O movimento Space Age dos anos 1960 não teria sido o mesmo sem a imagem de Jane Fonda em “Barbarella”. O famoso cabelo a cair-lhe em cascata sobre os ombros, as roupas reveladoras com cortes futuristas, construídas a partir de materiais como metal e plástico. Foi uma revolução estética sem precedentes no cinema, que espantou as audiências, fascinou gerações. Isto é o mesmo que dizer que a era por excelência da contracultura não teria sido a mesma sem Paco Rabanne. O criador de moda morreu esta sexta-feira na sua casa, na região francesa da Bretanha, aos 88 anos.
Se em 2023 o seu nome é quase sinónimo de perfume, há cerca de 60 anos o espanhol natural do País Basco estava a agitar as águas na criação de moda, a surpreender o mundo com técnicas que transformaram o metal em rede, criações que atraíram algumas das grandes musas do seu tempo, Brigitte Bardot, Audrey Hepburn e Elizabeth Taylor incluídas.
A sua primeira marca de moda chegou com um estrondo, quando apresentou o desfile “12 Unwearable Dresses in Contemporary Materials” (“12 vestidos inutilizáveis em materiais contemporâneos”) no Hotel George V, em Paris. Estávamos em 1966 e Rabanne tinha 32 anos. O sucesso foi rápido a chegar e os críticos acolheram-no com entusiasmo, louvaram a sua técnica inovadora. Foi mesmo um dos cocriadores da Space Age de que falávamos na entrada (André Courrèges e Pierre Cardin também têm este mérito), uma vertente estética da década de 1960 influenciada pela ida do homem ao Espaço. Surfou a onda de uma revolução de pensamento que se estendeu à moda, a par da libertação sexual das mulheres.
Paco Rabanne, o extraterrestre que chegou à Terra há 78 mil anos
Para Coco Chanel, Rabanne era “o metalúrgico da moda”. Para a imprensa, foi o enfant terrible. Mas, quando se afastou da Alta Costura em 1999, já tinha sido carimbado com a alcunha “Wacko Paco” (ou “Paco maluco”, em tradução livre), graças às declarações insólitas que repetia em entrevistas ou escrevia nos seus livros — publicou vários. Assassinou Tutankhamon numa vida passada em que foi um padre egípcio, para começar, mas também foi visitado por extraterrestres. Aliás, Paco Rabanne alegava ser ele próprio um extraterrestre, vindo do planeta Altair há 78 mil anos. Esta seria a sua última vida na Terra, dizia, segundo o The Guardian, uma vez que o Anticristo estava vivo e a viver em Londres.
As suas previsões apocalípticas inspiraram precisamente essa retirada da moda e também da capital de França. Num dos livro que publicou, “1999: Le Feu du Ciel” (ou “1999: O Fogo do Céu”, em tradução livre), escreveu sobre a queda da estação espacial Russian Mir sobre Paris durante o eclipse de 11 de agosto desse mesmo ano, que resultaria na destruição da cidade. “Só um homem maluco se aproximaria de Paris quando a Mir cair”, declarou, citado pelo Independent. “Vai causar devastação total e milhares de mortes.” Esta crença, explicou na altura, baseava-se numa das várias previsões de Nostradamus.
As origens do visionário rebelde
Paco Rabanne é o pseudónimo de Francisco Rabaneda Cuervo, nascido no País Basco em 1934. O pai, um coronel republicano, foi fuzilado por tropas franquistas durante a Guerra Civil, em 1936. Foi esse episódio que motivou a fuga da família para a região da Bretanha, em França, quando Rabanne tinha 5 anos. A mãe foi costureira-chefe do atelier de Cristóbal Balenciaga, em San Sebastián. Também ele espanhol, tornar-se-ia um dos grandes mestres da Alta Costura em Paris. Em jovem, Paco acabou por ser seu aprendiz, graças à mãe. “Foi ela que me introduziu o gosto pela rebeldia”, declarou o criador.
Em criança, tinha visões e dizia conseguir conectar-se com as suas vidas passadas. Quando tinha 17 ou 18 anos, começou a estudar Arquitetura na Escola Nacional das Belas Artes de Paris, cidade para onde se mudou na mesma altura, em 1951. Ao mesmo tempo, desenhava botões e peças de joalharia para criadores como Christian Dior, Elsa Schiaparelli, Yves Saint-Laurent, Pierre Cardin, Hubert de Givencgy, Balenciaga e Roger Jean-Pierre, um joalheiro fornecedor da Alta Costura. Já aí gostava de experimentar com materiais inovadores: a sua primeira coleção de joalharia foi feita de rodóide, um material plástico, leve e transparente, composto de acetato e celulose.
Apresentou as suas primeiras criações de moda aos 30 anos. Em 1965, adotou o seu famoso pseudónimo Paco Rabanne, que teria alegadamente um significado secreto em egípcio. Um ano mais tarde, chegaria o desfile que lhe valeria notoriedade imediata em Paris, “12 Unwearable Dresses in Contemporary Materials”. Eram criações pouco convencionais, onde fazia uso de materiais como papel, plástico, tecidos à prova de fogo e metais, incluindo ouro.
Esta estreia foi recebida com um misto de choque, desaprovação, curiosidade e fascínio, e atraiu a atenção da imprensa internacional. Foi dos primeiros desfiles de moda com música (“Le marteau sans maître”, de Pierre Boulez, estava na playlist) e dos primeiros que recrutou modelos negras. Dois meses mais tarde, apresentou o primeiro desfile-espetáculo da história da moda, uma coleção de verão que onde as bailarinas do cabaret Crazy Horse desfilaram pela passerelle.
A minissaia de 32 quilos (e outras criações)
“A criação é choque”, disse uma vez. Originalidade e audácia nortearam sempre o seu caminho. Deu o corpo às balas dos entendidos da indústria, porque já sabia que os iria escandalizar com a sua coleção de estreia, em que enviou para a passerelle manequins brancas e negras seminuas e descalças, este segundo fator motivado pela falta de dinheiro para lhes comprar sapatos e não necessariamente por uma escolha intencional. Apresentou ao mesmo tempo uma minissaia de metal que pesava 32 quilos e foi o pioneiro da moda de utilização única.
Ainda em 1966, criou um vestido descartável, feito a partir de um tipo de papel suave, à prova de fogo. Em vez de costurado, era montado recorrendo a um aparador para projetos de arquitetura — não fosse esse o seu background. Era moda instantânea, cada vestido criado em apenas três minutos e vendido num envelope. Rabanne chegou a planear distribuí-los em máquinas de vending em aeroportos e estações de transportes públicos. As suas ideias estenderam-se a peças de roupa esculpidas, pele de animal tricotada, malhas de alumínio e até um vestido feito de cimento, em 1995.
Peggy Guggenheim, socialite, boémia e uma das mais reputadas colecionadoras de arte de Nova Iorque, foi uma das suas primeiras clientes. Françoise Hardy era sua fã e vestiu, em 1968, um icónico vestido de rede metálica criado por Rabanne. No mesmo ano, Brigitte Bardot recorreu ao criador para o figurino do videoclipe da música “Contact”, escrita por Serge Gainsbourg. Também foi nesse ano que Jane Fonda usou as suas criações futuristas em “Barbarella”.
Foi a sua era dourada. Em 1969, voltou a virar-se para os acessórios, aplicando a sua perspetiva avant-garde na criação de uma das suas peças de assinatura, uma carteira feita de rede metálica. A estrutura da técnica por que se tornou tão famoso era uma referência às armaduras da Idade Média, uma era cuja turbulência e violência ecoavam, de certa forma, o seu tempo. A icónica carteira chamava-se mesmo 1969 e era feita à mão.
Longe de ser consensual, Paco Rabanne inspirou fascínio desde cedo, mas os conservadores torciam-lhe o sobrolho. Entre eles estava Chanel, que lhe chamava “metalúrgico” com altivez, a famosa alcunha longe de ser um elogio. Isso não o impediu de conquistar reconhecimento pelo seu talento. Em 1971, acabou mesmo por ser admitido na prestigiada instituição francesa Chambre Syndicale de la Couture.
Os tão famosos perfumes
A associação à perfumaria surgiu ainda na década de 1960, quando se juntou ao gigante grupo espanhol Puig para criar à imagem da marca uma série de fragrâncias lucrativas. Lançou o primeiro perfume feminino, Calandre, em 1969. Paco Rabanne Pour Homme, o primeiro perfume masculino, seguiu-se em 1973. O material que tanto caracterizou as criações do espanhol acabou por merecer também a sua própria fragrância em 1979, chamada Métal. Foi feita “para as mulheres jovens que adoram acessórios de metal”, descreveu.
No final da década de 1980, a família Puig assumiu controlo da sua marca. Das referências XS ao 1 Million, passando pelo Lady Million, Invictus e Olympéa, 0s perfumes Paco Rabanne são hoje verdadeiros sucessos comerciais em tudo o mundo, alavancados sobretudo por campanhas publicitárias chamativas, que nos invadem as televisões com regularidade.
Entre 1999, quando se retirou da Alta Costura, e 2011, a Paco Rabanne existia apenas como marca de perfume. Foi em 2011 que as luzes dos ateliers se reacenderam, sob orientação criativa do designer indiano Manish Arora. Assumiu o cargo durante um ano. Seguiu-se Lydia Maurer por pouco tempo até que Julien Dossena entrou, em 2013. Ainda hoje é ele o diretor criativo da marca.
A misteriosa vida pessoal
Paco Rabanne nunca casou e levou uma vida frugal e disciplinada. Foi criador de moda, mas praticamente não comprava roupa e usava sobretudo casacos com um corte utilitário, o estilo pelo qual Mao Tsé-Tung também era conhecido. Não fumava nem bebia álcool. Passou grande parte dos seus anos em casas arrendadas e foi sempre generoso com o dinheiro, tendo doado em vida grande parte dos seus rendimentos, dos quais dizia não precisar. Nunca aprendeu a conduzir.
Também nunca se conformou com as expetativas do mundo da moda. Durante uma palestra que deu a alunos de uma escola secundária na cidade francesa de Brest, em 2010, disse: “Nem todos podem ser estrelas. Temos de saber ser espertos. O ponto principal é falarmos sobre nós, diferenciarmo-nos dos outros. Nunca sejam uma cópia.”