Quando Lionel Messi pisou um relvado como profissional de futebol pela primeira vez foi apodado de “novo Diego Armando Maradona”, tal como Saviola, Aimar ou Riquelme o haviam sido antes dele. No fim das carreiras, contudo, só Lionel havia erradicado o “novo” da descrição e alcançado aquele patamar em que a discussão é se o pupilo ultrapassou ou não o mestre.
Este tipo de comparação é profícua no desporto: na NBA, Kobe Bryant foi comparado a Jordan e hoje há quem se pergunte se Victor Wembanyama não terá o mesmo impacto revolucionário na liga que Lebron James teve: adolescentes que aparecem já como super-estrelas e com capacidades atléticas e técnicas tão acima dos restantes que nos perguntamos se não serão erros da física e da biologia.
Messi foi o novo Maradona, Wembanyama é o novo Lebron: como somos incapazes de imaginar o futuro, sempre que a visão de um humano desconhecido ou de uma obra com que nunca nos havíamos cruzado deixa a nossa retina acometida de um chilique, socorremo-nos do passado, comparamos, medimos. Isto não diz muito sobre o jovem Lionel Messi ou o recém-descoberto arquiteto ou o novo cineasta, antes confirma o Olimpo do passado: comparamos o novo com o que já pertence ao cânone.
Foi assim com Succession – a dado momento, já incapazes de inventar novos elogios para a série, resignámo-nos ao cliché e anunciámos a quem nos estava a ouvir que sim, Succession estava à altura de Wire ou d’Os Sopranos, cuja estreia sopra agora 25 velas (estreou-se na TV americana a 10 de janeiro de 1999), e se por acaso acharem estranho que uma estreia sopre velas, têm toda a razão: dormi pouco, estou cansado, foi uma imagem preguiçosa, que esperava que passasse despercebida.
Todas as disciplinas têm um momento fundador, ou pelo menos elegem um momento fundador num dado contexto histórico: Pelé é o melhor jogador de sempre antes da TV a cores; Maradona é o melhor jogador de sempre daquela época em que se podia dar porrada à vontade; Messi é o melhor de sempre da era dos dados e dos nutricionistas. Se dermos uma guinada para o cinema, De Sicca é o melhor de sempre da era do neo-realismo, Scorsese o melhor de sempre da época em que o cinema descobriu as personagens com recheio de mal, Kiarostami o melhor de sempre do realismo do terceiro mundo, etc.
Não é que não tenha havido grandes séries antes de Os Sopranos, mas o tempo é um assassino gélido e cruel, e quanto mais distantes estamos de uma era mais a esquecemos; quem dita o que é a melhor coisa desta semana tem entre 25 e 45 anos, as suas referências são as da sua juventude ou, quando muito, dos irmãos mais velhos.
Mas talvez a televisão seja uma exceção – antes de Carlin, nos anos 70, que comediante tinha arriscado ser desagradável? E mesmo assim, Carlin era um comediante isolado – foi preciso aparecer Seinfeld, no final dos anos 80 (mas já com cheiro a 90s) para que a comédia descobrisse que os protagonistas podiam ser cínicos, egoístas, auto-centrados e simplesmente incapazes de crescer moralmente.
Até então a televisão, por muito mais vista que fosse, era tida como um veículo artístico menor e artístico aqui é eufemismo: os conteúdos de TV serviam para vender anúncios; a assumpção era de que o público de TV – velhos, iletrados, pobres – não estava preparado para personagens complexas, vis, demasiado reais. Até Seinfeld e Os Sopranos aparecerem, as personagens principais tinham de ser maioritariamente simpáticas, aprenderem com os erros, serem capazes de criar empatia no público, levá-lo a identificarem-se com o rosto na TV.
Mas como é que se cria empatia com um chefe da máfia de Nova Jersey, de ascendência italiana, não muito bonito, capaz dos atos mais nauseabundos, eternamente sufocado por problemas: a memória de uma infância violência, uma mãe narcísica e doentia, uma relação com a mulher que invariavelmente envolve gritos e pratos de pomodoro a voar, um sobrinho drogado, mortes sucessivas e almôndegas por todo o lado?
A relação de empatia – e empatia é capaz de ser uma palavra demasiado forte ou, pelo menos, que esconde todo o horror que a personagem nos faz sentir – que estabelecemos com Tony Soprano parte exatamente da família: quase toda a gente cresceu em famílias complicadas, qualquer um de nós conhece alguém com um pai ou uma mãe particularmente difícil — e quem nunca teve problemas conjugais? O facto de James Gandolfini – o ator que fazia de Tony – não ser propriamente bonito e ter uma valente barriga ajudava: é como se pela primeira vez estivéssemos a ver alguém real na televisão, que falava com os palavrões que também usamos, que se vestia mal e vivia uma vida que não queria viver e não tinha controlo sobre as suas pulsões.
Retire-se a violência, o tráfico de droga, etc, isto é, retire-se o lado (chamemos-lhe) profissional da vida de Tony Soprano e ele podia ser um comum vareiro, um nativo de Mafamude, com um feitio particularmente explosivo e problemas de ansiedade. O facto de, apesar do seu poder, ser incapaz de se libertar dos traumas da infância também provocava esse efeito de reconhecimento – que é uma palavra mais apropriada para a relação que criamos com Tony do que empatia.
Por vezes acreditávamos que “o verdadeiro” Tony Soprano gostaria de voltar as costas à sua “profissão” e levar uma vida normal, mas esse verdadeiro Tony Soprano seria uma projeção nossa – em qualquer episódio era muito possível que segundos depois de pensarmos isto Tony estivesse a encomendar a morte de um adversário, ou mesmo de um familiar, a matar um tipo no intervalo de um passeio com a filha, a trair mais uma vez a esposa.
Ficou famosa a tirada de Larry David, criador de Seinfeld (juntamente com Jerry Seinfeld), segundo a qual a série de comédia que escreveram tinha apenas uma regra: “No hugging, no learning”, isto é, nada de emoções fáceis e bonitinhas, nada de personagens que aprendem com os seus erros e se tornam melhores. O mote é comum a Os Sopranos e a The Wire (apesar dos imensos e muito latinos abraços que são dados nos Sopranos): nenhuma das personagens desta série “aprende”; nenhuma se torna – para usar uma expressão vazia mas tão em voga — o seu melhor eu.
Ao invés, era-nos oferecida uma espécie de teia, da qual nenhuma personagem se conseguia libertar – por mais que Tony fizesse terapia e procurasse entender as razões dos seus ataques de pânico ou que a sua terapeuta o obrigasse a olhar para as raízes das suas reações violentas, tudo ao seu redor, desde que crescera, o encaminhara para aquela vida e ele apreciava o seu poder, agir como uma espécie de deus ex-machina que decide sobre a vida e a morte dos que o rodeiam.
Isto não é uma defesa de Tony Soprano, que era um psicopata, nem uma forma velada de o tornar vítima das circunstâncias, antes a simples tradução do que Os Sopranos (e Seinfeld e The Wire) mostravam: poucos de nós conseguem escapar aos ditames do meio em que crescemos. As ferramentas necessárias para alterar o que nos foi posto cá dentro em tenra idade são escassas, difíceis de adquirir e a maior parte de nós é razoavelmente impotente perante o seu próprio destino: daqueles miúdos que passavam droga em The Wire, quantos se safaram? Dos mafiosos que eventualmente ponderaram outra vida, quantos a alcançaram? Mesma a esposa e os filhos de Tony Soprano, que têm os seus momentos de rebeldia perante o jugo paternal, acabam por aceitar o que a realidade é: as cartas que te deram são estas, podes fingir que não são mas são e mais vale aceitares que são.
Nada disto existia na TV antes de Os Sopranos – sem Os Sopranos não teríamos hoje séries como Euphoria ou Succession: nenhum de nós estava preparado para tamanha imersão na realidade, na crueldade com que a vida se decide numa bala perdida ou na mudança de humor de um líder da máfia. O que os Sopranos fizeram foi tornar a TV adulta ao enchê-la de gente que pode ser o produto da imaginação de argumentistas mas é tremendamente real; o que os Sopranos fizeram foi respeitar a inteligência do espectador e acreditar que o espectador estaria interessado não em cliffhangers, não em lições de moral, mas no lento revelar das várias dimensões, incluindo a monstruosa, de uma personagem de uma complexidade extraordinária, que nos recorda que os monstros não andam por aí com uma etiqueta na camisa a dizer “Eu sou um psicopata”. Não, os monstros parecem-se tremendamente connosco e não fazemos puto de ideia se não seríamos iguais se as cartas que nos calharam em sorte fossem as mesmas. E como se não bastasse, os Sopranos disseram o que tinham a dizer e, ao contrário do que é comum nas séries de sucesso (arrastar a coisa temporadas a fio até à decadência, só para sacar mais uns guitos), quando disseram o que tinham a dizer fecharam abruptamente a cortina, foram-se embora, sem laçarote no presente, sem final feliz, sem final.
Há um antes e depois de Maradona e de Messi, um antes e depois de Jordan, um antes e depois de Os Sopranos: é que com Os Sopranos fomos obrigados a sermos crescidinhos, a olhar para dentro da sarjeta e a ter estômago para aceitar que o mundo é isto e provavelmente, mesmo que na aparência assuma formas diferentes, nunca deixará de o ser.