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[este artigo foi originalmente publicado a 7 de dezembro de 2016, a propósito dos 75 anos do ataque a Pearl Harbor]
Os avisos
Às 3:42 do dia 7 de Dezembro de 1941, um draga-minas americano em patrulha junto á entrada do porto de Pearl Harbor avista um mini-submarino e chama o destroyer Ward. Após horas de busca infrutífera, às 6:45, o Ward localiza o mini-submarino, dispara contra ele, atira algumas cargas de profundidade, para se certificar de que o afundou, e transmite essa informação à Estação Naval de Pearl Harbor.
Às 7:02, os operadores de uma das seis estações de radar de Oahu detectam o que parece ser um enxame de aviões aproximar-se da ilha. Ao ser posto a par dessa informação, um oficial presume tratar-se dos 17 bombardeiros B-17 provenientes da Califórnia que eram esperados nessa manhã e diz aos operadores do radar para não se preocuparem.
Às 7:15 o relatório do Ward chega ao almirante Husband E. Kimmel, comandante da Esquadra do Pacífico, mas como nos últimos dias se têm multiplicado os falsos avistamentos de submarinos, aquele decide aguardar confirmação.
Durante a madrugada, um posto de escuta da Marinha dos EUA intercepta uma mensagem enviada de Tóquio para a embaixada japonesa em Washington. Os serviços de informação americanos tinham conseguido decifrar o código das mensagens diplomáticas japonesas, a que davam o nome de Purple (sendo Magic a designação para a informação obtida por esta via), mas a decodificação e tradução consomem algum tempo e só horas mais tarde os serviços de informações compreendem tratar-se de uma resposta japonesa à nota diplomática dos EUA solicitando ao Japão a retirada das suas tropas da China. A reacção japonesa, que o embaixador japonês deverá transmitir ao governo americano às 13:00 de Washington (7:30 no Havai) é a de abandonar as negociações, o que pode significar o estalar iminente do conflito.
O responsável pela secção do Extremo Oriente dos serviços de informações tenta contactar o chefe de Estado-Maior, o general George C. Marshall, mas este foi praticar equitação. Até se localizar Marshall e este ler a mensagem passam mais duas horas. Embora a mensagem não seja uma declaração de guerra formal nem mencione alvos nem datas, Marshall decide alertar o general Walter C. Short, comandante das forças americanas no Havai, mas não o faz pelas linhas de comunicação militares (telefone ou rádio), como seria natural – há quem sugira que por receio de intercepção japonesa, outros apontam para condições atmosféricas adversas às transmissões. A mensagem segue, incongruentemente, por telégrafo comercial. Chegará ao quartel-general no Havai às 11:45 (hora do Havai). O general Short só a lerá às 15:00, pois entretanto teve que enfrentar assuntos bem mais prementes.
Um pacato domingo de manhã em Pearl Harbor
São 7:48 na ilha de Oahu, no arquipélago do Havai. O dia amanhecera encoberto, mas as nuvens estão a dissipar-se.
No ar há apenas três aviões de patrulha norte-americanos e nenhum deles foi enviado para Norte, pois o foco mais provável de um ataque japonês está a sudoeste, nas Ilhas Marshall.
O porto alberga, desde que as tensões com o Japão começaram a intensificar-se, a Esquadra do Pacífico, usualmente estacionada em San Diego, na Califórnia. Os couraçados Arizona, California, Maryland, Nevada, Oklahoma, Pennsylvania, Tennessee e West Virginia, estão concentrados na “Alameda dos Couraçados”. Como as águas do porto são pouco profundas, julgou-se que não seria viável o uso de torpedos largados de aviões, pelo que se prescindiu de proteger os navios com redes anti-torpedo. Muitos marinheiros estão de licença em terra – é fim-de-semana – e o mesmo fez um terço dos comandantes dos navios. As perspectivas de cerveja e de umas horas na companhia de havaianas simpáticas deixaram muitos navios com a tripulação mínima: a bordo do destroyer Alwin, por exemplo, há apenas quatro oficiais, todos com o posto de guarda-marinha e nenhum com mais de um ano de embarcado.
Em terra, nos aeródromos, o receio de sabotagem levou a que os aviões fossem parqueados o mais próximo possível uns dos outros, para facilitar a sua guarda.
Muitas das baterias anti-aéreas não dispõem de munições e as chaves das caixas onde estas são guardadas estão com os oficiais de dia. Boa parte dos canhões e metralhadoras anti-aéreas nem sequer está guarnecida.
De repente, a quietude matinal é quebrada pelo ruído de aviões a baixa altitude, um deles num voo tão rasante que um oficial americano, furioso, se esforça por distinguir o número de identificação do aparelho para apresentar queixa à sua unidade. Mas as bombas e os torpedos começam a cair e o equívoco desfaz-se: é a primeira vaga, de 183 aviões, de um ataque japonês. Uma hora depois, chega nova vaga, constituída por 171 aviões.
Em contraste com a desorientação e estupor que reinam em terra e no mar, os pilotos japoneses sabem muito bem o que estão a fazer: conhecem os seus alvos – os espiões e o cônsul-geral no Havai tinham feito um levantamento exaustivo dos alvos e das rotinas dos militares americanos – e treinaram-se metodicamente durante meses para a missão.
A segunda vaga não tem tarefa tão facilitada quanto a primeira: a base está agora plenamente desperta, há nutrido fogo anti-aéreo e o fumo dos incêndios causados pela primeira vaga dificulta a identificação dos alvos. Mas isso não impede os aviões japoneses de continuar a semear a destruição. Esgotadas as munições, também a segunda vaga empreende o regresso aos seis porta-aviões de onde tinha partido, a cerca de 400 Km de distância. Ainda não são dez da manhã.
O rescaldo
O ataque de duas horas causou 2403 mortos e 1178 feridos. Entre as vítimas estão 68 civis. A maioria dos mortos – 2008 – são marinheiros e mais de metade destes pereceu a bordo do couraçado Arkansas, que foi atingido por uma bomba perfurante num depósito de munições e explodiu, matando 1177 marinheiros.
Dos oito couraçados da Esquadra do Pacífico, quatro foram afundados e quatro foram danificados; três dos oito cruzadores foram danificados e foram ao fundo três dos 30 destroyers. Nos aviões o rol é de 188 destruídos e 159 danificados. Serão precisas duas semanas para extinguir os últimos incêndios nas instalações portuárias e militares.
Em contrapartida, os japoneses perderam apenas 29 aviões e 64 aviadores, a que se somaram 5 submarinos-anões, que deveriam ter complementado a destruição vinda do ar mas que foram afundados ou encalharam sem conseguir fazer qualquer estrago.
A 8 de Dezembro, Roosevelt fez no Congresso um discurso histórico: “Ontem, dia 7 de Dezembro de 1941 – uma data que há-de marcar para sempre a história da infâmia – os EUA foram súbita e deliberadamente atacados por forças aéreas e navais do Império Japonês. Por muito tempo que seja necessário para rechaçar esta invasão premeditada, o povo americano, empregando legitimamente a sua força, há-de alcançar a vitória absoluta”. Horas depois, o Senado (por unanimidade) e a Câmara dos Representantes (com 388 votos a favor e um voto contra, da pacifista Jeannette Rankin) aprovaram a declaração de guerra ao Japão.
[O discurso de Roosevelt no Congresso a 8 de Dezembro de 1941]
Vale a pena atentar no subterfúgio hipócrita a que o governo japonês recorreu: a mensagem diplomática interceptada pelos serviços de informações americanos, continha instruções para que a embaixada japonesa em Washington apresentasse ao governo americano a declaração de abandono das negociações de paz com os EUA e a China, meia hora antes do início do ataque a Pearl Harbor. Já seria um procedimento traiçoeiro se se tratasse de uma declaração formal de guerra, mas o texto não poderia merecer tal classificação, pois tinha sido redigido de forma deliberadamente ambígua e nem sequer assumia tratar-se a ruptura de relações diplomáticas. Ainda assim, cria o governo japonês, daria a aparência de ter procedido com lisura, ao mesmo tempo que deixava os EUA sem tempo para reagir. Porém, esta torpe manigância fracassou de forma ridícula, pois a decodificação da mensagem pela embaixada e a sua tradução para inglês demoraram tanto que, quando o embaixador japonês a entregou, o ataque já começara.
[nota: o facto de o Japão e o Havai estarem em lados opostos da Linha Internacional de Mudança de Data, que corta o Oceano Pacífico pelo meridiano 180, pode gerar equívocos de calendário: quando eram 7:48 da manhã do dia 7 no Havai era já dia 8 no Japão]
O caminho para Pearl Harbor
Vale também a pena recordar os eventos que levaram a Pearl Harbor. Por vezes surgem vozes desculpabilizadoras da actuação do Japão, como se esta tivesse sido uma consequência inevitável das sanções impostas pelos EUA. Acontece que o Japão tinha vindo a conduzir uma agressiva política expansionista na China: em 1931 arrebatou a Manchúria, e a em 1937, invadiu a China, numa guerra conduzida com indescritível crueldade – a tomada de Nanking e o massacre de 40.000 a 300.000 civis chineses, em Dezembro de 1937, foi apenas o episódio mais mediático num conflito que, até 1945, custaria a vida a 10-20 milhões de civis chineses.
Aproveitando o facto de a França ter sido derrotada pela Alemanha e de o governo de Vichy ter escassa capacidade de resposta, em Setembro de 1940 o Japão atacou a Indochina Francesa, a pretexto de cortar fontes de abastecimento para as tropas chinesas que lutavam a norte contra os japoneses. Os franceses não opuseram grande resistência e os japoneses conseguiram impor a presença de 40.000 soldados no território, ainda que sem o ocupar, pois receavam as reacções das restantes potências. Porém, quando a Alemanha invadiu a URSS em Junho de 1941, o Japão, sentindo as costas quentes (e a URSS com toda a atenção focada a Ocidente), avançou para a ocupação completa da Indochina Francesa. Os EUA e a Grã-Bretanha retaliaram com sanções económicas – a que teve mais impacto sobre o Japão foi o embargo das exportações de petróleo e combustíveis refinados americanos, que representavam 75% do fornecimento japonês. Como escreve Andrew Roberts em A tempestade da guerra, os EUA “não tinham nenhuma obrigação legal ou moral de vender combustível para aviação de alto índice de octanas ou outros produtos petrolíferos a um império que […] os usaria para a opressão imperialista, tal como o embargo dessas vendas não dava ao Japão o direito de atacar os EUA”. O embargo americano foi acompanhado pela transferência da Esquadra do Pacífico de San Diego para Pearl Harbor e pela intensificação da ajuda à China. Porém, estas medidas, ao invés de moderarem o ímpeto expansionista japonês, tiveram o efeito de acicatar ainda mais a belicosidade dos “falcões” japoneses, que as entenderam como um sinal de que a prossecução dos seus desígnios imperialistas – a criação da hipocritamente denominada Esfera de Co-Prosperidade da Grande Ásia Oriental – passaria pela “remoção” dos EUA.
Outros Pearl Harbors
O ataque a Pearl Harbor era o mais importante da estratégia japonesa, mas esta incluiu ataques quase simultâneos, ou com apenas algumas horas de desfasamento, a outros alvos norte-americanos – nas Filipinas e nas ilhas de Guam e Wake – e britânicos – Singapura, Hong Kong e Malásia – e em quase todos se obteve surpresa. As horas decorridas após o ataque a Pearl Harbor não parecem ter sido aproveitadas para que americanos e britânicos elevassem níveis de alerta e tomassem medidas reactivas. Como escreve Antony Beevor em A Segunda Guerra Mundial, os pilotos japoneses que, às 12:20 do dia 8 de Dezembro, atacaram Clark Field, a principal base aérea americana nas Filipinas, “nem queriam acreditar na sua sorte ao encontrarem os alvos alinhados à sua espera. Ao todo foram destruídos 18 bombardeiros B-17 e 53 caças P-40. Metade da força aérea [americana] no Extremo Oriente tinha sido destruída no primeiro dia de combate”.
Já em Wake os americanos estavam preparados e repeliram o ataque – os japoneses viram-se forçados a regressar a 11 de Dezembro, com uma força muito mais substancial, que, ainda assim, enfrentou uma resistência obstinada.
A 9 de Dezembro, os japoneses ocupavam Bangkok, assegurando o domínio da Birmânia, e desembarcavam nas ilhas Gilbert.
A 10 de Dezembro seriam os britânicos a provar a pontaria dos pilotos japoneses: o couraçado Prince of Wales, um dos mais modernos e poderosos navios britânicos, e o cruzador de batalha Repulse foram atacados por 88 aviões japoneses e afundados. os japoneses perderam apenas quatro aparelhos. Nesse mesmo dia, começaram os desembarques japoneses nas Filipinas.
Em apenas três dias de guerra, o Japão averbara uma impressionante série de triunfos e assegurara o controlo de vastas áreas do Sudeste Asiático e do Pacífico, fazendo parecer modestos e vagarosos os triunfos da Blitzkrieg alemã.
O rescaldo de Pearl Harbor em segunda análise
Aparentemente, a marinha norte-americana sofrera um rude golpe, mas nas águas rasas de Pearl Harbor o afundamento de um navio não representava necessariamente o seu fim e, com excepção do Arkansas, os couraçados afundados foram postos de novo a flutuar. O Oklahoma, acabou por revelar estar demasiado danificado, mas o West Virginia e o California foram reparados e devolvidos ao serviço activo e o mesmo aconteceu com os restantes navios danificados. Na verdade, a maior parte dos couraçados da Esquadra do Pacífico eram navios antiquados, inferiores em velocidade, blindagem, defesas anti-aéreas e operacionalidade aos couraçados que os estaleiros americanos produziriam durante a guerra.
Um dos factores que impediu o ataque japonês de ter consequências mais pesadas foi o cancelamento da terceira vaga de ataque, que tinha como alvo os estaleiros de reparação naval e os gigantescos depósitos de combustível. Se tivessem sido destruídos, a base teria ficado inoperacional e o que restava da Esquadra do Pacífico teria sido obrigado a retirar para San Diego, deixando os japoneses de mãos livres.
Mas o comandante da esquadra japonesa, o almirante Chuichi Nagumo, estava inquieto por não saber onde paravam os três porta-aviões americanos da Esquadra do Pacífico e receava que os seus aviões lhe caíssem em cima. Com efeito, um acaso afortunado (para os americanos) fizera com que nenhum dos porta-aviões estivesse em Pearl Harbor na altura do ataque: o Saratoga rumara a San Diego, na Califórnia, para receber os seus aviões que tinham ficado em terra enquanto o navio era submetido a trabalhos de manutenção e modernização; o Enterprise rumara à ilha de Wake para entregar um esquadrão de caças e o Lexington rumara à ilha de Midway para entregar um esquadrão de bombardeiros em voo picado.
O almirante Yamamoto, comandante da armada japonesa, estava consciente do poderio americano e, consequentemente, era um opositor da guerra, o que o deixou numa posição delicada quando, 11 meses depois de ter assumido o cargo, em Outubro de 1940, o líder do grupo dos “falcões”, Hideki Tojo, se tornou primeiro-ministro do Japão. À medida que o governo japonês ia dando passos na senda da guerra com as potências ocidentais, Yamamoto exprimira as suas profundas reservas: “Nos primeiros seis a doze meses de uma guerra com os EUA e a Grã-Bretanha, farei o quiser e conseguirei vitórias atrás de vitórias. Depois disso, não tenho expectativas de sucesso”. Em Fevereiro de 1941 confirmaria esta perspectiva: “Depois de 1944, a marinha dos EUA pode confiar na vitória”. Não se tratava de um mero palpite, era uma convicção fundamentada por repetidas simulações e jogos de guerra realizados pelos estrategas da marinha e era partilhada pelo chefe de operações Tasuku Nakazawa: “Não temos nenhuma possibilidade de ganhar a guerra”.
Outras entidades que se entregaram a simulações e jogos estratégicos chegaram a conclusões similares, mas os “falcões” japoneses desvalorizaram-nas a todas, vendo-as como desligadas da realidade.
Quando se tornou evidente que o Japão iria mesmo entrar em guerra, Yamamoto acabou por resignar-se a preparar planos para a combater da melhor forma possível. Para ele, a única hipótese de triunfo japonês estaria num ataque maciço e sem aviso que debilitasse seriamente as forças americanas e depois atraí-las para um embate decisivo em posição de desvantagem. O que é difícil de explicar é que Yamamoto, apesar de saber que os porta-aviões americanos não estavam em Pearl Harbor no dia 7 de Dezembro, ainda assim mantivesse o plano inicial. À data, ele seria dos poucos a estar consciente de que a peça fulcral da guerra naval moderna não eram os couraçados mas os porta-aviões e, no entanto, prosseguiu com um ataque que, ao afundar e danificar os couraçados mas deixando incólumes os porta-aviões, nunca poderia ser o golpe decisivo necessário para que o Japão tivesse uma hipótese de sucesso.
As consequências do fracasso em eliminar os porta-aviões no ataque a Pearl Harbor tornar-se-iam evidentes em Junho de 1942, quando, ao tentar aplicar a segunda parte do seu plano – atrair a marinha americana para um embate decisivo em posição de desvantagem – dois desses porta-aviões, o Enterprise e o Lexington, reforçados pelo Yorktown (chamado à pressa do Atlântico), derrotaram uma força naval japonesa muito superior em número, na Batalha de Midway – que foi o ponto de viragem da guerra no Pacífico.
Atribui-se a Yamamoto esta frase, proferida a 7 de Dezembro de 1941: “Receio que não tenhamos hoje conseguido mais do que acordar um gigante adormecido e instilar-lhe uma terrível determinação”. Mesmo que seja apócrifa, é uma razoável descrição do que realmente viria a suceder.
Em 1939, os EUA tinham fabricado 2141 aviões de combate, enquanto o Japão fabricara 4.467 e a Alemanha 8.295. Em 1941, apesar de só ter entrado em guerra no último mês, os EUA já tinham chegado aos 19.433 aparelhos, contra 15.409 alemães e 8.861 japoneses. A produção diária de aviões de combate americanos em 1943 – 235 – superou o número de aviões destruídos em Pearl Harbor. O auge do esforço de guerra da indústria aeronáutica foi atingido em 1944, com os EUA a fabricar mais aviões (96.318) do que a Alemanha (40.593) e o Japão (28.280) combinados.
A guerra começara com 11 porta-aviões do lado japonês e 8 do lado americano, mas a capacidade dos estaleiros americanos era tão superior à dos japoneses que, em apenas quatro meses de 1944 os americanos lançaram à água mais porta-aviões do que os japoneses fizeram durante toda a guerra.
[Documentário de propaganda americano, de 1943, sobre o papel dos porta-aviões na Guerra do pacífico]
O inimaginável
A principal razão para a incapacidade dos americanos em reagir perante a acumulação de indícios de ataque japonês prende-se com a tendência da mente humana para trilhar os caminhos mais batidos – quando ocorre um evento fora do já conhecido é frequentemente rotulado, a posteriori, de “inimaginável”. É uma designação que costuma emanar de pessoas sem imaginação e que não são capazes de integrar na sua estrutura mental avisos mais ou menos óbvios. O mundo muda mas elas continuam a reger-se por mapas obsoletos.
A guerra aeronaval e a possibilidade de um ataque do ar poder causar sérios danos a uma esquadra eram realidades novas na II Guerra Mundial, mas um observador atento e sagaz deveria ser capaz de perceber as mudanças que estavam a acontecer. O ataque britânico contra a base naval italiana de Taranto, na noite de 11 para 12 de Novembro de 1941, usando apenas aviões-torpedeiros lançados do porta-aviões Illustrious, tinha sido elucidativo. Apesar da pouca profundidade das águas e de os aparelhos britânicos serem os lentos e obsoletos Fairey Swordfish, 21 aviões tinham conseguido afundar um couraçado, causar danos graves a dois outros e danos ligeiros a um cruzador pesado e dois destroyers, perdendo na operação apenas dois aparelhos.
Churchill teve o cuidado de enviar a Roosevelt “o resumo oficial da execução do raide de Taranto; Roosevelt enviou-o a Stark [almirante Harold R. Stark, chefe do estado-maior da marinha americana], que o passou a Kimmel [comandante da Esquadra do Pacífico], que o ignorou” (Andrew Roberts, em A tempestade da guerra). A 2 de Dezembro, o almirante Kimmel expressara o seu desagrado perante a incapacidade dos serviços de informação em saber onde paravam seis porta-aviões japoneses: “Estão a querer dizer que eles até podem estar a contornar Diamond Head [junto à entrada de Pearl Harbor] e vocês não sabem disso?”. Mas a suposição de Kimmel era uma mera figura de retórica, pois ele não era capaz de considerar seriamente que os japoneses eram capazes desferir um ataque devastador a 5.000 quilómetros do território japonês.
Já os japoneses parecem ter extraído importantes lições de Taranto: o tenente Takeshi Naito, um adido naval japonês em Berlim, deslocou-se expressamente à base naval italiana para elaborar um relatório e teria mais tarde uma reunião com o comandante Mitsuo Fuchida, o líder dos aviões que atacaram Pearl Harbor. Mas já antes de Taranto os pilotos navais japoneses andavam a testar o lançamento de torpedos modificados que fossem eficazes em águas rasas.
Pearl Harbor e as teorias conspirativas
A teoria conspirativa que sugere que o atentado de 11 de Setembro de 2001 contra o World Trade Center foi um “inside job”, maquiavelicamente preparado pelo Governo americano – ou por parte dele – e recorrendo a aviões teleguiados (contra o WTC) e a um míssil de cruzeiro (contra o Pentágono), a fim de ter um pretexto para invadir o Afeganistão e o Iraque, pode parecer descabelada e ultrajante à maioria das pessoas dotadas de um mínimo de lucidez. A teoria que defende que o Governo americano não foi o autor material dos atentados terroristas mas teve conhecimento deles com antecedência e nada fez porque aqueles lhe forneceriam o mesmo pretexto é um pouco menos retorcida, mas também não prima pela sensatez. No entanto, o surgimento deste tipo de teorias não foi surpreendente para quem conheça a história americana do século XX, pois o ataque a Pearl Harbor já tinha suscitado teorias conspirativas similares: o presidente Roosevelt, que estaria mortinho para se juntar a Churchill no conflito em curso na Europa, sabia do ataque japonês e nada fez para se opor pois este dar-lhe-ia um pretexto para se juntar à Grã-Bretanha na guerra à Alemanha, aliada do Japão, uma aspiração que tinha vindo a ser contrariada pelas forças pró-isolacionistas no Congresso e na sociedade americana.
O principal argumento em prol desta teoria estriba-se na inacreditável inércia da administração e das forças armadas americanas perante os indícios das intenções japonesas, deixando a base havaiana completamente à mercê do ataque. Porém, o facto de nada ter sido feito para dissuadir, evitar ou aparar o golpe – o que é uma realidade objectiva – não tem necessariamente de ser explicado por teorias conspirativas, pode resultar simplesmente de negligência e uma conjugação de coincidências desfavoráveis.
Em A guerra secreta: Espiões, códigos e guerrilhas 1939-1945 (recentemente editado em Portugal pela Vogais), Max Hastings escreve: “A surpresa sofrida pelos norte-americanos em Pearl Harbor foi tão grande como a da União Soviética com a Operação Barbarossa [a invasão alemã da URSS, a 22 de Junho de 1941] e igualmente imperdoável. Os seus cripto-analistas do Exército, liderados por Frank Rowlett, tinham conseguido um feito extraordinário ao descobrirem a cifra do Código Púrpura da diplomacia japonesa em Agosto de 1940. Nas semanas seguintes e nos dias que antecederam o ataque japonês ao Havai, os EUA tinham disponível informação sobre as iminência da guerra em quantidade praticamente equivalente à que teve Stalin antes do ataque de Hitler”.
A afirmação de Hastings tem algum fundamento mas é exagerada – um pecado em que incorre por vezes ao longo do livro mencionado. Os indícios disponíveis para os americanos provinham quase só da decifração das comunicações diplomáticas japonesas e surgiram muito em cima do ataque, enquanto Stalin fora repetidamente avisado a partir de múltiplas fontes e ao longo de meses (e bastar-lhe-ia ter lido Mein Kampf e ouvido os discursos de Hitler para saber das suas intenções quanto à URSS). Stalin, que ignorara os avisos relativos à Operação Barbarossa enviadas para o Kremlin pelo espião Richard Sorge, a partir da embaixada alemã em Tóquio, aprendera, da forma mais amarga, que Sorge estava bem informado e era fiável; no entanto, embora Sorge também tivesse informado Stalin sobre o ataque a Pearl Harbor, este escolheu não avisar os americanos, embora Churchill tivesse avisado Stalin sobre a Barbarossa.
Para mais, enquanto a Operação Barbarossa levara à concentração, junto à fronteira soviética, ao longo de muitas semanas, de uma colossal força de 3.8 milhões de soldados, 3300 tanques, 600.000 veículos e outros tantos cavalos, que camuflagem alguma podia ocultar de quem tivesse olhos e ouvidos, o ataque japonês foi desferido à distância de 400 quilómetros, a partir de uma esquadra que se movimentara furtivamente e com os rádios em silêncio total, longe dos olhares americanos. Na verdade, os japoneses tinham criado um sofisticado embuste, recorrendo a falsas transmissões rádio, de forma a convencer os americanos de que a frota de Nagumo estava ancorada em águas territoriais japonesas, entre as ilhas de Honshu e Shikoku.
Clamorosas falhas de raciocínio
As teorias conspirativas tendem a assentar a sua argumentação em pequenas incongruências e a esquecer o que realmente importa.
Mesmo que Roosevelt quisesse usar o pretexto do ataque a Pearl Harbor para entrar na guerra, não seria necessário que se deixasse surpreender tão flagrantemente. Se tivesse colocado as forças americanas de sobreaviso e tivesse minimizado os efeitos do ataque japonês ou até montado uma armadilha e infligido pesadas baixas aos japoneses, a agressão japonesa seria sempre, aos olhos do direito internacional, motivo mais do que suficiente para declarar guerra ao Japão. O “Discurso da Infâmia” que, no dia seguinte ao ataque, Roosevelt fez no Congresso, não teria sido substancialmente diferente e a determinação americana em derrotar o Japão não teria sido mais fraca.
Então porquê deixar os japoneses cair sobre Pearl Harbor e as restantes bases e forças americanas no Pacífico, correndo o risco de perder a guerra? Hoje, com a vantagem da visão retrospectiva, sabemos qual o desfecho da guerra, mas antes da (improvável) vitória americana na Batalha de Midway, as cartas estavam a favor dos japoneses.
Mesmo que o poderio industrial americano acabasse por prevalecer, como previam os jogos de guerra dos estrategas japoneses, a guerra seria bem mais longa, dura e sangrenta e talvez o território continental americano não escapasse incólume ao conflito.
Outra debilidade argumentativa flagrante prende-se com as consequências imediatas de Pearl Harbor na geopolítica mundial: os EUA não declararam guerra à Alemanha, pois Roosevelt não queria lutar simultaneamente em duas frentes. Hitler sabia disso e, por outro lado, a aliança da Alemanha com o Japão só obrigava a primeira a entrar na guerra ao lado do segundo se este fosse o agredido, não o agressor. Mas Hitler ficou eufórico com a notícia do ataque a Pearl Harbor: “Agora é impossível perdermos a guerra. Temos um aliado que em 300 anos nunca foi derrotado”. A 11 de Dezembro, foi a Alemanha que declarou guerra aos EUA, naquele que Martin Gilbert, em A Segunda Guerra Mundial, considera ter sido “talvez o acto mais irreflectido, e certamente o mais decisivo, da Segunda Guerra Mundial”. O mais espantoso é que Hitler tomou esta decisão precisamente quando o avanço das tropas alemãs na Frente Leste baqueava pela primeira vez e as tropas soviéticas tiravam partido do rigor do inverno russo para lançar vigorosos contra-ataques – entre 6 e 11 de Dezembro reconquistaram 400 vilas e aldeias aos alemães.
Em contraste com Hitler, Churchill fez a leitura lúcida dos eventos, num telegrama de 9 de Dezembro para Anthony Eden, ministro britânico dos Negócios Estrangeiros. “A entrada dos EUA na guerra compensa tudo o mais e, com tempo e paciência, levará a uma vitória certa”.