga horária“.
Essa era, precisamente, uma das queixas dos trabalhadores. “Vamos verificar, já num segundo plano, se essas horas extraordinárias estão a ser devidamente pagas, para saber se não só existe o problema de fazerem horas a mais, mas se também tem a ver com a retribuição legal”, explica Nelson Ferreira. A ACT recolheu “evidência de que essas horas existiram, nomeadamente através de testemunhos de trabalhadores” e vai agora perceber, através dos registos da Segurança Social, se foram ou não pagas. “Caso não tenham sido, atuamos.”
O subinspetor-geral arrisca uma explicação para que o problema se tenha intensificado nos últimos dias: a cerca sanitária imposta nas freguesias de Longueira/Almograve e São Teotónio, desde 30 de abril, só levantada na terça-feira passada, e que impediu muitos trabalhadores de irem para as estufas. “Os frutos amadurecem, apodrecem, têm de ser colhidos. Com a cerca sanitária, houve uma escassez de mão-de-obra”, aponta. Algumas empresas recorreram, por isso, às horas extraordinárias.
É que no primeiro despacho do Governo, que impunha a cerca sanitária, não estava prevista nenhuma exceção que permitisse a quem trabalha fora dessas freguesias sair e regressar a casa. A situação alterou-se apenas uma semana depois: passaram a fazer parte da lista de exceções o “exercício de atividades profissionais”. Para entrar e sair naquelas freguesias, os trabalhadores tinham de apresentar testes à Covid-19. É por isso que muitos dos migrantes ouvidos pelo Observador em vários locais do concelho de Odemira até suspiraram quando lhes perguntamos se têm sido testados. “Uma vez a cada três dias”, diz um deles, em Vila Nova Milfontes.
Fact Check. Cerca sanitária em freguesias de Odemira impedia população de regressar a casa?
Nesta casa de Milfontes, há quem espere que a água ferva ao lume para poder tomar banho
É Shuman, 27 anos, natural do Bangladesh, quem fala com o Observador à porta de um antigo restaurante convertido numa espécie de residência. A placa com o nome do estabelecimento mantém-se, mas onde antes se serviam clientes, agora só se veem tapetes de oração muçulmanos alinhados no chão. “Não temos espaço nos quartos, por isso, temos de rezar ali”, explica. No andar de cima, a porta está sempre aberta durante o dia e é a partir das 18h00 que começam a chegar os inquilinos. São 20 ao todo, divididos por dez quartos. O preço da renda varia consoante o tamanho da divisão e o número de pessoas que lá dormem — e pode ir dos 115 euros por uma cama num quarto de três, a 200 euros num quarto sozinho.
Ao todo, pelas contas de Shuman, num mês, o senhorio deve conseguir amealhar mais de 3.000 euros com as rendas. “O edifício é bom. Quando começámos a trabalhar aqui não tínhamos casa. Temos de ficar aqui porque precisamos de um sítio onde ficar. Trabalhamos em Almograve, na Longueira e a empresa só nos dá transporte, não dá casa. Não podemos comprar nem arrendar uma casa, é impossível”, diz, em inglês. Para Shuman, aquelas condições bastam-lhe, por enquanto. “São ótimas condições. Eu vi com os meus próprios olhos outras casas em Beja, em Faro. [Pessoas] A viver em contentores, com água só no exterior. Condições muito más. Agora, isto é muito bom para nós”.
O movimento na casa vai acelerando à medida que o sol vai fugindo. Na cozinha, um dos inquilinos espera que a água da panela que pôs ao lume acabe de ferver. “Que vão cozinhar?” “É para tomar banho”, responde-nos, num inglês tremido. As duas botijas de gás já estão no fim e não são suficientes para alimentar o esquentador num banho quente. As novas só chegam no dia seguinte e, por isso, há que improvisar no fogão, entre restos de comida e gordura já ressequida. É, aliás, assim em toda a cozinha. Não que esteja desarrumada: a mesa, que só dá para quatro, está vazia, as bancadas organizadas — apenas com alguns tachos e panelas —, os pratos alinhados no escorredor. Mas a sujidade vê-se à distância: nas paredes, também elas negras da humidade, nos azulejos brilhantes pela acumulação de gordura, no pó acumulado no chão, nas janelas que já foram brancas.
“O problema é que eles não limpam. Só gostam de trabalhar, não de limpar“, lamenta Shuman, que até afixou uma folha com a divisão de tarefas à porta da cozinha. A cada quarto caberia a limpeza da cozinha dois dias por mês, mais coisa, menos coisa. Mas “ninguém cumpre”. Também ninguém usa máscara.
Shuman faz-nos uma visita guiada. Mostra um quarto com três camas — debaixo das quais os inquilinos guardam a comida, loiça, os seus pertences amontoados. Sítios onde a humidade enegrece as paredes. Frigoríficos ao lado de roupeiros improvisados.
Naquela casa, há trabalhadores de, pelo menos, cinco empresas agrícolas, mas também empregados de restaurante. Shuman, que ali mora num quarto com mais duas pessoas, já soube o que é trabalhar nos campos. Em Portugal há sete anos, o primeiro emprego foi na apanha da fruta. Trabalhou para vários campos, todos com regras diferentes, mas sempre através de uma empresa intermediária de prestação de serviços. Depois, foi ele próprio a gerir uma dessas empresas, só que acabou por desistir. Diz que perdeu “muito dinheiro”. “Eu recebia seis euros por hora de trabalho sempre que ‘fornecia’ um bom trabalhador. Mas havia empresas que aceitavam receber 5,50 ou menos. Claro que os campos as escolhiam”.
As empresas de prestação de serviço são uma dor de cabeça para a ACT. Enquanto que as de trabalho temporário se regem por regras mais rígidas — e “normalmente, não têm muitas infrações” —, as outras funcionam, muitas vezes, à margem da lei. “Nascem e desaparecem na hora“, observa Nelson Ferreira. São criadas fora do país por “sócios que não se conhecem”, com trabalhadores “intermediários” que atuam por eles e angariam migrantes, que pagam milhares de euros para virem para Portugal. Essas empresas fogem aos impostos e facilitam as redes de crime organizado. “Não se consegue detetá-los e responsabilizá-los”, diz o subinspetor-geral.
Shuman tem, agora, um supermercado numa das ruas mais movimentadas de Vila Nova de Milfontes, mas a ideia de gerir uma empresa não morreu: está a candidatar-se a obter um alvará que, diz, lhe permitirá firmar contratos com “grandes campos” da região e fornecer trabalhadores quase 12 meses por ano — não só para a agricultura, mas também para a indústria.
O jovem de 27 anos, que ficou a meio do curso de gestão no Bangladesh, sabe como funciona o negócio. “Alguns proprietários dos campos pagam por quilo, outros por hora. Se colhes mais ganhas mais, ou se trabalhas mais horas, ganhas mais. O problema é que há muitos meses em que não há trabalho todo o mês”. Isso acontece, sobretudo, na época baixa, durante o Inverno, altura em que muitos aproveitam para regressar a casa, como ele, enquanto outros procuram trabalhos sazonais. Já no verão “em junho, julho, até setembro”, chegam a “ganhar o dobro” na agricultura.
A vida no Bangladesh “era boa”. Shuman não passava dificuldades, mas decidiu seguir as pisadas do pai — que emigrou para o Qatar — e, também ele, viajar pelo mundo. “O meu irmão investiu numa loja em Lisboa. Depois ligou-me para vir para aqui. Gosto de Portugal, o tempo é bom, as pessoas são cool.” A ideia, por enquanto, é ficar, e ir poupando para viajar pela Europa.
Dirghayou está a poupar para dar a volta ao mundo, Binay quer ajudar a família no Nepal. “Acho que todos queremos voltar um dia”
O autocarro quase lotado da Rodoviária, que estaciona numa rua da Zambujeira do Mar vindo de Tavira, chama a atenção a quem por aí passa. Do alto de uma varanda, uma mulher grava a cena com o telemóvel: dezenas de imigrantes retiram as bagagens da viatura e transportam-nas para uma casa de dois andares. As palavras são fortes: “Tenho um restaurante fechado por causa disto e é o que se vê”, atira. Têm sido mais a chegar agora que se aproxima a época alta.
Dos 55 lugares do autocarro, 30 vinham ocupados, mas nem todos saíram ali. A coordenar as saídas do autocarro para as entradas na moradia, um homem, português, não reage bem à presença do Observador. “Quantos trabalhadores vivem nesta casa?” As perguntas sucedem-se, mas em vão. Repete que temos de contactar a empresa agrícola que emprega aqueles migrantes. “Qual a parte que não perceberam?”, diz. Na mão, tem 17 chaves.
É a partir das 16h00 que as ruas da Zambujeira do Mar, que horas antes estavam desertas, começam a ter movimento. Imigrantes com mochilas ou sacos de plástico regressam a casa depois de um dia nos campos, em carrinhas compridas ou carros de cinco lugares. Os moradores expressam alguma indignação. Não pela presença dos migrantes, mas pelas condições em que estão alojados — que, por propiciarem o contágio, lhes dificultam a abertura de negócios.
“Fico triste por poder trabalhar sem poder trabalhar“, diz Dina Guerreiro, proprietária de um alojamento local com vista para o mar. Critica que a restauração ali, na freguesia de São Teotónio, ainda se mantenha encerrada (o Governo já anunciou que a freguesia vai avançar no desconfinamento, mas ainda não ao nível do país; quando o decreto for publicado, poderá abrir esplanadas e lojas).
“Claro que não tenho clientes. Faz algum sentido alguém vir dormir à Zambujeira e ter de ir jantar à Longueira?” O problema, refere Dina, é que a solução da cerca sanitária foi só “para o Governo ficar bem na fotografia“. “Levantou-se a cerca e voltamos ao mesmo, dois ou três depois“, diz, relatando ter visto uma carrinha de matrícula espanhola deixar um grupo de 20 migrantes numa casa, depois de levantada a cerca. “Só precisamos de ser tratados de igual forma ao resto do país. Não faz sentido uma freguesia desagregada de um concelho. Se os problemas estão circunscritos, deviam ali ser tratados”.
De volta à moradia para onde se mudaram, pelo menos, 24 pessoas transportadas pelo autocarro, é Dirghayou Qurung, 38 anos, quem está à janela. Corta cebola para fazer o jantar, ao lado dos colegas de casa que cozinham caril de frango. O aroma sente-se logo à entrada. Nesta casa, as condições são diferentes das que encontrámos em Milfontes. Dá a ideia de que o espaço foi limpo antes de receber os novos inquilinos. Tem duas cozinhas, uma delas com um fogão de placa. Mas todos os inquilinos estão sem máscara.
No quarto de Dirghayou, com dois beliches e uma varanda (“Nice view”), dormem mais duas pessoas. Cada quarto tem uma casa de banho privativa e custa 85 euros por pessoa, valor que é descontado diretamente ao salário pela empresa.
Dirghayou está em Portugal há cinco anos, sempre a trabalhar na agricultura. Ganha 665 euros, o salário mínimo atualmente, mas diz que, nos melhores meses, consegue chegar aos 1.000. Esteve a trabalhar em Tavira, para a mesma empresa, nos últimos meses, mas foi transferido para Odemira, onde a mão-de-obra é agora mais necessária. Natural do Nepal, está em Portugal porque quer “explorar”. Já visitou a Malásia, o Dubai, e agora poupa dinheiro para ir ao Japão. “Depois, vou fazer a América, dar a volta ao mundo“.
À conversa junta-se Binay Basnet, de 29 anos, embora o boné e o estilo descontraído não lhe deem mais do que 20. Faz questão de dizer que é “recém-casado”, apesar de o casamento já ter acontecido em 2019. Está em Portugal para poder enviar dinheiro para a família — nomeadamente para a mulher, que espera reencontrar este ano. E para, um dia, poder regressar ao Nepal. “Acho que todo a gente aqui quer isso.”
As condições daquela casa não são tão boas quanto as que Binay tinha em Tavira, onde esteve dois meses e até uma piscina estava incluída. Mas o jovem está satisfeito com o que encontrou. “Já estive muito pior, em apartamentos com 13 pessoas e dois ou três quartos“, antes de a Covid aparecer.
O trabalho nos campos é “ok”, mais duro do que outros que já teve, como caixa de supermercado ou empregado de mesa. Gostava que a vida fosse diferente, de ter um negócio e estudar gestão, mas “adormecia sempre que abria um livro”, diz, entre risos. A cabeça está agora virada para outros países da Europa, com “melhores salários”: a Dinamarca, a Noruega, a Suécia. Antes de para lá ir, não se vai esquecer da guitarra — “ele toca muito bem”, atira Dirghayou — que deixou em casa de um amigo, em Vila Real de Santo António. Mas o Nepal será sempre o Nepal, o melhor sítio na Terra e além dela.
– Sabes onde é o paraíso?
– O paraíso?
– Sim. É no Nepal.