Um dos sonhos húmidos de qualquer crítico de música é poder produzir uma oração tão absolutista, tão desprovida de dúvidas, que do outro lado, o lado de quem lê, a reação só possa ser de absoluta recusa ou de crença quase cega no que acabou de ler. E nesse campeonato quase religioso de proferir absolutos talvez nenhuma expressão seja tão avessa ao questionamento quanto dizer, a propósito de uma banda ou de um artista: “E nunca mais a música foi a mesma”.
Um leitor atento e batido já se deparou tantas vezes com “E nunca mais a música foi a mesma”, e a respeito de tanta gente, que a única conclusão que pode tirar é que música passa a vida a mudar radicalmente. Mas este tipo de afirmações está logo à nascença prenha de um erro axiomático: a ideia de que a música é uma coisa, e depois surge o senhor A ou a senhor B e tornam-na noutra coisa.
Mas a música não é uma linha reta que ocasionalmente sofre um desvio; há diferentes estilos de música a acontecer em simultâneo, sendo que a maior parte dos quais nunca se cruzarão; por vezes cruzam-se num ponto dando origem a algo novo; ocasionalmente um dos fios torna-se predominante numa qualquer região, chega a mais gente, explode nas tabelas de vendas do mainstream.
[“Firestarter”, o single que levou os Prodigy em definitivo para o mainstream:]
Terão os Beatles mudado a música para todo o sempre? É verdade que houve milhares de bandas a seguir a eles que os imitaram, mas na essência eram uma cópia esbranquiçada e mais limpa dos blues e do r’n’b ao qual insuflaram o sentido melódico do vaudeville inglês; a grande inovação da banda de Liverpool ocorreu no estúdio (“Tomorrow never knows” é o melhor exemplo) ou, para ser mais preciso, na transformação do estúdio como um prolongamento da música, um instrumento extra.
Quando se fala em mudar a música pensa-se mais em termos de génio que em tecnologia – mas é a tecnologia que realmente altera a música: o aparecimento da guitarra elétrica simplificou as linhas de guitarra, levou a menos acordes e riffs mais redondos; a bateria tornou-se necessária para acompanhar o volume sonoro. Não haveria hip-hop sem sample e não haveria música industrial ou techno ou funk da favela sem o Roland 808 e as suas linhas de baixo sintetizadas.
E por vezes acontece que determinados instrumentos, máquinas e técnicas são adotados por um número suficiente de pessoas para se falar em “movimento”. Ali no início da década de 90 usou-se a expressão big beat para designar uma série de malta que combinava música eletrónica com atitude e som punk: os Prodigy, os Death in Vegas, os Chemical Brothers, os Underworld, todos foram certa ou erradamente qualificados como big beat.
Eram tempos confusos: a malta do rock fora ensinada a não dançar; a sua droga de eleição, além da erva, era a heroína – e de repente ali estava música com batida reconhecivelmente eletrónica, mas que não era house ou techno, com descargas elétricas mais próprias do rock, feita por gente que apreciava encher-se de MD e dançar até de manhã em raves ilegais em armazéns abandonados.
Isto era tão novo e estava tão longe da linhagem clássica do rock (a que ia dos Stooges aos Sex Pistols passando pelos Velvet Underground) que de repente encontravam-se semelhanças entre projetos radicalmente diferentes só porque tinham uma batida pesada e um tipo a berrar por cima. Até os Streets e os Propellerheads foram qualificados como big beat e pelo menos os segundos não tinham um miligrama da agressão dos Prodigy e estavam muito mais próximos da pop clássica.
Terá algum destes projetos mudado a música para todo o sempre? Mudaram certamente o consumo musical de uma geração (nascida nos anos 70, adolescente ou jovem nos 90s): num dia estava-se a ouvir Nirvana, no seguinte as Britney Spears deste mundo tomaram as tabelas de vendas e do nada quase toda a gente que ouvia a chamada música alternativa estava a gritar “Smack my bitch up”, um dos singles mais fortes de The Fat of the Land, dos Prodigy, que fez agora 25 anos.
O sucesso dos Prodigy não foi apenas “alternativo”: logo o primeiro longa-duração, Experience (de 1992) foi platina no Reino Unido (o que significa que vendeu mais de 300 mil exemplares), produziu cinco singles e marcou a chegada do universo das raves (até aí um fenómeno razoavelmente marginal) ao mainstream. Music for the Jilted Generation (de 1994) voltou a vender bem (esteve em primeiro lugar das tabelas de vendas do UK), e ainda foi nomeado para um Mercury Prize.
Sonoramente aproximou-se do que The Fat of the Land (de 1997) viria a ser: muito break-beat agressivo cruzado com malhas punk (não obrigatoriamente produzidas por guitarras); era um disco para dançar, mas dançar até não restar uma gota de suor no corpo e, pelo meio, andar à cabeçada e acabar nas urgências do hospital. Ao mesmo tempo, os vídeos dos Prodigy passavam inúmeras vezes na MTV (quando esta era relevante), e o que começara por ser uma parceria entre Liam Howlett (um DJ e teclista), Keith Flint (dançarino e vocalista), Leroy Thornhill (teclista e dançarino) e MC Maxim Reality, nascida no meio de uma rave, começou a aproximar-se de um fenómeno global. Talvez isto não tenha ficado claro: inicialmente os Prodigy eram quatro, um DJ que misturava break-beats com batidas techno, dois dançarinos e um MC – não estavam longe do que acontecia na génese do hip-hop, apenas que com outro tipo de batida.
[“Breathe”, outro dos singles que construiu o sucesso do álbum “The Fat of the Land”:]
Mas em 1997, quando The Fat of the Land chegou, os Prodigy eram outra coisa – havia cada vez mais vozes, afastando-os da cena estritamente dançável e acentuou-se um pendor ainda mais rock. “Smack my bitch up” contribuiu para o furor, ao ser apontado por organizações feministas como um exemplo do que a música não devia ser: “Smack my bitch up”, a frase que se repete, tanto pode significar bater numa mulher, ser intenso até ao limite ou chutar heroína. O mais provável é que apesar da linguagem crua os dois últimos sentidos fossem o que os Prodigy procuravam.
Não foram apenas as feministas que se insurgiram contra “Smack my bitch up” – os Beastie Boys consideraram a canção ofensiva para com todas as vítimas de violência doméstica. Mas os tempos eram outros e os Prodigy não estavam propriamente no negócio da consciência social – o que havia de punk e agressão neles era físico e hedonista. Eram uma banda (?) para nos fazer dançar e libertar o excesso hormonal. Não vieram ao mundo para fazer comentários sobre a monarquia ou o comportamento mais adequado em casa com as mulheres. Eram o equivalente a uma cuspidela de Johny Rotten com uma grande batida, mas sem particular consciência social, exceto uma identidade de rua.
Keith Flint dava voz a esse extraordinário pedaço de (e peço desculpa pela piada óbvia) incêndio que é “Firestarter” e foi com a edição de “Firestarter” em single que os Prodigy explodiram definitivamente – antes de mais foi o primeiro single da banda a atingir o 1.º lugar das tabelas de vendas do UK. O vídeo – que era basicamente Keith Flint num túnel abandonado de Londres – ajudava à imagem de perigo, de marginais, que os Prodigy construíam.
A assinalar a viragem para um som mais rock está o crédito de composição atribuído a Kim Deal (que foi dos Pixies e depois das Breeders): a guitarra que se ouve na canção foi samplada de “S.O.S”, uma canção das Breeders, que eram então um fenómeno no indie rock. Mas as Breeders nunca venderam como os Prodigy ou os Chemical Brothers – que em 1997 também se tornaram um fenómeno global graças ao seu 2.º álbum, Dig Your Own Hole (lançado dois anos depois da estreia, com Exit Planet Dust). “Hey Boy Hey Girl” terá sido o single mais conhecido de Dig Your Own Hole, mas “Let Forever Be”, “Out of Control”, e “Music: Response” também passavam em todas as pistas.
Neste momento da música ainda havia poucos espaços dedicados ao rock e os espaços legais dedicados à eletrónica primavam um pouco pelo azeite; mas de 1995 a 1997 ouvia-se “Firestarter” ou “Hey boy, hey girl” por entre paroladas como “Short dick man” ou “Mila”, de Netinho. Sim, os anos 90 foram confusos (muito, acrescente-se) e as tribos confundiam-se e misturavam-se, porque não havia a mesma variedade de locais noturnos com identidades bem definidas.
Este momento de revolução musical ficou circunscrito a esses dois anos, embora tenha aberto as portas ao estranho fenómeno da eletrónica alternativa casar com outros géneros e chegar ao mainstream. Os Prodigy – como os Chemical Brothers – continuaram a lançar discos, por vezes a fechar festivais, mas era como se demasiado cedo se tivessem tornado no revivalismo de si mesmos. Uma vez encontrada a fórmula, ficaram presos a ela e o que antes soava a identidade sonora começou a parecer aborrecido.
A parte mais triste desta história chegou a 4 de março de 2019, quando Keith Flint foi encontrado morto em casa, no que se julga ter sido um suicídio. Filho de uma família disfuncional que posteriormente se separou, Flint resolvia os seus conflitos interiores criando conflitos – o que o levou a ser expulso da escola. Teve uma série de trabalhos anódinos antes de se tornar uma estrela, mas era nas raves, a dançar a noite inteira, semi-nu, com o cabelo pintado, que se sentia livre.
Por um breve instante foi também capaz de levar essa liberdade ao mundo. 25 anos depois o que resta? Não há muitos herdeiros dos Prodigy (quanto muito os Sleaford Mods podem ser vagamente comparados), nem resquícios de revivalismo do big beat. Que, como todas as modas, também um dia terá o seu regresso durante um verão, antes de – como todas as revoluções – acabar a vida como uma nota de rodapé na história da música.