Os vencedores
António Costa
Chegou ao debate do Estado da Nação cercado por todos os lados. O país a arder, caos nos hospitais, inflação galopante, tensão social crescente e uma crise inexplicável no interior do Governo, depois do folhetim em torno do novo aeroporto escrito e protagonizado por Pedro Nuno Santos, um dos ministros mais influentes do Governo e um dos grandes candidatos à sua sucessão. Não faltavam, por isso, argumentos para atacar António Costa e fragilizar ainda mais um Governo que, apesar de absoluto, parecia desnorteado depois de escassos seis meses de governação.
Apesar de tudo isto, Costa teve um passeio no parque esta tarde. Não porque tenha inovado nos argumentos que levou para o Parlamento, não porque tenha apresentado grandes soluções para os muitos problemas que tem pela frente, não porque se tenha preocupado em responder às perguntas que lhe foram colocadas (não respondeu), mas porque os seus adversários tiveram desempenhos particularmente infelizes esta tarde. Como cereja no topo do bolo ainda conseguiu embaraçar a nova liderança da bancada parlamentar do PSD e, por arrasto, fragilizar Luís Montenegro, daqui em diante o seu maior adversário à direita. O líder socialista não poderia ter pedido mais.
João Cotrim Figueiredo
Sem ter uma intervenção de antologia, João Cotrim Figueiredo conseguiu ter mais eficácia do que outros provocadores habituais (como André Ventura) na ação de desviar Costa do guião que trouxe para o debate. O líder da IL conseguiu levar o primeiro-ministro a dizer: “O país está pior do que no ano passado”. Num debate em que Costa quase não cometeu erros, já foi uma vitória.
Esta tentativa de retirar o primeiro-ministro do sério foi ainda mais eficaz quando Cotrim levou o primeiro-ministro a fazer uma generalização que fica mal a um chefe de Governo: Costa acabou a sugerir que os militantes e votantes da IL não conhecem o país real: “Ó senhor deputado, eu não sou da Iniciativa Liberal, eu conheço bem as necessidades dos cidadãos”. Numa tarde em que os partidos mais pequenos tiveram dificuldade em fazer cócegas ao Governo (com exceção do BE, que irritou Costa), Cotrim marcou pontos por ter conseguido fazer António Costa, embora de forma controlada, desviar-se da linha que tinha traçado no chão.
Catarina Martins
A coordenadora bloquista quis provocar António Costa com o caso dos apoios do Banco do Fomento ao empresário Mário Ferreira. E conseguiu. O primeiro-ministro ficou irritado com a questão feita por Catarina Martins e classificou-a mesmo de “pergunta insultuosa”. “A minha intervenção é zero, como muito bem a senhora deputada sabe”, disse o primeiro-ministro, agastado com a pergunta.
Quando António Costa não quis responder a 17 deputados que lhe fizeram pedidos de esclarecimento, Catarina Martins foi a primeira a protestar e de uma maneira mais dura que a destacou dos restantes: “Esta recusa em responder é um sinal do estado da maioria absoluta e ainda só passaram 100 dias desde que o Governo tomou posse”. O Bloco está cada vez mais discreto nos debates, por força de uma bancada reduzida, mas teve a proeza de irritar o timoneiro da antiga geringonça.
José Luís Carneiro
Até ao dia 16 de julho, de acordo com os últimos dados do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), já arderam mais hectares (40.521 no total) do que em todo o ano de 2021. Outra perspetiva: em termos homólogos, ou seja, até ao dia 16 de julho, a área ardida em 2022 é a maior desde o trágico ano de 2017. A situação é preocupante e inspira cuidados, sobretudo porque o verão está muito longe de terminar. José Luís Carneiro, o novo ministro da Administração Interna e responsável político pelo combate, é, por tudo isto, um dos que está em situação mais delicada.
Seria de esperar, por isso, que os vários partidos aproveitassem o debate para pedir responsabilidades aos socialistas, exigir respostas e confrontar o Governo (o mesmo que estava em funções no já referido ano de 2017) com a realidade que existe no terreno. No entanto, ainda que o tema tenha sido abordado, nenhum dos partidos conseguiu pressionar de facto António Costa com aquela que é uma das maiores fragilidades do Governo neste momento. Carneiro salvou-se porque ninguém lhe quis bater. Dado o contexto, só pode encarar esta tarde estranhamente tranquila como uma vitória.
Pedro Nuno Santos
Foi o grande responsável pela inopinada (e até agora inexplicável) crise no Governo. Teve o lugar por um fio. De acordo com relatos que saíram na comunicação social, foi indiretamente convidado a sair do Executivo. Quis ficar e Costa deixou que ficasse para não o ter à solta. O preço a pagar: dar uma conferência de imprensa (sem direito a perguntas dos jornalistas) em que fez um mea culpa de que não há memória na política portuguesa. Saiu – assim indicam as sondagens – muito fragilizado de todo o episódio. Pedro Nuno Santos era, por isso, uma presa fácil para a oposição.
Passou, de forma surpreendente, por entre os pingos da chuva. À exceção de umas considerações avulsas, ninguém na oposição se lembrou, aparentemente, que está ali um dos calcanhares de Aquiles do PS, não só porque representa uma fragilidade do Governo (o dossiê está longe de estar resolvido) mas também porque pode condicionar a discussão sobre o futuro do PS — atacar o pedronunismo é atacar o presente e o futuro do partido. Contas feitas, Pedro Nuno sai vencedor porque poderia ter sido trucidado — e não foi.
Vencidos
Luís Montenegro
Mesmo sem estar presente no hemiciclo, era sobre ele que recaíam todos os olhares. Era, mesmo que indiretamente, o primeiro grande teste da nova liderança social-democrata. Luís Montenegro, que fez questão de estar no Parlamento durante a tarde, chegou a este debate galvanizado pela vitória esmagadora nas diretas, empurrado por um Congresso bem conseguido, animado com o período particularmente difícil que o Governo atravessa e encorajado por sondagens que, não sendo brilhantes, trouxeram sinais positivos. Mesmo sem ter tido um papel ativo no debate, o resultado não foi feliz.
E não foi feliz porque a grande responsabilidade pela escolha de Joaquim Miranda Sarmento para novo líder parlamentar (ver abaixo) é de Luís Montenegro, que dispensou Paulo Mota Pinto (eleito com uma votação quase norte-coreana e último rosto do rioísmo) sob o pretexto de imprimir um cunho próprio também na Assembleia da República. A estreia pouco conseguida daquele que chegou a ser conhecido como o “Centeno de Rio” acabou por contaminar também a primeira oportunidade de afirmação de Montenegro.
Prova disso é que, apesar de não estar inicialmente previsto, o novo líder social-democrata decidiu falar aos jornalistas antes mesmo de deixar o Parlamento — era preciso fazer contenção de danos. “As intervenções do PSD centraram-se na substância. A isso o senhor primeiro-ministro decidiu responder com o folclore parlamentar. Pode divertir-se com o folclore parlamentar, mas isso não resolve o problema dos portugueses”, tentou compensar Montenegro.
Seja como for, todos os sinais contam sobretudo porque o novo líder do PSD terá de responder à bitola que definiu para Rio: se sempre argumentou que o antecessor era incapaz de fazer oposição firme e clara a António Costa, então tem de mostrar que, com ele, o partido, dentro e fora do Parlamento, é capaz de o fazer. Esta tarde, o PSD de Montenegro não conseguiu ser muito diferente do PSD de Rio.
Joaquim Miranda Sarmento
Mesmo sem grande experiência como parlamentar, Joaquim Miranda Sarmento foi escolhido como símbolo genuíno da vontade de unir o partido por parte de Luís Montenegro e por lhe associarem um perfil de credibilidade e de moderação que o novo partido quer imprimir no Parlamento – até por oposição à bancada vizinha do Chega. Depois de ter tido uma falsa partida com a eleição – um score muito tímido e alguns embaraços na escolha da equipa — existia muita expectativa para perceber como se comportaria Joaquim Miranda Sarmento naquele no primeiro frente a frente com António Costa. A prestação não foi brilhante – longe disso.
O novo líder parlamentar decidiu jogar na sua zona de conforto (a economia), fez acusações duras ao Governo (os socialistas estão a “esconder austeridade” e a empobrecer o país), desafiou o Governo a devolver aos portugueses o que está a ganhar e ensaiou um ou outro soundbite: “Se o PS fosse tão bom a governar como na propaganda e nas parangonas para os jornais, Portugal era um dos países mais ricos do mundo”. O ponto estava cumprido.
O que Miranda Sarmento não esperava, porventura, era a entrada a pés juntos de António Costa. Além de se ter enganado várias vezes no nome do adversário (resta saber se de forma propositada ou não), o primeiro-ministro pegou numa das obras publicadas pelo social-democrata sobre economia e finanças, escolheu a dedo algumas propostas mais disruptivas (IRS mínimo de 40 euros para os 2 milhões e meio de portugueses que estão isentos, por exemplo), retirou-as do contexto e colou-as ao papão neoliberal atribuído à herança passista. “Este é o pensamento económico e fiscal do velho novo revelho PSD”, despachou Costa, para gáudio dos socialistas.
Na bancada social-democrata, muitas das figuras associadas à anterior liderança riam a bom rir. Entre os apoiantes da nova liderança, era indisfarçável algum embaraço. Miranda Sarmento ainda agradeceu a publicidade de Costa a um dos seus livros pedindo, ao mesmo tempo, “honestidade intelectual” ao primeiro-ministro. No final, faria uma última intervenção, onde repetiria algumas críticas e acrescentaria outras. Mas o estrago era irremediável: o novo líder parlamentar aprendeu da forma mais dura que, neste tipo de debates, não existem vitórias se a componente cénica não estiver ensaiada.
André Ventura
O líder do Chega é, no sentido literal, a voz que fala mais alto no hemiciclo, mas o modus operandi de criar incidentes e mini-incidentes parlamentares já não traz grande novidade. No início do debate, teve mais uma derrota: os restantes partidos validaram a decisão de Augusto Santos Silva de não aceitar a proposta do Chega que pretendia aumentar a pena máxima para 65 anos em crimes de homicídio de “especial censurabilidade ou perversidade”.
Ainda atirou a Rui Rio, por ter sido elogiado por Costa. O que é um tiro ao lado, uma vez que o ex-líder do PSD já não conta para o campeonato. Ventura voltou também a pedir a demissão da ministra da Saúde, Marta Temido, mas essa fórmula (de pedir a demissão de um governante) foi banalizada pelo próprio Chega. É como a história do Pedro e do Lobo: quando é a sério, já ninguém liga.
Há duas semanas, com a moção de censura apresentada ao Governo, conseguiu ser a figura principal do debate. Desta vez, não.
Jerónimo de Sousa
Para usar linguagem de Jerónimo: o tiro saiu pela culatra. O secretário-geral do PCP quis dizer a Costa, mais uma vez, que a situação económica débil do país é a prova de que o PCP tinha razão quando, no final de 2021, não quis viabilizar o Orçamento do Estado para 2022.
As eleições que resultaram dessa inviabilização foram catastróficas para o PCP, nas urnas. A juntar a isso, de acordo com as sondagens, as posições do partido sobre a Guerra da Ucrânia tem acelerado uma potencial trágica fuga de eleitorado. E Costa quis utilizar este ‘calcanhar de Putin’ contra Jerónimo.
O primeiro-ministro lembrou que a culpa das piores condições de vida no país não é do OE, mas da inflação desencadeada por uma guerra em que houve “violação do direto internacional” por parte da Rússia. É o primeiro Estado da Nação, em seis anos, a que o PCP não chega sem ter tido influência na governação na sessão legislativa em curso. A prestação que teve no debate foi, como o peso que tem atualmente na governação: poucochinho.
O elogiado
Rui Rio
Discreto, na quarta fila e sem gravata. Rui Rio não pediu para ser protagonista, mas António Costa deu-lhe essa honra. Ainda antes do debate do Estado da Nação começar, o primeiro-ministro, que acabara de se acomodar, levantou-se da bancada do Governo e foi ao lado direito do hemiciclo cumprimentar simpaticamente o ex-líder do PSD.
Juntos tentaram dois acordos de regime (descentralização e fundos europeus) e só se afastaram quando Rio pensou que podia chegar lá, ao poder, nas legislativas de janeiro. Costa devolveu a cortesia do estilo de oposição de Rio ao deixar-lhe um rasgado elogio pelo “contributo” que deu ao país em “momentos tão duros e difíceis”, como a pandemia.
Rio, a quem resta agora defender o seu legado como líder da oposição, ouviu Costa a validar as qualidades que o próprio Rio coloca nas suas auto-avaliações: sentido de Estado e dar prioridade ao interesse nacional.