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O designer Ricardo Andrez
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O designer Ricardo Andrez

(Rui Oliveira/Observador)

O designer Ricardo Andrez

(Rui Oliveira/Observador)

Ontem, hoje e amanhã. Seis designers da ModaLisboa escolhem uma peça intemporal

Pedimos a 6 designers da ModaLisboa que escolhessem uma peça de uma coleção passada como símbolo de intemporalidade. O resultado foram dois dedos de conversa sobre moda em Portugal e sustentabilidade.

Comprar, comprar, comprar, para agora desacelerar, desacelerar, desacelerar. É preciso desacelerar o ritmo com que se produz e com que se compra. Conter o consumismo passa por olhar para as peças com maior escrutínio: quantas vezes vamos usar? Fica bem com o que já existe no armário? Quanto tempo vai durar? A sustentabilidade — tantas vezes usada como chavão na moda — aqui reflete-se há já muitos anos nas práticas dos designers portugueses que focam a sua produção em quantidades controladas e feitas no país, muito deadstock a dar vida a novas coleções e outras tantas práticas que vêm agora à tona à boleia do discurso de consciência ambiental cada vez mais preconizado. Tornou-se necessário também explorar a intemporalidade das criações, medir-lhes a temperatura, enfiá-las numa cápsula do tempo para que viagem do passado, passem pelo presente e sigam para o futuro.

A propósito da mais recente edição da ModaLisboa “And So What?”, que arranca esta quinta-feira, perguntámos a seis designers que vão fazer desfilar por lá os seus modelitos, que peça-chave fez parte de uma coleção antiga que ainda hoje consideram atual. Uma peça que voltassem a desfilar, sem arrependimentos de erros passados, que usassem ontem, hoje e amanhã.

NUNO GAMA

Porque é que escolheu esta peça como símbolo da intemporalidade?
Foi uma escolha quase óbvia, é uma das peças mais antigas que tenho comigo, acabou por marcar o meu regresso pós-incêndio. Isto foi a coleção com a qual eu regressei e foi a coleção de apresentação do novo logótipo Nuno Gama. Já foi em 2003, já há imenso tempo mesmo, e eu continuo a adorar este fato, acho-o muito muito bonito. Escolher esta peça foi uma boa forma de voltar à vida. Voltava-o a usar num evento, sem dúvida. Se ele me servisse, não me escapava.

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Que materiais foram usados e qual foi o processo criativo para chegar até ela?
O material lembro-me que é seda, agora a história desta coleção, sinceramente, já não me recordo. Já foi há muitos anos e naquela altura os arquivos informáticos eram mais limitados, não era fácil de registar como agora que temos acesso a tudo a qualquer momento. É marcante por ter sido o meu regresso naquele tempo, tenho algum carinho por ela e continua a achar que é atual.

Nuno Gama ao lado do fato escolhido

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

A moda portuguesa já era de, alguma forma, consciente e sustentável antes de estes temas invadirem o espaço público? 
Isto é uma consciência que as pessoas têm ou não têm, não é fácil nós sobrevivermos neste mundo hoje em dia, porque somos atropelados por uma série de situações. No meu caso, o que tentamos fazer é ter essa consciência e tentar que ela seja certificada e garantir que todas as pessoas que trabalham connosco a todos os níveis — desde os fornecedores às matérias primas até às confeções — sigam os mesmos princípios que nós, mas não podemos ser radicalistas. Por exemplo, há imensa gente que diz que não usa pele animal, e tudo bem. Mas o que é que fazemos às peles animais que surgem da indústria alimentar? Uma coisa é andarmos a criar animais ou a matar animais para esse propósito, outra coisa é haver toda uma cadeia alimentar que temos de respeitar. Às vezes temos uma falta de noção global sobre todos estes temas.

Que cuidados e preocupações é que têm nesse sentido quando estão a pensar uma coleção?
Esta tomada de consciência é demasiado nova enquanto fenómeno e depois somos todos impactados nestes interesses e nestas economias. Mas nós aqui no atelier tentamos ser o mais possível planet e animal friendly. Na próxima ModaLisboa, nesta época pós-pandemia, tornámo-nos ainda mais rigorosos a esse nível. Estamos a usar matérias primas não poluentes, estamos a usar coisas recicladas, a nível da coleção de calçado estamos quase a 100% de sustentabilidade, o que é genial — isto usando peles vegetais, cortiças…mas isto tudo se paga, é muito mais caro o processo. Este mundo é tão novo que ainda não temos certezas de nada, mas a vantagem é que estamos todos a caminhar na mesma direção para mudarmos. Estamos todos na luta para tentar melhorar o planeta.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

A pandemia obrigou a reformular o sistema de moda e os seus formatos de alguma maneira?
Absolutamente tudo. Acho que a vida tem de ser reformulada e agora mais uma vez depende da nossa consciência. Conheço imensas pessoas que estão ansiosas para voltar aos tempos dantes, mas nós não queremos voltar para onde estávamos, nós queremos fazer disto uma oportunidade e evoluir, para pensar melhor no futuro. Do meu ponto de vista, isto parece uma segunda chance que nos estão a dar, um alerta para o tipo de vida que tínhamos antes, a nossa alimentação, o nosso estilo de vida, os cuidados que temos com o planeta. De alguma forma, o planeta quis que parássemos e olhássemos à nossa volta. Os que olharem talvez façam as coisas evoluir. A expetativa que as pessoas têm de uma marca, ou de um criador, eu acho que não é politizar esta situação, não é ser radical, mas sim pôr as pessoas a pensar e dar-lhes uma escolha. Chamar a atenção.

LUÍS BUCHINHO

Porque é que escolheu esta peça como símbolo da intemporalidade?
Eu acho que símbolo de intemporalidade acabo por ter um pouco em todas as minhas coleções, isto por grande parte do feedback que tenho das minhas clientes que muitas vezes me aparecem na loja com peças que já têm 10, 15 e algumas até 20 anos. A intemporalidade é uma coisa que associam muito à minha marca, as peças tornam-se uma espécie de companheiras do armário das quais as pessoas não se desfazem. É um sinal de intemporalidade incrível. Escolhi esta peça porque faz parte da coleção de verão de 2010, e é uma coleção com a qual eu encontro algumas semelhanças com a que estou a trabalhar para o próximo verão 2022. Estamos a fazer uma abordagem com tecidos transformados, neste caso com plissados e decotes blazer, que me lembram muito a maneira como foi construída toda aquela linguagem da coleção para esse verão de 2010. Até a cor, que é assim uma cor neutra, enquadra-se muito bem nesta coleção. Nunca se trabalha da mesma maneira, mas o princípio é bastante semelhante.

Que materiais foram usados e qual foi o processo criativo para chegar até ela?
Aquela peça é feita num tafetá e num poliéster plissado e o processo criativo foi na altura bastante diferente daquele que eu faço agora. Na altura, era mais prisioneiro do croqui para chegar às formas, ou seja, desenhava imenso, fazia muitas ilustrações à volta daquilo que podia ser a coleção. Hoje em dia faço as coisas no busto. Tenho os tecidos e depois vou para o busto e depois logo vejo o que é que acontece…vou fazendo drapeados, moldados de uma maneira extremamente orgânica, é um processo mais físico. Não menosprezo o meu método antigo, mas agora é diferente até porque as coleções são muito mais pequenas e o princípio daquilo que será o princípio base da coleção sou capaz de fazer em riscos, porque a transformação da matéria prima tem estado muito presente nas minhas coleções, compro tecidos e transformo-os ao nível da textura visual e consigo resultados muito exclusivos com isso.

Luís Buchinho, que regressa esta temporada à ModaLisboa, com o seu vestido de 2010

(Rui Oliveira/Observador)

A moda portuguesa já era de alguma forma consciente e sustentável antes de estes temas invadirem o espaço público? 
Eu acho que a moda portuguesa sempre teve essa consciência sem sequer pensar muito nisso, mas é difícil haver marcas mais sustentáveis que as nossas. São feitas 100% no próprio país, temos uma produção local muito ligada ao artesanato e temos uma economia de recursos absurda, isto porque não temos capital de investimento muito grande para podermos ter sequer uma cultura de desperdício. Portanto mais sustentável e consciente que uma marca portuguesa acho difícil, mas acho isto desde sempre, desde que a moda portuguesa começou a acontecer. As falhas de comunicação em termos de moda portuguesa existem em muitos níveis, e esta questão é uma delas. O discurso da sustentabilidade é um bocadinho aborrecido, porque as marcas quando produzem em quantidades industriais e apregoam que são sustentáveis é impossível que o sejam. Eu não acredito em produção massiva aliada a uma ideia de sustentabilidade. É utópico. Acredito que, em 80% dos casos, é discurso de marketing. Nós produzimos de uma maneira delicada para o planeta. Fazemos coleções pequenas, fazemos coisas muito ligadas ao que nos rodeia ao nível de recursos — até já em extinção como é o caso das costureiras de bairro, por exemplo — e é tudo muito pequeno. Sempre tivemos esse discurso mas não o soubemos publicitar.

Que cuidados e preocupações é que têm nesse sentido quando estão a pensar uma coleção?
Não sei precisar há quanto tempo, mas a partir de um determinado momento as minhas matérias primas começaram a ser todas adquiridas e são 80% de origem nacional, sendo que trabalho com fábricas com que consigo acompanhar o que eles fazem e o seu percurso e que sei que têm alguma preocupação. Nós no atelier fazemos as coisas básicas a esse nível, mas é impensável, por exemplo, deitarmos tecidos fora. Aliás, os tecidos ganham sempre novas vidas, sobretudo neste último ano e meio em que estivemos parados. Fomos sujeitos a uma contenção económica graças à pandemia e teve de haver uma reutilização de meios enorme, todos os bens que já ali estavam parados e que poderiam vir a ser agentes de poluição foram todos transformados em peças novas e houve ali um refrescar de recursos. Pela nossa conjuntura somos constantemente sustentáveis, mesmo que não queiramos.

(Rui Oliveira/Observador)

A pandemia obrigou a reformular o sistema de moda e os seus formatos de alguma maneira?
Muito, muito mesmo. Eu só tenho alguma pena porque me parece que algumas coisas estão a voltar exatamente àquilo que eram a uma velocidade avassaladora e eu vou-me sentir muito triste se isto tiver sido tudo em vão. Eu não quero mesmo voltar àquilo que era, não quero regredir. Houve uma paragem e o efeito de confinamento despertou em mim muita coisa, mas o principal foi a calma e o tempo para refletir e era algo que não me apetecia perder. Vai ser muito rápido isso acontecer. Não podemos ter passado por quase dois anos disto e não termos aprendido nada.

LIDIJA KOLOVRAT

Porque é que escolheu esta peça como símbolo da intemporalidade?
É mesmo essa a palavra. Intemporalidade. Já estamos com este projeto há 15 anos e, no meu trabalho, há sempre uma reciclagem, não é tão visível em tudo porque nas coleções tudo se torna nobre, mas eu realmente tento ter uma marca com muitos cuidados. Usamos deadstock de tecido, pequenas quantidades, quase tudo peças únicas; está um pouco no nosso ADN essa relação. Não é só porque se fala agora de sustentabilidade que fazemos isto, isto já é parte da minha natureza, porque aqui no atelier tudo se mistura — desde uma peça vintage de uma loja ou da feira ao tecido mais nobre que eu compre, tudo se junta. E este casaco é um daqueles que podes usar sempre, podias ter usado há não sei quantos anos e podes usar daqui a mais alguns.

Lidija kKolovrat vestiu a peça escolhida: um casaco feito com pele reciclada montada em retalhos sobre uma malha de rede

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Que materiais foram usados e qual foi o processo criativo para chegar até ela?
Estamos a usar restos de pele, eu gosto muito de trabalhar a pele. Já tentámos utilizar as peles inteiras e eu sempre tive algum receio, mas o que importa aqui é como é que vou usar esses restos? O processo é simples: utilizando esse desperdício, nós criamos os padrões, que funcionam como um puzzle onde as várias peças encaixam umas nas outras. Fizemos durante estes 15 anos vários puzzles, várias formas diferentes e este é o último. É uma coisa que dá algum trabalho, mas dá um prazer enorme mesmo e realmente são peças que para mim têm outro significado porque sei que estou a fazer algo não só enquanto criativa, mas enquanto pessoa consciente. Esta peça torna-se melhor por ser reciclada e recortada nesta malha do que se fosse pele inteira, porque é maleável, é quente e fresca ao mesmo tempo. Tem características que, quando trabalhadas aqui no atelier, superam a matéria prima com que é feita. Acho que a reciclagem tem de ser isso, que consiga fazer valer o produto final, torná-lo nobre quando ninguém olharia para ele, porque nós acabamos a colocar muito trabalho nele.

A moda portuguesa já era de alguma forma consciente e sustentável antes de estes temas invadirem o espaço público? 
Eu acho que sim, mas sem estarmos totalmente conscientes  disso. Acho que é a condição que temos enquanto criadores de moda de autor. Claro que há cada vez mais consciência do que se faz e como se faz, e também depende do público, que tem de estar sensível a isso. É um constante jogo de pergunta e resposta entre nós, eles e o mercado. Acho que as fábricas também têm feito muita coisa a que nós nem temos acesso; gostaria muito de ir a certas fábricas que sei que estão constantemente a inovar ao nível de malhas e tecidos recicláveis, mas nem sempre estão à nossa mão.

Que cuidados e preocupações é que têm nesse sentido quando estão a pensar uma coleção?
É como eu dizia, isto fez sempre parte do meu ADN, eu reutilizo peças, faço customização, sempre foi esse o meu espírito e muito do combustível que me movia. É mais desafiante, percebes? E acho que nós, designers, somos postos à prova com tanta coisa que este é mais um desafio para nós e para a indústria. Eu às vezes ouvia coisas sobre o meu trabalho do tipo “mas o que é que ela está a fazer?” relativamente a estes processos todos que já na altura me saíam da alma, era natural para mim. Agora é natural para os outros também, até porque temos acesso a mais matérias primas e há uma necessidade de voltar à origem. Small is beautiful.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

A pandemia obrigou a reformular o sistema de moda e os seus formatos de alguma maneira?
Acho que a pandemia teve o seu lado bom e lado mau. Da mesma forma que quebrou o negócio fez-nos todos parar para termos mais atenção a certas coisas, e acho que essa atenção pode resultar como uma injeção criativa, ou para tentarmos fazer mudanças para melhor nas nossas marcas, é um acordar. Para mim foi bom no sentido em que me permitiu mesmo parar e agora tentar dosear melhor o trabalho, eu consigo agora estar menos consumida com trabalho. Mudei o chip, filtrei o que achei que não estávamos a fazer bem para que pudéssemos mudar. Crescer não implica um ritmo alucinado, o negócio cresceu mas foi preciso definir prioridades.

LUÍS CARVALHO

Porque é que escolheu esta peça como símbolo da intemporalidade?
O bomber branco é da minha primeira coleção que apresentei na ModaLisboa, do verão de 2014, e acho que é uma peça completamente intemporal, pela cor, pela forma e quase que já tive evoluções dessa peça e desse tipo de cortes. É uma peça que podia ser perfeitamente usada nos dias de hoje sem ser associada a uma coleção tão antiga. A outra peça de homem a razão é exatamente a mesma, e também a própria construção tem muito a ver com o trabalho que eu faço que é a desconstrução dos moldes e a junção dos padrões inesperados, a questão de ter o plissado e o tecido xadrez. É uma peça perfeitamente atual, acho que é da minha segunda ou terceira coleção de homem.

Luís Carvalho junto das duas peças escolhidas, um bomber branco de mulher e outro da coleção de homem

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Que materiais foram usados e qual foi o processo criativo para chegar até ela?
No bomber branco de mulher o material é o linho e depois tem um interior com um tecido metalizado em tons de prata, que tinha a ver com a inspiração da altura que eram as shelters. O conceito era à volta de um abrigo e de uma pedra que tinha servido como padrão para a coleção — e o tecido brilhante era um dos reflexos da pedra. Na outra peça a construção teve um bocadinho a ver com o tecido xadrez que eu usei nessa coleção, e em que decidi trabalhar o plissado no xadrez que era uma coisa mais inesperada.

A moda portuguesa já era de alguma forma consciente e sustentável antes de estes temas invadirem o espaço público?
Acho que já havia de alguma forma, mas obviamente que agora ouve-se falar e veem-se práticas que não se viam nem ouviam há anos. Nós, pequenas marcas e designers, em termos de produção somos pequenos e acho que acabamos por responder a grande parte das necessidades de consciência ambiental de que se fala agora. Logo à partida não temos um nível de produção grande, os tecidos que compramos — pelo menos, falo por mim — são excedentes de outras coleções de alguns fornecedores e isso, na verdade, sempre foi uma preocupação minha porque não fazia sentido de outra forma. Claro que depois já procuras tecidos que tenham materiais reciclados e agora tens muito mais oferta que não tinhas antes, é o evoluir da coisa por haver mais procura e uma preocupação generalizada, é normal a indústria ter respondido a essa necessidade. Eu sinto isso num espaço de oito anos, porque foi há quanto tempo eu comecei a fazer desfiles e nessa altura não havia nem a preocupação, nem a oferta.

Que cuidados e preocupações é que têm nesse sentido quando estão a pensar uma coleção?
Sustentável não é só reciclar ou usar tecidos reciclados, está longe disso. Sustentabilidade diz respeito a todo o processo que expliquei antes e eu tento sempre passar essa mensagem do trabalho que nós já fazemos nesse sentido, porque está na nossa engrenagem de trabalho desde o início. Por exemplo, eu tento sempre vender os stocks que tenho com sample sales no meu site. O facto de criar coleções com peças intemporais, que são peças que também podem ser marcantes, óbvio, é também uma forma de responder a tudo isto, porque vão ter uma longevidade muito maior.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

A pandemia obrigou a reformular o sistema de moda e os seus formatos de alguma maneira?
Eu acho que no geral sim, eu tentei que a pandemia não afetasse a minha visão enquanto designer e o meu trabalho, tentei que não me limitasse criativamente, porque durante este tempo fiz as minhas coleções como eu as queria fazer antes. Tentei contornar algumas das limitações sem ter de fazer cedências por aquilo que é a minha marca e a identidade dela. Se as pessoas procuram a minha marca é pelo meu design e estar a alterar isso não seria correto nem para mim, nem para o meu público. Por exemplo, não fazia sentido eu estar de repente a apresentar fatos de treino na minha coleção só porque foi das coisas que mais se venderam e continuam a vender nestes tempos. Essa necessidade é momentânea, era uma produção só porque sim. Eu até sinto que as pessoas agora querem o oposto disso, querem arranjar-se, estou a sentir o retorno das peças especiais, voltar à rua com umas peças mais trabalhadas.

RICARDO ANDREZ

Porque é que escolheu esta peça como símbolo da intemporalidade?
Na minha cabeça acho que uma camisa faz muito sentido, uma camisa branca. É sempre daquelas coisas que grita intemporalidade. E aqui, aparentemente, é uma camisa branca mas quando a tens ao pé de ti percebes todo o detalhe dos cortes, das costuras, não é reto e torna tudo mais dinâmico. Eu tenho coisas muito gritantes, mais antigas e que aqui não se aplicavam.

Que materiais foram usados e qual foi o processo criativo para chegar até ela?
Ela é 100% algodão e a coleção tinha muito a ver com o cubismo e o surrealismo e eu cheguei a essas formas mais dinâmicas em termos de corte para dar essa ilusão, como se as coisas estivessem desalinhadas.

Ricardo Andrez escolheu uma camisa branca com costuras assimétricas inspirada no cubismo

(Rui Oliveira/Observador)

A moda portuguesa já era de alguma forma consciente e sustentável antes de estes temas invadirem o espaço público? 
Acho que não havia de todo essa preocupação, estávamos todos envolvidos num sistema que era uma correria total que era fazer, fazer, fazer. Eu só comecei a focar-me nisso em 2018, a olhar para as coisas mais a sério. Comecei a pegar em deadstocks aí e foi a minha abordagem mais séria. Tropecei um bocadinho na coisa, tive acesso a uns armazéns de umas fábricas e pensei que era uma estupidez não usar aqueles tecidos. Eu não precisava de todas as coleções de ir a showrooms escolher tecidos, porque posso perfeitamente adaptar a minha produção ao stock que tenho e foi isso que comecei a fazer. Foi o grande início. Pelo menos 90% das peças são feitas de deadstocks desde essa altura.

Que cuidados e preocupações é que têm nesse sentido quando estão a pensar uma coleção?
Quando há pouco dizia que não havia tanto essa preocupação, não referi que, obviamente, há uma preocupação que sempre tive e faz parte do processo que são os meios humanos com quem eu trabalho. Os meus parceiros são os mesmos há uns 8 anos, por isso há essa preocupação fundamental em saberes com quem trabalhas. Só assim consegues ter uma produção controlada e com a qualidade que queres que tenha o produto final.

(Rui Oliveira/Observador)

A pandemia obrigou a reformular o sistema de moda e os seus formatos de alguma maneira?
Eu quero acreditar que vai acontecer isso ainda. Eu gostava de pensar que as coisas não vão caminhar para onde estavam, no sentido do ritmo que nós tínhamos. A pandemia fez-nos perceber que as coisas não têm de ser tão rápidas como eram antes de 2020. Isso foi a maior lição que eu tirei. Quero acreditar que as coisas possam caminhar para uma nova visão daquilo que é a moda. Porque é que eu vou apresentar 40 looks se em 20 ou 25 eu consigo transmitir o conceito e a ideia que quero? É mesmo preciso mudar, as coisas estavam completamente descontroladas. Até agora parece que tinhas de obedecer a um número, porque se apresentavas pouco eras considerado young designer, vá. Ainda há esses preconceitos e acho que devíamos olhar para este último ano e desconstruí-los. Na ModaLisboa vou apresentar 20 looks e é por aqui que quero ficar, até porque quando fazia muitos só metade ia para produção.

NUNO BALTAZAR

Porque é que escolheu esta peça como símbolo da intemporalidade?
Acho que o melhor sinal que pode haver é a pessoa não saber se foi feita agora ou há 10 anos. E este vestido é um exemplo disso, é um vestido que tem uma cor especial, assim meio açafrão, tem uma qualidade de tecido em seda incrível, por isso, há essa durabilidade, e tem uma silhueta muito leve. O decote é mais descontraído e acho que isso dá-lhe um lado mais cool. Tanto pode ser usado numa situação mais festiva como por cima de uns jeans, por exemplo. É muito versátil. Este vestido tem pelo menos uns 17 anos e aqui está ele.

Que materiais foram usados e qual foi o processo criativo para chegar até ela?
Lembro-me bem, essa coleção onde ele foi apresentado foi inspirada num filme, o “Paciente Inglês”. Há um lado curioso do cinema que eu abracei nessa coleção; em mais do que um filme havia cenas especiais com aviões e esses aviões eram amarelos. Eu tentei passar essa ideia do avião amarelo e acabou por dar origem a isto, a escolher um tecido desta cor, com uma silhueta esvoaçante.

Nuno Baltazar escolheu um vestido amarelo esvoaçante

(Rui Oliveira/Observador)

A moda portuguesa já era de alguma forma consciente e sustentável antes de estes temas invadirem o espaço público? 
Se tinha consciência? Eu acho que não, eu acho que essa consciência surge quando se começa a falar sobre o tema. Mas já era sustentável em vários aspetos, sem dúvida. No sentido em que as práticas inerentes a projetos de moda de autor são sempre muito mais sustentáveis. Produzimos em Portugal, usamos tecidos portugueses, há muita manualidade do nosso trabalho e todas essas as técnicas inerentes a tornar o processo de uma peça de roupa mais sustentável são práticas que já tínhamos interiorizadas de forma natural pela própria dimensão da nossa indústria. Assim como é mais sustentável um carpinteiro que faz uma cadeira de raiz cá do que mandarmos vir uma cadeira xpto de um país nórdico. A questão do handmade, o menos industrial possível, é um espelho do que nós já fazíamos. Há uns anos, a ideia de produzir uma coleção pequena era sinónimo de fraqueza, de alguma coisa estar errada. Esta questão de regressar às origens, às pequenas produções e projetos autorais é uma coisa muito mais recente na história da moda.

Que cuidados e preocupações é que têm nesse sentido quando estão a pensar uma coleção?
Eu sou um grande defensor da desaceleração do consumo da moda generalizada. E nesse sentido a moda de autor tem um papel preponderante porque imprime uma qualidade de matérias primas, de confeção e até de estética que permite essa intemporalidade às coleções e às peças. Se eu acho que uma peça minha não pode desvalorizar ao fim de seis meses, acho que essa ideia tem de começar em mim, tenho de olhar para os tecidos e para os acessórios e desempoeirar a mentalidade.

Uso muito desperdícios de tecido, e isso quer dizer que a qualidade é menor? Não, claro que não. O reaproveitamento é fundamental e é um processo muito difícil mas que eu adoro. Tenho muito prazer em ver tecidos que estariam no lixo e que transformei numa peça nobre. É como usar as cascas de legumes para fazer caldos incríveis. É o mesmo com a moda. Eu também transformo peças de outras coleções noutras peças, esse vestido era um desfile de 2008, era um vestido que na altura não adorei, não resultou. Ele esteve estes anos todos no arquivo a ser “um vestido que não resultou”. E eu acho interessante essa ideia de trabalhar o erro e de transformá-lo de alguma maneira. Abri o vestido, incorporei-o num colete de homem para passar a ser uma peça especial.

Nuno Baltazar tem transformado peças antigas em novas — é o caso deste vestido de noite onde foi incorporado um colete

(Rui Oliveira/Observador)

A pandemia obrigou a reformular o sistema de moda e os seus formatos de alguma maneira?
Deu tempo para que isso acontecesse. No meu caso foi na pandemia que estive a refletir sobre estes processos, esse vestido foi um trabalho fruto do tempo que a pandemia me ofereceu. Para mim tudo isto faz parte do momento da criação, porque também fazemos parte dessa máquina e precisamos de tempo para sermos criativos. Para isso é inevitável o desaceleramento. Não sei se estou no sítio onde quero estar, quero mesmo alterar os meus hábitos de trabalho para que essa qualidade se reflita e para acrescentar ainda mais às boas práticas enquanto criativo. Eu tenho de ter tempo de parar, para olhar, para me emocionar, para olhar para o erro. Eu faria uma coleção facilmente com 40 looks e, há um ano, havia mesmo uma limitação de manequins por causa da DGS e desfilei metade dos looks e foi tudo possível na mesma. Por isso, a ideia de voltar a fazer uma coleção com tantos looks não está sequer na equação. Não vai voltar a acontecer.

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