Há quase dois anos, Paul Feig confirmou, via Twitter, que sim, ia fazer um reboot de Caça-Fantasmas. E que sim, este ia ter protagonistas femininas. Não foi pacífico. Seguiu-se uma torrente de ódio vindo de todos os cantos da internet e dura até hoje. Até Donald Trump comentou o assunto num vídeo.
https://www.youtube.com/watch?v=clGuYPcim-g
Não se podia pegar num filme clássico, “O Caça-Fantasmas”, de 1984, com homens e pôr mulheres no elenco. Ia ser um flop e arruinar as infâncias de toda a gente – como se o “Caça-Fantasmas II”, a sequela de 1989 também realizada por Ivan Reitman não existisse. Seria de certeza mau – sem sequer estar acabado e sem ninguém o ter visto.
No início de 2015, o realizador pôs uma fotografia de Kristen Wiig, Melissa McCarthy, Leslie Jones e Kate McKinnon no Twitter. Iam ser elas as novas Caça-Fantasmas, substituindo Dan Aykroyd, Harold Ramis, Bill Murray e Ernie Hudson como um grupo de cientistas (e não só) que salvam Nova Iorque de uma invasão de fantasmas. Foram insultadas.
Ainda esta semana, Leslie Jones foi alvo de ataques racistas. Não foi só ódio, contudo. Aykroyd, Ramis, Murray, Sigourney Weaver e Annie Potts, do filme original, decidiram que iam aparecer neste para dar a sua bênção. Violet Ramis Stiel, a filha de Ramis, que entretanto morreu e cuja memória tem sido usada como justificação para ódio pelo novo filme, escreveu um texto sobre a aprovação que deu.
O filme chega aos cinemas portugueses esta quinta-feira. E falámos (pelo telefone, entre o lado de cá e Los Angeles) com Paul Feig, o realizador que também criou a mítica série “Freaks and Geeks – A Nova Geração” e assinou filmes como “Bridesmaids”, “The Heat” ou “Spy”.
Uma das protagonistas do filme e o vilão sofreram bullying. Mas ela tornou-se cientista e tentou ajudar os outros; ele decidiu vingar-se de toda a gente que o gozou e o fez sentir diferente. Depois há os críticos deste novo filme, é uma espécie de bullying, também…
É uma boa observação. Tenho sentimentos muito fortes quanto a bullying.
Já escreveu livros e criou séries de televisão sobre o tema.
Sim, odeio bullies mais do que qualquer outra coisa no mundo. Sempre que me meti numa luta na internet foi porque alguém decidiu ser agressivo com o meu elenco. Mas o que te molda de uma maneira ou de outra é como processas isso. Fui vítima de bullying em criança e usei isso para o bem, mas há muita gente que sucumbe. As pessoas estão a traçar paralelos entre a personagem do Rowan [o vilão] e o que nos aconteceu de formas que talvez fossem subconscientes para mim e para a Katie [Dippold] quando estávamos a escrever, mas parece ser algo verdadeiro.
Mas estavam sempre a pensar nisso? É que há uma parte em que as Caça-Fantasmas lêem ódio em comentários a um vídeo de YouTube, mas isso é algo que geralmente acontece às mulheres na internet, não algo que seja específico desta situação.
Foi consciente porque, obviamente, desde o segundo em que anunciei há dois anos que ia fazer este projeto com mulheres que tem sido um massacre. Quando disse que ia escrever o filme com a Katie ela começou a ser atacada. Estava definitivamente na nossa cabeça, mas não lhes queríamos dar poder. Sabíamos que queríamos atirar contra eles, dizer que foi isto que tivemos de levar e, como dizes, é aquilo com que as mulheres levam. E tem havido muitos exemplos recentes de mulheres a serem atacadas na internet por muitas coisas e isso não é bom.
São ataques que parecem vir de alguns geeks, um grupo que à partida teria um entendimento do que é não ser compreendido e poderia ter alguma empatia.
É uma questão muito importante para mim. Pus-me em sarilhos porque fui citado a falar da comunidade geek como um espaço cheio de idiotas. Foi a forma errada de dizer as coisas, porque tinha sido levado a isso por uma pergunta diferente. Tinham-me perguntado se os geeks tinham agora tanto poder que se tinham transformado nos idiotas. Se fores um verdadeiro geek não fazes nada disso.
Como o Paul.
Porque tens empatia, porque já passaste por isso. A razão pela qual estamos na comunidade geek é porque fomos vítimas de bullying, estávamos à parte e encontrámos um sítio onde fomos aceites. Acho que o bullying vem do facto de a comunidade geek gostar de coisas muito divertidas, como bandas desenhadas ou ficção científica e agora outros segmentos da população descobriram que isso é fixe. E dentro desse grupo há um conjunto de tipos que se apropriaram disso. Não os considero parte da comunidade geek. São tipos que estão a tentar colar-se às coisas de que gostamos e é provável que alegremente viessem a espancar qualquer um de nós por causa disso.
Por falar em diversão, algo que acontece sempre nos seus filmes é as pessoas parecerem todas estar a divertir-se muito. Este continua a ser assim, talvez à exceção do Neil Casey, que faz de vilão…
Os meus sets de rodagem são assim. Tudo o que tento fazer é montar uma experiência divertida quando estamos a fazer o filme e uma experiência divertida para o público que o vai ver. É isso que é mais complicado com esta controvérsia, os ataques fizeram com que não fosse divertido. O facto de nos termos tornado um filme “controverso” deixa-me doido porque é tão estúpido… É uma comédia sobre pessoas a tentarem apanhar fantasmas. Quero dizer, é ridículo. O facto de que se tornou algo político porque quis dar os papéis principais a quatro mulheres hilariantes só mostra o quão enganado este mundo está. Tenho de mencionar isto, porque há muita gente que fica apenas chateada por estarmos a tocar num filme clássico. E percebo isso.
Alguns artigos e comentários dizem coisas como “o Paul Feig diz que se não gostas deste filme és misógino”…
E continuam a dizer isso. Mesmo para quem está chateado com remakes e afins, eu digo: “Malta, o primeiro ‘Caça-Fantasmas’ foi feito para vos fazer rir”. E agora há esta coisa que anda por aí e é hilariante que é “O ‘Caça-Fantasmas’ não era uma comédia”. É outra maneira de nos atacarem, porque estamos a tentar ter demasiada piada. Desisto. Não consigo. Vão ver o filme ou não vão ver o filme, mas é divertido. Estas mulheres têm tanta piada. É só uma boa ida ao cinema. Tu viste o filme, é divertido até ao fim, nos créditos há gente a dançar.
Há poucos papéis bem escritos para mulheres?
Sabes qual é o problema da comédia? Tem sido um clube só para rapazes. E muitos de homens não percebem as mulheres e não passaram tempo com mulheres fora de relações românticas como um casamento ou um namoro. Homens, no geral, não tendem a passar muito tempo com mulheres como amigas. Alguns destes homens passam tempo com os amigos para evitarem os cônjuges. Há tantos argumentistas de comédia televisiva que gostam de passar tempo na sala dos guionistas para evitarem estar em casa… E por isso não acho que os homens tenham uma noção muito viva do que as mulheres são, depois escrevem estas versões bonitas e unidimensionais. Às vezes é uma vingança contra as mulheres da vida deles. Ou então escrevem sobre quem seria a mulher perfeita, que gostaria de tudo aquilo de que eles gostam. Temos de escrever estes papéis para as mulheres os poderem fazer, mas se forem só mulheres a escrever tudo também não vamos ter uma visão abrangente. Homens e mulheres a trabalhar juntos, a falarem uns com os outros e a criarem um sistema. Uma mulher pode escrever uma versão estereotipada de um homem e um homem pode escrever uma versão estereotipada de uma mulher, mas juntos podem fazê-lo ainda melhor.
Por falar em dança, o Michael K. Williams [o “Omar” na série “The Wire”] era dançarino antes de ser ator. Nunca o tinha visto ter tanta piada em lado nenhum como neste filme.
Foi um sucesso. Descobri os talentos latentes de tanta gente. O Chris Hemsworth [o ator australiano que faz de Thor nos filmes da Marvel], por exemplo.
É o prazer de ver gente que não sabíamos que tinha piada, ou que não costuma ter piada, a tê-la.
Como o Andy Garcia. Vê o que ele faz. Ele começou a carreira como alguém ligado à comédia. Pertencia a uma trupe de sketches de comédia de improviso. O que acontece é que as pessoas não costumam ter a oportunidade de demonstrar essa capacidade. Se eu vejo que há uma centelha em alguém que tem piada, é divertido para mim soltar isso nela. Como o Jason Statham no “Spy”. Adoro pessoas a divertirem-se com elas próprias. A maior capacidade que precisas de ter para ter piada é não agir como se tivesses piada. E é aí que muita gente cai. “Quero aparecer numa comédia por isso vou ser louco!” e depois não tens piada, estás só a tentar ter piada. Os atores têm de ter a capacidade de ou serem eles próprios ou de gozarem com eles próprios ou interpretarem as personagens de uma forma bastante séria e honesta. Como o Chris. Ele fez o papel completamente sério, mas a inventar piadas hilariantes que pareciam jorrar de quem ele é e de quem a personagem dele era. Por isso é que a Rose Byrne [de “A Melhor Despedida de Solteira” e “Spy”] é uma mestre tão grande.
Desde “A Melhor Despedida de Solteira” que todos os seus filmes são protagonizados por mulheres, todas com mais de 30 anos e não abertamente sexualizadas de uma maneira estereotipada. É algo que faz conscientemente?
Sim, é. Porque já houve um milhão de histórias sobre mulheres à procura de um homem, a encontrarem um marido ou a felicidade através de um homem. E eu adoro mulheres profissionais. Vivo rodeado por elas desde sempre e vejo o quão felizes são com aquilo que fazem e aquilo por que passam e algumas delas têm famílias e conseguem ter carreiras e felicidade familiar ao mesmo tempo. E Hollywood parece sempre dizer-lhes: “Têm de escolher ou um ou o outro”. E não quero mostrar essas representações. Tento contar histórias de profissionais que lidam com as suas carreiras e adversidades, que tentam subir na hierarquia e fazer aquilo em que são boas. Isso é universal e um homem pode ver e pensar “eu passei pelo mesmo”. Para mim é contar histórias de uma forma mais democrática. Mulheres tridimensionais da maneira que os homens têm sido tridimensionais no grande ecrã desde o início dos filmes. É altura de haver alguma igualdade.
Como foi trabalhar com o Bill Murray, um herói de infância? Nunca o tinha visto tão bem vestido num filme, e sei que isso vem claramente da forma como o Paul se veste.
Inclinei a cabeça quando estávamos a ver o filme acabado e só aí é que me ocorreu que faço todos os homens vestirem-se como eu. Trabalhar com ele foi tão bom quanto assustador porque quando o teu herói aparece no set tudo o que queres fazer é não parecer parvo em frente dele. Ele tem-nos apoiado tanto desde o primeiro dia e eu sabia que ele tinha gostado do papel quando leu o guião, mas não fazíamos ideia se ele ia ou não aparecer. Cheguei a pensar num plano B. Mas como é que se contrata um ator para isso? Queria alguém conhecido para esse papel, como é que contrato uma pessoa famosa e digo: “OK, o papel é teu, mas se o Bill Murray aparecer estás despedido?”
Acho que muita gente aceitaria isso.
A dada altura, disse: “Se ele não aparecer, faço eu o papel”. À espera de que não acontecesse. Ele apareceu e foi tão gracioso e tão investido em jogar em equipa, só queria servir a história e as minhas quatro atrizes. Foi um deleite. Foi das melhores experiências que tive, mas estava tão stressado porque continuava à espera de estragar tudo.
Com os filmes anteriores, o Paul fez testes públicos enquanto ainda estava a trabalhar neles, para saber o que tinha ou não piada e ir ajustando. Esse processo manteve-se aqui?
Sim, não consigo fazer um filme de outra forma. Este “Caça-Fantasmas” é um filme de alto orçamento, normalmente não se faz isto com este tipo de filmes porque isso quer dizer que tens de mostrar ao público e pode facilmente resultar em fuga de informação. Tive de forçar o estúdio a fazê-lo. Disse-lhes: “Eu não vos posso dizer o que tem piada ou não, posso dizer-vos o que acho que é uma versão com piada, mas temos de fazer testes todos os meses, como faço com os outros filmes, para irmos ajustando”. A ironia é que eles depois ficaram viciados nos testes. As pobres pessoas que foram ver tiveram de assinar acordos de confidencialidade e tirámos-lhes fotografias e ficámos com o Twitter delas. Preciso de seguir este método, caso contrário não consigo acertar na comédia.