“Olá, eu sou o João e gosto de brincar com coisas de menina”. Esta é a primeira frase que João, 9 anos, diz aos colegas que conhece na escola. É a frase que serve para João decidir se vale a pena, ou não, ficar amigo dos meninos novos. “Se são meus amigos têm de perceber que eu gosto de coisas diferentes. Eu não acho que sejam coisas só para meninas, acho que é para rapaz e para rapariga. Se posso dizer e não gozam comigo é porque são mesmo amigos. Gostava que toda a gente gostasse de tudo, sem ser mau e bater e isso.”
O gostar de coisas de menina começou aos dois anos, quando João trauteava “quero uma saia”. É a mãe, Sandra (nome fictício), que conta a história na 1ª Conferência Internacional de Pais de LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transsexuais). “Brincava muito com as bonecas da prima, punha colares da mãe, depois viu um pas de deux (passo de ballet) do Lago dos Cisnes na televisão e disse: “Mãe, eu já sei o que eu vou ser. Vou ser bailarino.”
Na sala que recebeu a conferência organizada pela AMPLOS (Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género), fez-se silêncio para ouvir as palavras de João. O menino não esteve presente, mas esteve a mãe que levou uma gravação feita com o filho para o propósito. Quando Sandra perguntou ao filho se podia contar a sua história na conferência, João respondeu: “Sim, mãe. Até porque há mais meninos como eu, só que os pais não deixam.”
Os meninos e meninas como o João são crianças transgénero. O nome assusta. Cria confusão. “Temos de separar sexo e género. O sexo é aquilo com que as pessoas nascem anatomicamente e biologicamente. O género é sobretudo uma construção social e está em constante mutação”, explica Zélia Figueiredo, psiquiatra, terapeuta familiar e responsável pelo serviço de sexologia clínica do Hospital Psiquiátrico Magalhães Lemos, no Porto. Quão comum é os pais começarem a comprar roupas de bebé quando descobrem o sexo da criança na ecografia? Se é menino, vai vestir azul e brincar com carrinhos. Se é menina, vai vestir cor-de-rosa e rodear-se de bonecas e vestidos de princesa. Falar em transgenderismo é desmistificar construções sociais da sociedade.
A diversidade de expressão de género na infância é um tema pouco estudado e ainda controverso. Quando se pensa em identidade sexual, há quatro conceitos envolvidos: o sexo biológico (que é atribuído no nascimento), a identidade de género (aquilo com que nos identificamos e que é subjetivo, não está à vista), a expressão de género (relacionado com a construção social, aquilo que é apresentado na relação com os outros, ter uma expressão ‘mais feminina’ ou ‘mais masculina’), e depois há a orientação sexual (preferências que tem a ver com a atração e com os afetos, com o lado emocional – ‘eu gosto de alguém com determinadas características’). Estas quatro componentes são muito flexíveis na infância, mas a mais fluida é a expressão de género – a forma de apresentação aos outros e de representação de papéis.
“Os estereótipos masculinos e femininos estão por todo o lado. A sociedade está sempre a catalogar comportamentos e isso retira às pessoas alguma liberdade”, explica Zélia Figueiredo. “A sociedade tem de deixar de ver o género de uma forma binária, a preto e branco.” Quatro anos depois de ter procurado a AMPLOS para conversar com outras mães iguais, Sandra recordou perante a plateia: “Ainda hoje me arrependo de não ter comprado o fato da princesa na Euro Disney que o João queria.” Silêncio. Um silêncio intimista. Uns ficam com os olhos humedecidos, outros deixam escapar um ar enternecido. Mas os silêncios não são todos iguais.
Quando Sandra sentiu o peso das convicções sociais, já estava preparada para lhes fazer frente. João decidiu que queria ser bailarino e Sandra perguntou à educadora se conhecia alguma escola de ballet. “Ela dirigiu-se a mim, em frente ao meu filho, e disse: isso é para maricas.”Quando o João fez a carta ao Pai Natal, pediu um Nenuco. Resposta da educadora: “Isso não pode ser, isso é para meninas”. João respondeu: “mas a minha mãe e o meu pai dizem que posso”. “João, a tua mãe é maluca”.
“Tenho de protegê-lo deste tipo de ataques, como os que acontecem no Continente quando ele vai comprar a revista da Violeta (personagem da Disney) ou os que acontecem na boutique quando ele vai comprar a pulseira cor-de-rosa. Nós nunca quisemos mudar o João. Nós sentimos muita necessidade de mudar o meio onde o João estava.” Sandra abordou a AMPLOS quando o filho tinha cerca de 5 anos. “Não estava a conseguir encontrar o equilíbrio entre o proteger e o proibir. Estava a sentir-me muito sozinha. As pessoas diziam que ele era assim porque o pai estava muitas vezes fora (ele trabalha no estrangeiro) e portanto era muito agarrado a mim.”
Sandra socorreu-se das ferramentas que tinha: procurou testemunhos na internet sobre o assunto, tentou falar com amigos homossexuais em busca de uma explicação. “Não encontrei nada que falasse sobre este tipo de desconformidade de género na infância. Só o facto de conseguir partilhar uma série de inseguranças com outros pais já me tranquilizava.”
Tranquilidade na família, tranquilidade nas escolas, tranquilidade na sociedade, tranquilidade na criança. A combinação ideal para o crescimento da criança, ainda muito longe de ser conseguida. “Na família não se põe a questão dos rótulos, do que vai ser ou não amanhã. Mas também nunca houve a abordagem clara do assunto, a não ser por mim e pelo pai”, conta Sandra.
A construção do género na família
Zélia chama-lhe “conspiração do silêncio”. O secretismo é um “falso problema”, refere, porque “na maioria das vezes os pais já perceberam e não querem falar. Toda a gente sabe, mas ninguém fala”. E o facto de “ninguém falar” faz com que não haja estatísticas em Portugal do número de crianças transgénero. “A maior parte dos pais pensa que é uma fase e espera para ver o que vai acontecer”, explica a psiquiatra. Quando é uma rapariga que tem uma expressão de género socialmente associada ao masculino, é uma “maria-rapaz”. Quando acontece o inverso é mais fácil de detetar. “Se a criança for mais velha e isto acontece sobretudo se for um rapaz biológico mais afeminado, há uma confusão com a orientação sexual”.
Como definir a fronteira? “É preciso entender o grau de desconforto. Há situações que são muito evidentes e em que não vale a pena deixar passar muito tempo para a transição social”, a única possível de fazer na infância e durante parte da adolescência. “Na maior parte das vezes, as crianças não precisam de consulta nenhuma. É importante haver um acompanhamento inicial de um pedopsiquiatra, que trabalhe com a família e com as escolas.” Mas são sobretudo os pais que precisam de apoio na efervescência emocional que um processo destes implica.
No pior dos cenários, o assunto nunca chega a ser verbalizado. No melhor, há uma evolução. Primeiro há um período de negação, de evitamento do confronto. Depois os pais começam a perceber a permanência daquela identidade e, geralmente, acontecem “situações ambivalentes”: em casa, os pais tratam a criança de acordo com o que ela se sente, trocam o nome ou usam até o pronome do outro género (trocam o ele por ela, e vice-versa). Mas na rua ainda são chamadas pelo nome que receberam à nascença. As coisas ainda não estão ainda bem definidas.
Isolda, a mãe-coragem
“Uma vez cheguei a casa e encontrei-a escondida no armário a usar um vestido. Disse-lhe que não devia vestir aquilo por ser um rapaz e ela disse-me, a chorar, que tinha nascido um rapaz mas queria ser uma rapariga.” Nessa altura, ela tinha três anos. Ela. Como gosta de ser chamada. “Ela” era o menino que ia brincar com os carros e com as bolas que o marido de Isolda Ataíde, 37 anos, comprou logo que soube que ia ser pai de um menino. A mãe da menina que hoje tem seis anos veio dos Estados Unidos para participar em Portugal na conferência “Ao Teu Lado – Famílias pela Igualdade contra a Discriminação”. Isolda esteve sempre ao lado da filha. Recusa-se a usar o pronome “ele”, porque a única coisa que a filha tem de masculino é o órgão sexual. O sexo, só por si, não quer dizer nada, certo?
Menina que é menina tem brincos. A “transição social” é o momento em que a criança assume para si a identidade cruzada e a sociedade aceita e interioriza. Para simbolizar a transição da menina, aos 5 anos, Isolda realizou o seu maior sonho: furar as orelhas. “Ainda que tenha doído, e eu sei que dói, quando ela se viu ao espelho com os brincos foi como se ela dissesse “agora sou mesmo uma rapariga, mãe”. Ela perguntava sempre porque é que a irmã tinha brincos e ela não, porque é que a enfermeira não lhe tinha posto brincos como à irmã – “eu também sou uma menina, mãe”. Tentei sempre dizer-lhe “desculpa querida, pensávamos que eras um rapaz mas estávamos errados e agora compreendemos”.
Isolda, de origem mexicana, fez das questões da diversidade de expressão de género na infância uma causa de vida. Tornou-se ativista e colabora agora com a associação FDS (Familias por la Diversidad Sexual). Já viajou por vários países, vai a escolas para dar formação aos funcionários e professores, “porque as primeiras pessoas às quais uma mãe recorre quando tem dúvidas sobre o seu filho é ao pediatra e ao professor. Portanto, estas pessoas são elementos essenciais que não sabem o que fazer ou não têm a informação necessária para tomar as decisões certas.”
Falta de informação. É esta uma das principais lacunas. “No México e na América Latina não existe informação sobre estas questões nas crianças, só sobre os adultos. Os países da América Latina têm uma cultura patriarcal — os homens acham que a criança é uma extensão deles, não percebem que é um ser humano independente. Portanto se ele ou ela é transgénero ou homossexual, não é culpa deles e não diz nada sobre se eles são bons ou maus pais. É um ser humano diferente, simplesmente.” O preconceito é muito forte no Brasil, aponta Isolda. Mas antes de o preconceito se delimitar por fronteiras geográficas, ele mora sobretudo nos casais. “O pior é vermos o número enorme de casamentos que acabam porque os pais não chegaram a acordo sobre a maneira de gerir esta questão no filho. Se um dos pais não concorda em apoiar o filho, o casamento acaba e ambos lutam pela custódia.”
As crianças não se sentem naquilo em que os adultos as encaixam. Resultado: ou adotam um papel do outro género, se sentirem que isso lhes é permitido (vestem-se, falam, brincam e usam os pormenores feminino ou masculino), ou mentem sobre o que sentem. “O mentir protege a criança sobretudo um bocadinho mais velha que sabe que, se falar da sua identidade de género, pode ser considerada anormal, vai ter de se tratar”. Zélia Figueiredo é responsável pelo serviço de sexologia clínica do Hospital Psiquiátrico Magalhães Lemos e, ao consultório, já lhe chegaram muitos casos. “Todas as histórias de pessoas transgénero adultas referem que protelaram falar sobre o que se estava a passar, não por receio da reação, mas para não magoarem os pais. É importante que os pais percebam que as crianças se preocupam muito com eles”, conta a psiquiatra.
Isolda fala abertamente da sua menina e do início do processo. Sobretudo porque o pior já passou. “Ao princípio foi difícil porque não sabemos nada. Não sabemos o que fazer, não sabemos como ajudar o nosso filho, não sabemos se a culpa é nossa, se foi algo que fizemos durante a gravidez. É complicado. Assim que percebemos o que se está a passar, há um processo de lamentação pelo filho que pensávamos ter e pelas ilusões e sonhos que se criaram para ele. Temos de pensar no presente e amá-lo. Não gosto de usar o termo “aceitar” porque significa que não se está completamente de acordo com algo e que se está num processo de aceitação. Gosto mais de dizer que é abraçar o nosso filho.”
Escola e crianças transgénero: sinónimo de discriminação?
As histórias de Isolda e de Sandra têm várias coisas em comum. Um delas é a discriminação sofrida na escola, que as obrigou a agir. As crianças transgénero são mais “permeáveis”. São mais frágeis. Depois das situações com a educadora, Sandra pôs o filho noutra escola o ano passado, a meio do terceiro ano. Abriu logo o jogo com os funcionários e usou o método de João. “Aprendi com o meu filho”, diz, com um sorriso terno. “Cheguei lá e disse ‘O João é o menino do ballet e gosta de brincar com coisas de menina. Fiquei por aí. Normalmente há muitos silêncios. As pessoas não sabem que perguntas formular. Não é maldade, é desconhecimento. Eu percebi logo que ele ia ser melhor tratado. Antes de mudar de escola, o João verbalizava muitas vezes: mas porque é que eu não nasci como o mano? Era tão mais fácil.”Sandra tem um filho mais velho, com doze anos de diferença de João. Questionada sobre as diferenças entre os dois, Sandra responde: “o João nasceu muito mais ruivo, muito laranja”. Sorri. “É isso”.
Aos três anos e meio, Isolda e o marido procuraram ajuda para entender o que se estava a passar. “Encontrámos uma terapeuta no México que é especializada em questões de género e foi ela quem nos explicou que não estava relacionado com a orientação sexual mas sim com identidade sexual. Decidimos que ela devia seguir o seu caminho”, recorda. Mas essa “decisão” não se estendeu ao meio escolar — um dos pilares-base na infância. “Ela era intimidada pelo professor e pelo diretor da escola. Eles diziam-lhe constantemente que os rapazes não devem usar vestidos, não devem gostar de cor-de-rosa, não devem usar o cabelo comprido, ainda que o dela não fosse assim tão comprido”, brinca. Ainda que não fosse preciso aligeirar a conversa, porque Isolda não tem a voz embargada nem parece medir cada palavra. Isolda conta a sua história. Ponto.
“Ela ficou muito deprimida e não queria sair de casa, não queria ir à escola, não queria estar onde eu não estivesse. Decidimos apresentar uma queixa por discriminação mas não teve efeito porque a lei na Cidade do México não abrange crianças transgénero, portanto foi muito difícil para as autoridades sequer tentarem ajudar-nos nesta questão. Decidimos mudá-la de escola. A escola para a qual mudámos era formidável e foi um grande apoio para a minha filha. Foi aí que ela fez a transição social, quando tinha 5 anos, a meio do ano escolar. Tudo estava a correr muito bem, com a exceção de alguns pais que nos intimidavam e que chegaram a ameaçar-nos.”
Há sempre um momento decisivo. Para as crianças transgénero, esse momento chega muito cedo. E todas as transformações são vividas de uma forma extremamente violenta. “No início da puberdade, o desconforto piora na maioria dos casos porque aparecem os carateres sexuais secundários. Se a adolescência é um período complicado para todos, na situação do transgenderismo pode ser muito difícil.” O corpo muda. Há mudanças todos os dias. Quando se sente que o corpo não é o certo, o que fazer? Zélia explica que é no início da adolescência que se pode começar a proceder a alterações. Há terapeutas que optam pela supressão das hormonas. No caso dos rapazes biológicos, é aconselhada a toma de um medicamento para diminuir a testosterona. No caso das raparigas biológicas, o objetivo é frenar a atividade dos estrogénios.
Depois, “a partir dos 14, 15 anos, quando as coisas estão mais definidas”, podem começar a ser utilizadas as hormonas com vista à masculinização ou à feminização do corpo. “Mas isto só acontece se o jovem quiser. Pode haver situações em que se dá a transição social e não se sente necessidade de fazer transformações. Isto é sempre decidido por cada um e, até aos 18 anos, a família tem de autorizar”.
Não há números. Não se sabe quantas crianças transgénero existem em Portugal, porque é muito difícil caracterizar uma criança trans e porque, sobretudo, as crianças não chegam aos consultórios. Zélia apresentou dados de um estudo feito por uma clínica do Canadá, em 2011. Um terço das crianças que não se sentem conformes com o género vão ser transsexuais. “Mas ninguém consegue saber se aquele gosto por coisas atribuídas ao outro género vai continuar durante a adolescência e vida adulta.” Neste caso, o estudo foi elaborado por Kenneth Zucker, um dos maiores especialistas em transgenderismo na infância. Mas as crianças da análise foram aquelas que chegaram ao seu consultório. Quantas crianças transgénero é que nunca chegam a uma clínica? O número é incalculável.
Quando o transgenderismo se mantém na adolescência, a média aumenta. Oitenta por cento dos adolescentes transgénero manterão essa condição na vida adulta. A psiquiatra e terapeuta familiar socorre-se da sua experiência profissional para tentar um enquadramento português. Ao seu consultório têm chegado jovens transgénero com 16, 17 e 18 anos que querem proceder a uma transformação física. Todos acompanhados pelos pais, devido à limitação legal. “Desde 2009, na região norte, observamos cerca de 100 pessoas. Desse número, 30 e poucos são só deste ano.” Isso quer dizer que tem aumentado o número de pessoas transgénero? “Não necessariamente. Estas questões têm sido mais tratadas, os meios de comunicação social dão-lhes mais projeção. As pessoas transgénero sempre existiram. Não apareceram de repente. Mas andavam escondidas.”
Os pais que chegam, chegam sempre com uma vontade: conhecer outros pais iguais a eles. “Fazemos reuniões com os pais. Eles precisam de conversar com pessoas que tenham a mesma história”. A partilha ajuda a aceitação. O “eu não estou sozinho” pode ser muito reconfortante. “Pedimos sempre à criança ou jovem para escrever uma história de vida, tentamos perceber como é que a família está a lidar aquilo e pedimos apoio à Endocrinologia.” Depois, é começar o processo.
A filha de Isolda vai fazer 7 anos dentro de poucas semanas. Enquanto a mãe está em Portugal, ela está com o pai e com a irmã nos Estados Unidos. “Espero que esteja a divertir-se e com saudades minhas”, diz Isolda, a sorrir. João está a fazer a preparação para o Conservatório. “É o que ele quer e está a trabalhar para isso”.Divide o seu tempo entre a escola e o ballet. “Ele diz-me ‘oh mãe, eu não tenho tempo para estar chateado’. Mas há dias em que ele deixa escapar um ‘estou cansado de ser como sou'”. Agora é muito mais seguro de si. Mas a sociedade não mudou com a mesma velocidade.
“Algumas pessoas olham para mim como se eu fosse um extraterrestre. Eu irrito-me mas deixo passar porque se é aquilo que eu gosto e que eu quero, porquê estar triste? Se quero não tenho de mostrar vergonha.” João faz 10 anos em dezembro.