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Vladimir Putin surge em cima do palco, de casaco preto, vestido por cima de uma camisa e gravata. Atrás de si tem uma série de oficiais, a maioria com fardas brancas impecavelmente engomadas. À sua frente está uma multidão que agita bandeiras russas. Segurando firmemente o microfone, coloca a voz para falar em tom assertivo e dirige-se assim aos compatriotas: “Depois de uma longa, difícil e extenuante viagem, a Crimeia e Sevastopol voltaram ao seu porto de abrigo, à sua costa nativa, à sua casa. À Rússia!”
Estávamos a 19 março de 2014 quando este discurso aconteceu. O processo de anexação da Crimeia pela Federação Russa estava a concluir-se, com a realização de um referendo três dias antes e a separação de facto da península face à Ucrânia. O resultado não seria reconhecido nem pelas Nações Unidas nem pela maioria dos países de todo o mundo, mas, para os russos, isso pouco importava. Motivados pelos laços históricos e culturais entre a região e a Rússia, alimentados pelo nacionalismo crescente em Moscovo, quando Putin falou em acolher a Crimeia, naquela tarde de março, a multidão respondeu com um simples grito conjunto: “Rússia! Rússia!”.
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Era uma altura em que a popularidade do Presidente russo batia recordes, em muito motivada pela reconquista da península — que, para a psique russa, soava a reconquista do respeito internacional. De tal forma que até a oposição se dividia na reação à medida, com figuras de destaque como Alexei Navalny a afirmarem que, consigo à frente dos destinos da nação, a Crimeia não seria devolvida aos ucranianos, por não ser “uma sandes de salsicha que pode ser passada para a frente e para trás”. Em abril desse ano, a taxa de aprovação de Putin chegou aos 83%. No ano seguinte, atingiria os 89%.
Era um crescimento muito necessário para o Kremlin, que sentia a ressaca dos protestos da Praça Bolotnaya, em 2012, quando milhares se manifestaram contra o que consideraram ser resultados eleitorais fraudulentos. “Tivemos os Jogos Olímpicos [de Inverno de 2014], depois a anexação da Crimeia e aquilo a que chamo de ‘Síndrome da Crimeia’ e tudo isso levou a uma espécie de movimento em torno de Putin, o que lhe deu uma grande subida de popularidade”, resume ao Observador a russa Yana Gorokhovskaia, investigadora especialista em movimentos sociais e de protesto na Rússia, na Universidade de Columbia. “Mas isto durou apenas até este ano.”
2019 parece ser um ponto de viragem. Atualmente, o Presidente russo regista uma baixa taxa de popularidade, comparada com outros tempos (68%), e, neste verão, Moscovo tem sido palco de manifestações tão intensas que, num só dia, 1.400 pessoas foram detidas. A 27 de julho, os moscovitas saíram à rua para participar numa manifestação contra as limitações às candidaturas de políticos da oposição à assembleia municipal da capital. Houve puxões, bastonadas, pessoas arrastadas pela polícia. Dias depois, Navalny, rosto mais conhecido da oposição, teve uma reação alérgica na prisão com contornos pouco claros e a sua fundação anti-corrupção foi envolvida num processo judicial. As águas agitam-se na política russa, geralmente estagnada. Porquê? E o que esperar daqui para a frente?
O “vasto leque de meios” da repressão do Kremlin: mais de mil detidos, acusações de interferência externa e ameaças de retirar filhos aos pais
Há já quatro sábados consecutivos que Moscovo é palco de manifestações com milhares de pessoas, cujos gritos de ordem vão desde “Deixem-nos entrar!” (em referência aos candidatos barrados) até “Putin é um ladrão!”. A participação em massa deu nas vistas e trouxe à memória os protestos da Bolotnaya, em 2012 — mas, desta vez, ganharam outro relevo.
Tanya Lokshina explica porquê: “Foram detidas quase 1.400 pessoas num só dia, incluindo dezenas de menores”, diz a investigadora russa da Human Rights Watch (HRW), referindo-se apenas ao protesto de 27 de julho. Tanya esteve no terreno a ver de perto a reação policial e ficou surpreendida: “Nunca houve tanta gente detida num só protesto em Moscovo. Tivemos, no passado, um conjunto de manifestações organizadas por Navalny, onde 1.700 foram detidos, mas isso incluía Moscovo, São Petersburgo e outras cidades. Portanto, esta é a maior detenção de sempre num só protesto na Rússia.”
A isto somam-se as detenções dos sábados seguintes: mais de 800 no dia 3 de agosto e mais de 200 no dia 10. No dia 17, a situação foi mais calma. Apesar disso, ainda houve uma situação de tensão quando a polícia invadiu um café na rua Arbat, no coração da cidade, para deter Olga Misik, a jovem de 17 anos que tem dado nas vistas por se sentar em frente à linha de polícias de intervenção com uma Constituição nas mãos. Com a multidão a entoar o seu nome, Olga acabou por ser libertada, segundo o New York Times.
A investigadora da HRW acompanha violações de direitos humanos no país há mais de uma década. Durante esse tempo, diz, viu “muita coisa”. As manifestações deste verão, contudo, já lhe ficaram cravadas na memória. “As detenções foram brutais: houve espancamentos com cassetetes, braços e mãos torcidos para posições dolorosas, pessoas atiradas ao chão, arrastadas, levadas à força para carrinhas…”, enumera ao Observador, numa conversa telefónica a partir da capital russa.
E a repressão foi além da força policial, com a abertura de vários processos judiciais. Há investigações por suspeitas de “interferência com a aplicação de direitos eleitorais” a alguns líderes da oposição, a que se somam acusações de “ataques à polícia” a três manifestantes que atiraram aos agentes objetos como um caixote do lixo e uma garrafa de água. A tudo isto soma-se um processo judicial mais alargado de “motim em massa”, que já está a decorrer. “As penas mais severas serão, naturalmente, para os organizadores dos protestos mas, se as autoridades decidirem que aquilo que se passou foi de facto um motim, isso significa que qualquer pessoa que tenha publicado nas redes sociais a dizer que ia a uma das manifestações pode ser judicialmente acusado”, explica Tanya. “São táticas intimidatórias, não há outra forma de o descrever”, acusa a responsável pela ONG de defesa dos direitos humanos.
Aos processos judiciais juntam-se outras táticas, como as acusações de influência estrangeira que são repetidas nas televisões estatais — “houve recrutamento de marginais potenciais que vieram para Moscovo com uma única tarefa: preparar ações para a imprensa ocidental”, disse mesmo um apresentador — ou estratégias como a ameaça de retirar o filho a um casal que levou a criança para a manifestação de 27 de julho, acusando-os de negligência. “Eles estão a usar um vasto leque de meios, não apenas a força bruta”, resume Tanya. “O objetivo é deixar claro a todos aqueles que estão descontentes que o preço a pagar por se manifestarem é a possibilidade de vários anos de prisão. Eles querem que as pessoas pensem duas vezes antes de sairem de casa. E é por isso que há uma escalada de repressão.”
As manifestações sociais dos últimos meses vs. os protestos políticos deste verão
Mas não é a primeira vez que alguns russos saem à rua para protestar, nem sequer nos últimos anos. O que têm de diferente estas manifestações para assustar tanto o Kremlin e as autoridades judiciais? “Para já, porque são proativas, não são reativas. Os outros protestos eleitorais aconteceram depois de eleições por suspeitas de fraude. Estes acontecem antes, são sobre a desclassificação de candidatos, que é algo que acontece frequentemente na Rússia como forma de prevenir uma derrota sem ter de recorrer à fraude eleitoral. Só que, desta vez, tudo isto adquiriu um novo sabor”, analisa a especialista de Columbia, Yana Gorokhovskaia.
Em causa estão as cinco mil assinaturas necessárias para um candidato da oposição ir a votos e que as autoridades dizem agora que não são válidas. “Se eles nos roubam as eleições na assembleia municipal de Moscovo, como podemos sequer discutir eleições nacionais ou eleições para a câmara de Moscovo ou quaisquer outras eleições?”, questionou Lyubov Sobol, política da oposição, próxima de Navalny, que esteve em greve de fome e que foi detida num destes sábados, citada pelo Moscow Times.
Para Mark Galeotti, conhecedor do funcionamento interno do Kremlin e autor de vários livros sobre a Rússia — cujo mais recente é We Need to Talk About Putin (“Precisamos de Falar sobre Putin”, sem edição em português) — é precisamente o facto de a oposição desejar ir para lá do palco local que faz com que as autoridades queiram de imediato travá-la: “Estas pessoas, como Sobol, não estão a concorrer por quererem as ruas limpas. Querem concorrer para usar a assembleia municipal de Moscovo como pódio e assim atacar questões políticas mais profundas”, analisa o professor honorário de Estudos Eslavos da University College of London (UCL) ao Observador.
É por isso que a repressão, prevê Galeotti, não deve abrandar: “Toda a gente já está congelada nas suas posições. As autoridades acham que já não podem ceder e deixar um destes candidatos concorrer. Porque, regra geral, quando este tipo de regime demonstra determinação, tem tendência a sair por cima”, resume.
Para o investigador, o mais provável é que a panela de pressão que é a Rússia atual continue a aquecer. Ao longo do último ano, o Kremlin tentou libertar algum vapor, com cedências em questões que podem ser consideradas “não políticas”. Foi assim em Ecaterimburgo, cidade perto dos montes Urais onde os protestos contra a construção de uma catedral num parque público levaram a um recuo das autoridades. Foi também assim em Arkhangelsk, onde as manifestações contra a instalação de aterros sanitários na região conseguiram igualmente concessões. E até os protestos contra a detenção de um jornalista do site independente Meduza, Ivan Golunov, resultaram na sua libertação.
As sondagens oficiais demonstram mesmo essa maior disponibilidade dos russos comuns para reivindicar. Em junho, um estudo do Centro Levada, o instituto de estudos de opinião mais respeitado do país, dava conta de que 27% dos inquiridos se diziam agora dispostos a participar em manifestações contra o agravamento do nível de vida — um número duas vezes maior do que o habitualmente registado.
“O regime já fez concessões em temas que são sociais, sócio-económicos ou ambientais e as pessoas conseguem geralmente espremer algumas cedências nessas matérias porque é uma forma mais fácil de acabar com um protesto”, analisa Yana. “Até em temas maiores, como a reforma das pensões: no verão passado houve protestos intensos e o Governo acabou por ceder nalguns pontos, até tivemos Putin na televisão a explicar a sua medida e a reconhecer o descontentamento das pessoas.”
O problema, explicam a investigadora de Columbia e o professor britânico, é que depois, de tantas cedências em temas pontuais, o Kremlin não quer dobrar-se mais, muito menos em temas claramente políticos, como candidaturas de opositores a eleições. “Eles estão bem conscientes da vaga de protestos recente no país. E vejam o que aconteceu na Polónia com o Solidariedade: aquilo que começou por ser um protesto específico, num estaleiro, tornou-se um tema nacional”, aponta Galeotti. “Não é que a Rússia esteja na mesma posição, porque não está. Mas há figuras paranoicas no Kremlin que estão preocupadas.”
A “reação alérgica” de Navalny e a investigação à sua Fundação
Ao mesmo tempo que os manifestantes saíam à rua em Moscovo, a figura de proa da oposição assumia lugar de destaque a partir da prisão, onde esteve a cumprir uma pena de 30 dias por ter convocado uma manifestação não autorizada até esta sexta-feira. Um dia depois da grande manifestação de 27 de julho, Navalny era levado de urgência para o hospital, devido a uma “reação alérgica”, segundo as autoridades.
A sua médica, Anastasia Vasilieva, contudo, apressou-se a afirmar, depois de o avaliar, que não era possível excluir a possibilidade de “danos tóxicos na pele provocados por terceiros”. Ou seja, Anastasia não exclui a possibilidade de que Navalny possa ter sido envenenado. Algo que o próprio se apressou a afirmar com todas as letras: “Serão eles tão idiotas que arriscariam envenenar-me num local onde seriam os únicos suspeitos? (…) Aquilo que posso dizer com confiança é isto: na Rússia, há tipos muito estúpidos e loucos no poder.”
Num país onde vários adversários do Kremlin morreram subitamente — desde a jornalista Anna Politkovskaya, passando pelos ex-espiões Alexander Litvinenko e Sergei Skripal, até ao político Boris Nemtsov, morto a tiro na rua —, há quem não se surpreenda com a possibilidade de também Navalny vir a ser eliminado, como foi o caso da historiadora norte-americana Amy Knight.
Outros, como Galeotti, explicam que não é possível ser tão taxativo para já — mas não rejeitam nenhuma possibilidade: “Pode ter sido uma reação alérgica. Mas nesta altura não podemos excluir nenhum cenário”, confessa ao Observador, a partir de Londres. “Esta pode ter sido uma tentativa não de o matar, mas de o assustar”. A Navalny e também a outros, como forma de exemplo: “O objetivo do Kremlin é travar as pessoas. A ideia é dividir os manifestantes, entre os que são hardcore e que iriam sempre sair à rua, acontecesse o que acontecesse, e aqueles que, perante a possibilidade de virem a ter a cabeça rachada pela polícia, acabam por ficar em casa.”
Se a reação alérgica do político está envolta em mistério, a ação mais recente das autoridades judiciais não deixa margem para dúvidas de que Alexei Navalny se tornou um alvo: menos de duas semanas depois do incidente, a sua Fundação Anti-Corrupção (FBK na sigla original) também começou a ser investigada. Responsável pela produção de dezenas de vídeos online bastante populares, que denunciam casos de corrupção no sistema político russo, a FBK começou a ser investigada por suspeitas de lavagem de dinheiro, num valor superior a 15 milhões de euros. Como consequência da investigação, todas as contas da organização foram congeladas, deixando-a totalmente inoperacional.
“Durante muito tempo eles decidiram deixar Navalny operar porque pensavam que isso mostrava que não estavam preocupados. Com esta decisão, isso mudou”, resume Mark Galeotti. Com o crescimento da FBK, o reforço das suas investigações online e a abertura de escritórios do grupo de Navalny em todas as regiões do país, o principal opositor do Kremlin tem vindo a consolidar a sua força como alternativa a Putin e a melhorar a sua capacidade de chegar aos russos — algo fulcral num país onde o acesso aos media está geralmente vedado à oposição. “Quanto mais Navalny deixar de ser apenas um moscovita cosmopolita a falar apenas com outros moscovitas cosmopolitas, mais em perigo se coloca”, sentencia o investigador da UCL.
E o caso judicial contra a FBK pode vir a revelar-se uma peça fulcral de uma investida das autoridades russas para conter a oposição e esta vaga de descontentamento. Pelo menos na opinião da investigadora da HRW, Tanya Lokshina: “Acho que é bem possível que venham a juntar esse caso com o caso de ‘motim em massa’ das manifestações. Acho que podem argumentar que Navalny está a lavar dinheiro para financiar estes protestos”, considera a russa. “Digo isto porque há um dado relevante: a muitas das pessoas que foram detidas no dia 3 foi feita uma pergunta muito específica: ‘quanto te pagaram para participares nisto?’. Parece muita coincidência, não é?”, pergunta ao Observador.
“A questão não é se este regime vai sobreviver, porque vai. A questão é que mudanças podem acontecer entretanto”
Aquilo que, por enquanto, parece certo é que este verão produziu uma agitação como há algum tempo não se via em Moscovo. Manifestações, processos judiciais, cargas policiais, suspeitas de envenenamento… Os ingredientes são muitos e é fácil de perceber que há eletricidade no ar. “A elite russa está cada vez mais nervosa”, analisa Mark Galeotti. E porquê? “Já fui a Moscovo três vezes este ano e dá para perceber como em todo o lado a conversa é como será a Rússia depois de Putin. Ninguém sabe o que vai acontecer em 2024”, diz, referindo-se à data em que termina o último mandato do Presidente. Nessa altura, depois de 25 anos no poder (dois mandatos como primeiro-ministro e três como Presidente), Putin ficará apenas atrás do recorde de Estaline (31 anos).
Muito se especula sobre se Vladimir Putin se limitará a abandonar a política ativa quando a altura chegar ou se tentará manter-se no Kremlin. As teorias sobre a forma como Putin se pode manter ativo vão circulando: desde as alterações à Constituição, como já sugeriu o presidente do Parlamento, até à possibilidade de ativar um tratado nunca cumprido com a Bielorrússia que cria um cargo supra-nacional de chefe de Estado das duas nações. Para Galeotti, é toda esta incerteza sobre o futuro que está a alimentar a tensão crescente: “Se todos soubessem que Putin está de saída em 2024, já teríamos uma campanha aberta pela liderança; se todos soubessem que vai ficar para lá de 2024, tudo estaria a acalmar, com as pessoas a prepararem-se para um longo inverno político. É a incerteza que deixa a elite agitada e a oposição reforçada.”
Gorokhovskaia, no entanto, tem uma opinião diferente: “Ainda falta muito até 2024”, afirma. “Aquilo que muita gente não entende sobre a política russa é que nem tudo gira à volta de Putin. Não creio que seja ele a dirigir diretamente esta repressão, por exemplo. Ele construiu um poder vertical que funciona desta forma: ele envia sinais e as pessoas agem de acordo com aquilo que acham que o Kremlin espera que elas façam. E às vezes há pessoas que vão demasiado longe”, resume. Para a académica, a ação de organismos como o poder local de Moscovo, a polícia, a Guarda Nacional ou o Ministério Público é muitas vezes motivada por disputas de poder interno. Ou seja: este verão quente não é necessariamente fruto de uma agitação da elite. Pode ser, isso sim, simplesmente o resultado natural de 20 anos de poder de Putin.
Seja qual for a origem, certo é que este verão pode ter consequências — e nisso os todos os especialistas ouvidos pelo Observador estão de acordo. Tanya Lokshina está pronta para continuar a sair à rua todos os sábados para observar as manifestações que estão marcadas e avaliar a reação das autoridades. “Não tenho uma bola de cristal, não sei até quando é que os moscovitas vão continuar a protestar, mas sei que as autoridades não parecem prontas para ceder e sei que, quanto maior for a participação, mais dura será a repressão”, vaticina.
Yana Gorokhovskaia, por seu turno, alerta que o tema das eleições municipais tem “um prazo de validade”, já que as eleições estão marcadas para 8 de setembro. “Não sei que tipo de transformação é que este movimento necessita para continuar para lá disso”, confessa. A corrida para a oposição, contudo, é uma maratona e não um sprint: “Os russos estão preocupados com o que se passa nos seus quintais. Quando as coisas afetam as pessoas diretamente, elas tornam-se mais politizadas e é a isso que temos assistido com os protestos ambientais contra os aterros sanitários, por exemplo. Mas esse é um processo mais lento e que traz apenas alguns para a rua. Aquilo que acho que preocupa o Kremlin neste momento é que o ânimo dado ao Governo pela Crimeia está a esgotar-se. E a simpatia dos russos pela ideia de protesto está mais alta do que nunca.”
Mark Galeotti concorda: “A curto-prazo, o regime está a salvo. A questão não é se este regime vai sobreviver, porque vai. A questão é que mudanças podem acontecer entretanto.” Num país onde a economia se mantém estagnada e onde a corrupção é um problema de séculos, o descontentamento tem espaço para ganhar raízes. “Não acho que venha aí uma tempestade, mas vem certamente um período de aguaceiros. Ou seja, não acho que venha aí uma revolução; mas o regime irá lentamente perder legitimidade”, prevê o professor.
A tudo isto, soma-se o facto de já não haver um tópico unificador do espírito nacional. “Se perguntarmos agora aos russos o que desejam para os seus filhos, já ninguém fala em querer uma Rússia forte ou uma Rússia que domina o mundo. As pessoas falam no fim da corrupção, no desejo de viajar, numa vida melhor para os seus filhos”, aponta o analista. Ou, por outras palavras, “o problema para o Kremlin é que já não há mais Crimeias”. Num país asfixiado por sanções devido ao conflito na Ucrânia, cujas aventuras militares como a da Síria começam a causar mais desconforto do que entusiasmo, os russos começam a olhar mais para dentro de portas do que para fora — e isso preocupa o Kremlin.
Talvez por isso, em pleno período de aguaceiros fortes, o regime esteja desesperadamente a tentar tapar os buracos por onde a chuva pode entrar nessa casa. E para isso utiliza todas as armas que tem à sua disposição. Num destes sábados, por exemplo, enquanto milhares protestavam em Moscovo, Vladimir Putin aproveitava para fazer um passeio de mota com o grupo de motards pró-Kremlin Night Wolves. O local escolhido só podia ser um: Sevastopol, na Crimeia.