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Os "génios" do novo curso mais difícil de Portugal

Engenharia Aeroespacial tornou-se este ano no curso com a média de ingresso mais alta. O Instituto Superior Técnico enche-se com as mentes mais brilhantes do país. Todas recusam a palavra "génio".

Do cimo da Alameda Dom Afonso Henriques, em Lisboa, há vista para um jardim pintado de negro. A Fonte Monumental, que jorra água do outro lado do jardim, foi o ponto de encontro escolhido para os trajados. No Instituto Superior Técnico, quatro estudantes de capa aos ombros erguem uma bandeira branca com o símbolo da escola. Esperam sentados no canteiro: querem receber os milhares de alunos que, acabadinhos de sair do ensino secundário, vão subir estas escadas. Uma das alunas vem acompanhada pelo pai: “Sara, quem vai tratar do passe do metro não sou eu. És tu”. Sara, que põe o pé no primeiro degrau e depois olha para o portão, dá o primeiro passo no ensino superior e numa escola que este ano está em destaque. É precisamente por estas escadas que vão entrar os alunos mais geniais de Portugal.

Desde pelo menos 1998 que o curso de Medicina nunca tinha sido destronado no panorama dos cursos universitários portugueses: este ano, o curso com média de ingresso mais alta foi Engenharia Aeroespacial, um mestrado integrado que só é lecionado no Instituto Superior Técnico, da Universidade de Lisboa. Não houve lugar para estudantes com menos de 18,53 valores neste curso. No topo da lista dos colocados está Beatriz Alves e os seus 19,95 valores de média de ingresso. Um número que, assegura ao Observador, reflete “muito trabalho e dedicação”. Diz entre risos que não é um génio, mas antes uma boa gestora do seu tempo: “Durante o secundário temos aulas de noventa minutos, às vezes mais. Se tenho de estar dentro da sala, e tenho, mais vale concentrar-me em fazer o máximo de exercícios possível e aprender o máximo de coisas que conseguir“. Foi também por isso que escolheu Engenharia Aeroespacial: não faz a mínima ideia da profissão que quer, por isso decidiu optar por um curso multidisciplinar. “Eu espero terminar este curso com muito mais do que o título de engenheira. Quero sair com mais conhecimentos em matemática e física”, explica ela ao Observador com segurança na voz.

“Fundamentos da Aerodinâmica… Incompreensível?”

Miguel Mendes ri-se quando, sentados numa pequena mesa de uma pastelaria do Chiado, folheamos a bíblia do curso de Engenharia Aeroespacial. “Não é incompreensível que está escrito, é incompressível. Mas é uma piada fácil que costumamos fazer no curso”, conta ele ao Observador. Connosco está também João Almeida. Ambos preparam-se para apresentar a tese no Instituto Superior Técnico que ditará o fim do seu mestrado. Em meados de outubro serão mestres com duplo diploma: um com o carimbo do Técnico, outro com o aval da Universidade de Delft, na Holanda, onde passaram um ano a estudar.

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Miguel Mendes em Roterdão, na Holanda, país onde concluiu o último ano de Engenharia Aeroespacial. Créditos: Facebook.

Ambos concordam que Engenharia Aeroespacial não é um curso de nichos, como o nome parece transparecer. Hoje com 23 anos, tanto Miguel como João afirmam que é uma boa alternativa para quem, aos 18 anos, ainda não sabe que rumo quer dar ao resto da vida. “Há dois tipos de pessoas no nosso curso: os que adoram aviões e os que adoram engenharias, mas não sabem qual. Como nasceu da aplicação de disciplinas de várias áreas, é uma alternativa bastante abrangente e das que mais portas abre”, conta Miguel enquanto sacode a colher dentro da chávena de café. João faz o mesmo e assina por baixo: “É uma coisa muito transversal. Eu tive cadeiras de ciências de materiais, mecânica, química, programação, eletrotécnica. As pessoas que gostam de experimentar áreas diferentes gostam deste plano curricular, mas quem prefere ter uma aprendizagem direcionada pode apanhar uma surpresa”. Por isso é que há uma sangria bastante grande nas mudanças de anos: muitos dos estudantes mudam de curso ao final do ano ou na altura de avançar para a fase de mestrado.

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João Almeida, também ele finalista do mestrado em Engenharia Aeroespacial pelo Instituto Superior Técnico. Falta apenas defender a tese em Portugal: na Holanda, onde passou um ano, a caminhada já terminou. Créditos: Facebook.

Nunca abdicaram de nada para chegar tão longe. Dizem que também participaram na praxe, saíram à noite e mantiveram um grupo de amigos próximos enquanto estudaram. “Não é impossível, somos pessoas normais. Sim, precisamos talvez de trabalhar um pouco mais, mas isso é uma questão de princípio: se queremos fazer as coisas bem feitas exige-se um compromisso que nem toda a gente aos 18 anos tem disponibilidade para aceitar“, acrescenta Miguel. Levar o título de “engenheiro aeroespacial” impresso no currículo não é um sonho de criança para nenhum dos dois finalistas: “Devem ser poucos os miúdos que entram no liceu com este curso em mente. Eu pelo menos só decidi o que ia seguir uns seis meses antes de me candidatar à universidade“, confessa João. Então é possível tirar notas extraordinárias sem que haja uma missão concreta? Para Miguel é, mas só por um motivo: “Eu só sabia que tinha de trabalhar o suficiente para que, quando chegasse a hora de decidir por um curso, essa decisão só dependesse de mim. Tinha de ter uma média em que pudesse entrar em qualquer coisa que eu quisesse”.

Miguel conseguiu: entrou em Engenharia Aeroespacial com 19 valores de média de ingresso. João não se lembra. Quando lhes dizemos a média da primeira colocada no curso este ano, levantam as sobrancelhas e abrem a boca de espanto: "19,95 valores? Ouch".

Os cursos de engenharia estão cada vez mais nos radares dos estudantes universitários e a prova disso está na evolução das médias de ingresso de Engenharia Aeroespacial. O curso deu um salto nas condições de colocação entre 2006 e 2008, um período em que a média do último colocado no mestrado subiu 1,87 valores. Em 2014, era preciso ter pelo menos 18 valores de média de ingresso para entrar no Instituto Superior Técnico para estudar Engenharia Aeroespacial. Olhando para os colocados de 2013, cujas médias ainda estão disponíveis na Internet, 62 dos 85 alunos que entraram em Engenharia Aeroespacial nesse ano não teriam entrado no mesmo curso se se tivessem candidatado agora. Isso representa quase 73% dos estudantes que agora estarão no 3º ano do curso (último da fase de licenciatura). O que mudou nos últimos três anos letivos?

Para Luís Campos, coordenador do curso, o segredo está na segurança que esta área oferece. “A Engenharia Aeroespacial aqui no Técnico existe desde os anos noventa. Não conheço nenhum engenheiro deste curso que esteja desempregado. E os números dizem que 80% dos estudantes que acabam o curso têm trabalho ao fim de um mês“. E não só na área aeroespacial: as estatísticas afirmam que metade dos formados trabalham na área da aeronáutica e que a outra metade está empregada noutras áreas, como na indústria automóvel. “Estes alunos estão muito motivados, querem desenvolver o melhor que puderem as suas capacidades. Não há ninguém para quem este curso não seja uma primeira escolha“, acrescenta. Além disso, o crescente investimento da Europa e dos Estados Unidos em projetos desta área pode ter contribuído para atrair alunos, acredita Fernando Lau, co-coordenador do curso no Instituto Superior Técnico: “Nesta época há muito interesse por este ramo, por isso estes alunos precisam de saber comunicar em todas as áreas. Uma empresa como a Airbus precisa de engenheiros civis, aeronáuticos, de engenheiros de materiais, químicos, mecânicos… Os nossos estudantes sabem bem o que querem e estão muito informados“. E onde fica a Medicina, que até agora parecia ser a primeira opção de quem tinha médias como esta? Esta é uma pergunta que preocupa alguns pais, confidencia Luís Campos, admitindo que muitos deles já foram conversar com ele sobre esse assunto. A resposta já está pronta.

"Com um curso de Medicina, os estudantes têm trabalho em Portugal. Com um curso de Engenharia Aeroespacial, estes alunos vão ter trabalho em qualquer lugar do mundo".
Luís Campos, coordenador do curso de Engenharia Aeroespacial

A genialidade é mesmo feita de transpiração

É o que garantem todos os estudantes ou antigos alunos de Engenharia Aeroespacial. Mafalda Teixeira está prestes a começar o terceiro ano do curso. Tem 18 anos porque avançou dois anos letivos quando ainda estava na primária. Ainda assim, sacode os ombros quando ouve a palavra “génio” associada ao seu nome: “É uma coisa natural, simplesmente é preciso esforço para chegar até aqui”. Não teve de mudar nada para mergulhar de cabeça no ensino secundário e pôr prego a fundo para chegar à universidade: saía com amigos, fazia ballet três horas por semana e frequentava aulas de inglês. Mas tinha bem presente o que queria fazer: ser astronauta, porque o espaço a fascina desde que visitou as instalações da NASA com os pais. “Não sou um génio. Tenho colegas bem melhores do que eu.” Quão melhores?, perguntamos. “A minha média de ingresso foi de 19 valores. Na altura contei: fui só a décima quinta a entrar no curso”.

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Mafalda Teixeira está no último ano da licenciatura em Engenharia Aeroespacial. Tem 18 anos. E sonha ser astronauta da ESA. Créditos: Mafalda Teixeira.

O espaço também é o futuro de Francisco Santos, caloiro de Engenharia Aeroespacial: não quer ir lá, só quer “pôr coisas lá”, especifica ao telefone com o Observador. Quando era pequeno dizia que queria ser “engenheiro do metro”, embora hoje não consiga explicar o que isso significa. A meio do 10º ano escolheu o curso a que se candidataria dois anos depois e no qual entrou com 18,9 valores de média: “Este é um curso para onde só vão as pessoas que estão apaixonadas pelo céu”. Mas é convicto quando diz que o seu destino é fora das fronteiras portuguesas. É o mesmo destino que metade dos formados em Engenharia Aeroespacial tiveram.

Prova disso está no exemplo de Miguel Lambelho, que entrou em Engenharia Aeroespacial com a melhor nota no exame de ingresso, Matemática A, e que agora está a terminar o mestrado em Delft. Subir as escadas do Técnico parecia-lhe o percurso natural: “Com este curso podia abrir perspetivas e desafiar-me diariamente”. Não foi às escuras para esta área: falou com professores e com alunos mais velhos e rapidamente percebeu que era um curso muito teórico. Mas não se importou: escolheu a escola primeiro que o curso “pelo estatuto que tem, porque qualquer empresa tem isso em conta”. Depois veio a ambição.

"As coisas não tinham uma margem de risco tão baixa como antecipei. O desemprego não me preocupa. Preocupa-me chegar ao fim do mês e ganhar bem".
Miguel Lambelho, estudante no mestrado de Engenharia Aeroespacial

Acredita que não precisa de fazer nada fora do comum para acabar o mestrado com sucesso e um currículo sólido: já fez estágios de verão, a que se candidatou por iniciativa própria, porque se diz ser “uma pessoa de objetivos” a quem a plataforma de anúncios de emprego do IST não satisfaz. De resto, é um jovem normal. “Não saio tantas vezes à noite como gostaria. Mas está a dar frutos. Não me vou arrepender.

João Lopes Rocha já está em voos mais altos. Tornou-se mestre com duplo grau o ano passado, após um ano a estudar na Holanda. Agora mora em Trollhättan, na Suécia, e é engenheiro de controlo de movimento automóvel (tradução livre) na National Electric Vehicle Sweden (NEVS), que serve a Saab Automobile. Encontrou o que queria no Técnico: um curso interdisciplinar onde podia ter uma formação ilimitada nas engenharias. Para ele, ser um génio não é mais do que “ter um pouco de brio pessoal e profissional”. Sente-se bem quando obtém bons resultados. Por enquanto, vai conquistando-os em território escandinavo.

Há outro curso do Instituto Superior Técnico que fez história nas colocações de 2016: o mestrado integrado de Engenharia Física Tecnológica conseguiu uma média exatamente igual à de Aeroespacial. Quem entra para uma área destas “ou é um génio ou se acha um génio”, diz ao Observador Pedro Mendes, que se prepara para ir de Erasmus para Bruxelas. Quando lhe perguntamos qual é o seu caso, sorri: “Sou um gajo acima da média, senão não estava no curso em que estou”. Acredita que a inteligência não se mede com notas – “num curso de arte não me safava”, ironiza – e que o clima de festejo em redor das novas médias de ingresso lhe parece algo exagerado. “O número 60 de Medicina deve ter média mais alta do que o número 60 de uma destas engenharias”, compara Pedro. O plano de futuro deste estudante não passa propriamente pela engenharia: o sonho é o jornalismo. Pretende “comunicar a ciência” e torná-la mais cativante para os jovens. Mas não hesitou muito quando escolheu um curso de engenharia: era uma questão de segurança na hora de arranjar emprego.

O que diferencia alunos com estas médias é “um grande ímpeto para aprender, criar, conhecer e transformar”. É o que nos diz Pedro Sismeiro, também ele estudante de Engenharia Física Tecnológica. Levar o emblema do Instituto Superior Técnico na pasta não é tarefa fácil: “Pode passar-se a barreira entre o exigente e o desnecessário, fazendo com que o curso seja uma constante gestão de danos“. Há unidades curriculares de tal forma absorventes que “fazem sombra” às outras: é “uma certa ilusão de malabarismo constante com tudo o que temos de fazer”. Há de compensar: Pedro Sismeiro quer ser piloto comercial de aviões, provavelmente no estrangeiro, e tem feito por isso. Confia nas estatísticas: 100% dos diplomados estão a trabalhar e 86,7% já têm emprego seis meses depois de concluírem o curso. Números que, opina Pedro, são também reflexo do espírito de entreajuda que reina no Instituto Superior Técnico: “Estamos rodeados de colegas fantásticos, amigos para a vida mesmo, e o facto de estarmos com eles quase 24 sob 24 horas faz com que haja laços muito profundos”.

Miguel Mendes, finalista do mestrado em Aeroespacial, confirma isto mesmo: "Temos de ser companheiros. O Técnico, pela sua exigência, já nos lixa o suficiente".

O que é que o Técnico tem?

Ter o carimbo do Instituto Superior Técnico no currículo é visto com bons olhos no mercado de trabalho que se desenrola no estrangeiro. De acordo com o inquérito do IST a que são submetidos os alunos quando entram em Engenharia Aeroespacial, o facto de as médias serem altas não foi de todo o fator mais preponderante para a escolha deste curso. Foi, isso sim, a “competência” dos professores que lecionam neste polo da Universidade de Lisboa, mas também a possibilidade de fazer investigação, os programas de intercâmbio, a riqueza do currículo que se pode desenvolver nesta escola na Alameda. Os portugueses não envergonham ninguém lá fora: são “os nossos embaixadores”, como adjetiva o Professor Fernando Lau. No último ano na Holanda, João Almeida percebeu isso mesmo: “Havia projetos onde as duas equipas mais bem sucedidas eram compostas por alunos portugueses”.

Entender porquê é fácil, garante Miguel Mendes. “É um curso que desenvolve em nós uma capacidade de abordagem fora da caixa, que é uma mais valia em qualquer empresa. A formação cá pode ser comparada à dada em Delft ou Toulouse”, onde estão as duas universidades mais reconhecidas da Engenharia Aeroespacial. Mas há coisas a mudar, considera João Almeida.

"O Técnico é uma grande escola e dá uma grande preparação. Mas está um bocado formatada. É como um treinador de futebol que, para treinar os seus jogadores, os põe a correr numa caixa de areia. Os jogadores correm o dia todo na caixa e quando chegam ao campo correm imenso. Jogar à bola, isso logo se vê."
João Almeida, estudante no mestrado de Engenharia Aeroespacial

Em suma, quem entra no Técnico sai de lá e “consegue resolver qualquer problema que apareça à frente”. Falha é na prática, dizem os dois alunos, que contam que em Delft há um simulador de voo e até uma unidade curricular onde os alunos saem da escola para irem voar com o professor. “Podia aliviar-se um pouco a carga das cadeiras teóricas e transferir esse esforço para dar mais espaço às cadeiras práticas”, opina João. O coordenador do curso, Luís Campos, diz que a carga teórica de Engenharia Aeroespacial é parte da sua vantagem porque “a função de um engenheiro é calcular coisas, usar os princípios da física e da matemática para fazer coisas que a Natureza não fez“. Mas o Professor Fernando Lau garante que os docentes estão a trabalhar no sentido de encontrar mais parcerias com empresas, melhorar os laboratórios e desenvolver estágios para “colocar estes alunos em contacto com o mercado de trabalho” ainda antes de saírem da universidade”. Porque estes estudantes merecem: “Eles representam o melhor de Portugal”.

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