Pedro Álvares Ribeiro e Peter Meeker são a mesma pessoa. A mesma pessoa tão portuguesa quanto inglesa, numa união rara entre bairrismo e excentricidade. Apaixonado e racional, gere emoções, orçamentos, obras de arte, sonhos e balancetes. Sorriso na cara, brilho nos olhos, ambição, ingenuidade, fé, muita generosidade, timidez também, muita humildade e um nível de exigência poderoso. Ele é o presidente da Casa de São Roque, no Porto, centro de arte que acaba de comemorar cinco anos, é também o colecionador ativo que a partir de um lugar de destaque na alta finança conseguiu construir um acervo absolutamente inédito no que respeita à arte contemporânea europeia, com destaque para os artistas portugueses mais capazes de criar uma linguagem independente. E é um portuense de gema na defesa de uma cidade que ama e que quer situar num mundo global a partir da periferia.
A família foi sempre um suporte e moldou-lhe um caminho intelectual, cultural e social. Estudou em Londres, esteve no Porto para alicerçar o Banco Comercial Português, foi para Madrid lançar as bases do Banco Banif Banqueros Personales, em Lisboa ajudou a fundar o Expresso Atlântico, foi para Varsóvia desenvolver o Millennium e regressou à Invicta ainda para trabalhar na banca. Mas logo depois deixou-se prender pelas mãos da Fundação Cupertino de Miranda. Em todo o lado foi buscar inspiração para interpretar o mundo. O resultado está espelhado numa coleção com 600 peças, onde os nomes de Ana Jotta, Chafes, Croft, Cabrita, Nozolino, Tropa, Julião Sarmento, Sanches ou Calapez rivalizam com os de Miroslaw Balka, Ignácio Aballi, Pepe Espaliú, Susana Solano, Pawel Althamer ou Franz West. Em Portugal, nada disto é comum. E, no Porto, tudo isto é visível num palacete magnífico escondido, mas cada vez menos, na zona oriental da cidade.
Começou a colecionar a partir de que momento e por que razão?
Comecei há 40 anos. Sempre gostei muito de arte. Na família há fortes influências. Do lado paterno no que se refere à literatura, pois era uma família de editores, livreiros e papeleiros. Editaram entre o século XVIII e o século XIX mais de 500 livros. Os meus antepassados tinham relação próxima com Camilo Castelo Branco e outros grandes escritores da altura. Do lado materno, o meu avô era colecionador de arte e também de mobiliário. Foram duas realidades quem me marcaram sempre e muito.
A arte era comum em casa?
Sim. Claro que, depois fui viver para Londres, e a cidade inspirou-me definitivamente. Ia praticamente todas as semanas ao British Museum, à National Gallery, ao Victoria and Albert Museum, à Tate… E hoje em dia em todas as grandes cidades, os museus são espaços que me inspiram imenso.
Viveu em Londres em que época?
Nos últimos cinco anos da década de 70. Voltei para Portugal em 1981. Os museus sempre foram grandes referências para mim. Sempre que visito Nova Iorque nunca falho o MoMA, o Metropolitan e o Frick Collection. Nunca falham mesmo que só tenha 20 minutos para despender em cada um. No Metropolitan escolho ir visitar uma peça africana renascentista, a máscara do rei do Benim, Iyoba, em marfim. É uma máscara da cabeça da mãe dele e que ele usava em cerimónias especiais, e tem os primeiros portugueses que chegaram a África no século XVI. É uma obra-prima do renascentismo. Em todas as cidades, os museus são fontes de obrigatórias visitas. Em Paris, não falho o Louvre, não falho o Museu de Cluny e não falho, mas vou passar a falhar porque vai ser integrado no Pompidou, o ateliê Brancusi.
Partiu para a coleção com uma ideia definida? Foi a pouco e pouco tomando forma?
O caminho faz-se caminhando. No início não havia minimamente uma ideia. Decidi fazer uma coleção. Lembro-me perfeitamente das primeiras obras que comprei, que foram um [José Pedro] Croft e um [Pedro] Cabrita Reis. Lembro-me como se fosse hoje da alegria que tive quando comprei essas obras. Eram artistas e obras que me marcaram imenso. A coleção surgiu como um passo natural para alguém que gostava de arte. Foi só ao fim de alguns anos que percebi que aquilo tinha pernas para andar e constituir uma coleção. Ao princípio, era um gosto pela arte e não só arte contemporânea, também de outros períodos, nomeadamente arte clássica.
Mas há um gosto muito particular que formou e que se revela nesta coleção. As peças da coleção interpelam quem as olha, todas elas, não permitem a passividade de quem as vê. Como é que se chega até aqui?
Também coleciono obras do século XVI e XVII. Tenho também essa experiência interessante e que, diria, menos exigente, pois a história já validou esses objetos. Mas é interessante porque nos obriga a revisitar a história e a compreendê-la. Por exemplo, tenho várias cadeiras indo-afro portuguesas do século XVII que têm a ver com a Europa, com Portugal, é essa a sua origem, mas também têm a ver com África e com a Ásia. Essas cadeiras, para quem se interesse por um tema como este, têm o dom de nos fazer revisitar a História e perceber o papel de Portugal no mundo nessa altura. A arte contemporânea é um mundo completamente diferente, é um mundo onde colocamos questões e não sabemos as respostas e, nesse sentido, diria que é mais interessante e mais estimulante. Primeiro, o ato de colecionar é, no meu caso, um percurso completamente solitário. A minha grande inspiração vem dos artistas. Obviamente que as visitas aos museus são importantes, obviamente que a leitura dos clássicos também foi muito importante, e continuo a ler. Giorgio Vasari (1511-1574) é um dos meus autores de cabeceira, a sua história dos artistas [considerada a primeira história da Arte de todos os tempos] é um livro que leio quase todos os anos, mas também o Herbert Read (1893-1968), Keneth Clark (1903-1983), Civilization, obviamente o Gombrich (1909-2001) e a sua História da Arte. Foi muito importante tê-los lido e lê-los regularmente. Mas os artistas são realmente a fonte principal da minha inspiração, pois a arte contemporânea é um mundo verdadeiramente estimulante. Colecionar arte contemporânea o que é senão colecionar um bocadinho do mundo? E compreendemos o que se passa no mundo? Acho que muitas vezes não compreendemos o que se passa no mundo.
Se compreendêssemos talvez não tivesse piada.
Claro que não. Só com o tempo é que verdadeiramente conseguimos avaliar melhor uma obra de arte. A melhor forma de avaliar uma obra de arte é revisitá-la ao fim de 10, 20, 30 anos e ver se ela tem a mesma vitalidade que tinha antes. Um colecionador muitas vezes tem as suas obras, como é o meu caso, em depósito em museus, não as vê durante muitos anos e é também um reencontro muito especial quando volto a ver uma obra pela qual tenho um carinho enorme. Esse é um momento muito forte porque ou ela continua a ter a mesma vitalidade que tinha no início, ou, por vezes acontece, não tem essa mesma vitalidade. É preciso tempo para avaliarmos a dimensão das obras de arte contemporâneas. É um desafio. Procuramos, mas nem sempre encontramos. Isso torna muito mais estimulante colecionar arte.
Qual a dimensão da sua coleção, tem que ordem de grandeza?
Não pára de crescer. Talvez seja importante referir que se trata de uma coleção de artistas, acho que essa é a sua marca ou característica principal. Estamos a falar de 40 artistas e de mais de 600 obras. É possível, em relação a muitos desses artistas, acompanharmos o seu percurso desde há 40 anos até aos dias de hoje. Todos os artistas têm vários períodos, várias fases, umas mais estimulantes do que as outras e isso é muito mais profundo.
Ou seja: a vida dos artistas através das obras colecionadas?
Sim. E o que é interessante é que, de alguma forma, foi um percurso que fiz ao lado desses artistas. Ou seja, há 40 anos, eles não eram conhecidos, eram relativamente anónimos e crescemos juntos. São cerca de 40 artistas, metade portugueses, metade estrangeiros. Portugal tem um peso grande, é o país onde tenho vivido e não há dúvida que nos últimos 40 anos o país tem tido artistas que se têm afirmado e afirmado a sua obra de uma forma marcante. Mas no início, era o princípio de tudo. Ter começado a coleção com as primeiras exposições de muitos deles foi muito interessante.
Não se perguntava o que é que isto vai dar?
Claro. A seguir ao 25 de Abril começa a haver uma outra capacidade e uma outra liberdade para criar arte em Portugal. Vivi em dois países, Portugal e a Polónia, em que as transformações políticas proporcionaram toda uma criação. Cá, antes da Revolução, havia obviamente artistas relevantes, mas depois é que houve uma dimensão e uma vitalidade especiais. Na Polónia, após a queda do Comunismo, também houve uma abertura da sociedade e também houve um conjunto de novos artistas que se afirmou. Tive o privilégio de acompanhar esse processo uma vez que vivia lá. Já colecionava o [Miroslaw] Balka dez anos antes de ir para a Polónia, mas quando lá cheguei depois do fim do Comunismo não havia colecionadores e fui um privilegiado por poder adquirir nessa altura como um dos poucos privados a viver lá. De qualquer forma, grande parte das obras que comprei foi através de galeristas. Acho que é muito importante respeitarmos e fortalecermos o mercado, onde as galerias são uma realidade muito importante. São os galeristas que apostam nos artistas, que os apoiam e isso foi sempre algo que respeitei imenso.
Quando é que começou a pensar em mostrar a coleção?
A ideia não era tanto mostrar a coleção, a ideia era mais criar um espaço que fosse um espaço único para mostrar naturalmente a coleção, mas não só. Um espaço que fosse diferente. Como visito regularmente os melhores museus da Europa e Estados Unidos da América — e em Lisboa visito sempre o Museu Gulbenkian, que tem uma das melhores coleções do mundo — e percebo que a maior parte deles tem um bocadinho esse castigo, o de visitarmos obras absolutamente únicas e depois vamos a uma cafetaria que é barulhenta, tomamos um café que não é nada agradável e se quisermos até tomar um copo de vinho, que é algo normal quando estamos a viajar, é uma experiência que não é positiva. Queria poder criar um espaço que fosse um sítio onde as pessoas pudessem estar num ambiente agradável depois de uma vista a uma exposição. Pedi ao [arquiteto] João Mendes Ribeiro para contribuir para a criação desse espaço. Temos aqui, neste bar/cafetaria, os livros dos últimos 50 anos, alguns dos mais relevantes das exposições de arte que se realizaram em Portugal e em muitos países do mundo, entre a natureza ainda por cima. Foi uma alegria quando esta oportunidade surgiu. Claro que era uma ideia que já existia.
Como é que aparece a Casa de São Roque?
Foi um passo concreto que dei nesse sentido. Ou seja, fui falar com o [presidente da Câmara Municipal do Porto] Rui Moreira e expliquei-lhe qual era a minha ideia, disse-lhe que queria criar um centro de arte, que queria participar naquilo que é a realidade da vida cultural da cidade. É a minha cidade e acho que é uma cidade muito interessante. Tinha andado pelo mundo, vivido em muitos países, e regressado aqui. Tínhamos e temos um presidente da Câmara que faz da Cultura uma prioridade e perguntei-lhe que alternativas e hipóteses havia. Foram-me apresentadas várias alternativas. Quando me falaram da Casa de São Roque, decidi-me rapidamente por ela. O Rui Moreira disse-me então que tinha que me responsabilizar pela recuperação total da casa. O desafio não era fácil porque é um edifício extraordinário do ponto de vista arquitetónico e do ponto de vista das artes decorativas, mas a questão era: será que conseguimos recuperá-lo com a qualidade que ele merece? Aceitei o desafio.
A parceria consistia na reabilitação da casa para o seu lado, e para a autarquia?
A associação que eu criei, a Viver Cidade, é responsável pela reabilitação do espaço e pela sua exploração. A autarquia tinha o edifício em condição de ruína e foi completamente recuperado, não teve que fazer nenhum investimento nesse sentido. Agora é um espaço que tem a sua vida cultural própria, a sua dinâmica própria. Tem um orçamento privado e tem que assegurar a sua sustentabilidade, com visitas e com apoios. Trata-se de um desafio bastante exigente mas também bastante estimulante.
A sua vida mudou?
Mudou. Ou seja, grande parte da minha vida é dedicada a trabalhar com a equipa da Casa de São Roque, trabalho também na Fundação Cupertino de Miranda, em Famalicão.
E a parceria com a Câmara Municipal do Porto tem que prazo?
É um acordo de longo prazo, são 15 anos. Um acordo que permitiu à autarquia recuperar o edifício, onde tem um parque público gerido por si, e que nos permite uma autonomia total para criar a nossa agenda cultural, o que era uma condição para mim essencial. Só podemos criar um espaço que seja uma referência em termos culturais pela qualidade da sua programação se houver total autonomia e uma liberdade total para fazer essa gestão. E é isso que acontece.
Quinze anos não é pouco?
A ideia de ambas as partes é uma relação de mais longo prazo, mas penso que primeiro é preciso demonstrar que há capacidade e talento para que isso aconteça e estamos confiantes.
Passaram agora cinco anos.
Exato. Acabámos de os comemorar em outubro. E as coisas estão a correr-nos bem.
Para criar públicos o tempo é sempre pouco. Quantos visitantes têm?
Temos vindo a aumentar. Tivemos três mil visitantes no primeiro ano, depois seis mil, e estamos neste momento com 15 mil visitantes. Não podemos ignorar que estamos na zona oriental da cidade, onde ainda não há muitos turistas.
A Casa de São Roque também não é um produto para vender, será mais fruto de uma educação?
Claro. A nossa atividade principal é a programação de arte contemporânea e, nesse sentido, foi muito importante ter contado com a direção artística da curadora polaca Barbara Piwowarska.
Como é que a descobriu?
Fiz uma análise à realidade da curadoria artística. Queria que a Casa de São Roque fosse dirigida por uma pessoa do norte da Europa. Achava que era importante encontrar alguém que fosse independente e que fosse mais racional para trabalhar aqui num ambiente mais latino. Acabei por escolher a Barbara Piwowarska entre várias candidatas. No início ela só queria trabalhar cá durante três anos, mas exigi que ficasse cinco, pois era mesmo necessário tempo para afirmarmos o espaço. Os cinco anos acabaram em março e estou muito contente. Acho que ela fez um trabalho notável, porque no fundo foi uma programação que marcou a diferença.
Quais foram os pontos altos dessa programação?
Abrimos com uma exposição da Ana Jotta tão interessante que a artista acabou por ser convidada, no seu seguimento, para o Festival de Outono em Paris, e sabemos todas as outras mostras que realizou quer na Kunsthalle de Zurique, quer no Wiels, em Bruxelas, e no Wattis Institute, em São Francisco, nos Estados Unidos. Fizemos também uma exposição histórica à volta da obra de Walter Benjamin, que nunca tinha sido feita em Portugal, com o apoio e a parceria do Instituto do Walter Benjamin em Munique. Tivemos uma exposição do Andy Warhol em que trouxemos cá 78 polaroids da Coleção Mishkin Gallery e da Baruch College da City de Nova Iorque. Tivemos ainda uma exposição individual do Jean-Louc Moulène e outra da Emily Wardill e agora temos a primeira mostra da minha coleção [Coleção Peter Meeker]. Este trabalho de curadoria que a Barbara Piwowarska desenvolveu foi muito importante. A atividade da arte contemporânea é muito relevante, mas temos também concertos de música clássica no jardim aos fins de semana, ao meio-dia, que é normalmente uma hora em que as pessoas não têm muita coisa para fazer. São espetáculos gratuitos que trazem sempre mais de cem pessoas. E temos concertos de jazz às sextas-feiras ao fim do dia. Há toda uma dinâmica de eventos culturais para atrair públicos diferentes. Há apresentações de livros. Evidentemente que a atividade principal é a arte contemporânea e o caminho da sustentabilidade que pretendemos alcançar é longo.
O orçamento de funcionamento da Casa anda à volta de quanto?
Não gostava de falar em números específicos porque acho que o importante é a qualidade da programação. Estamos a fazer agora duas exposições por ano, no futuro gostaríamos de fazer mais, e para isso precisamos de ter mais orçamento.
O que deverá envolver um esforço financeiro muito grande.
Exatamente. E fazê-lo aqui, na zona oriental da cidade, é complicado. Esta é uma zona onde há muita pobreza. Aqui temos um grande parceiro que é o Agrupamento das Escolas do Cerco, que tem mais de dois mil alunos. Criámos de raiz um programa que se chama “Descobrir com a arte e a natureza”. A sua preparação levou-nos três anos a concretizar e a melhorar. Os alunos vêm cá, crianças dos seis aos nove anos, visitam a exposição, a casa e o jardim e depois fazem uma colagem baseada na experiência que tiveram, fazem ainda um poema ou uma redação e, finalmente, um desenho. No final, escolhem uma obra que vão apresentar aqui na Casa de São Roque. Já temos 500 crianças a apresentarem a sua obra de arte num espaço como a Casa e é uma experiência verdadeiramente estimulante. Contamos com o serviço educativo da Câmara Municipal do Porto como parceiro. Começámos só com as escolas da zona oriental, mas hoje já estamos a envolver muitas outras escolas públicas do Porto. Isso é marcante. Acreditamos que alguns desses jovens um dia poderão vir a ser artistas e sabemos que esta experiência foi determinante para eles. Os professores até dizem que nem sempre os encarregados de educação acompanham de perto a evolução dos filhos na escola e, no entanto, comparecem na exposição. E isso também é muito interessante. Também estamos a trabalhar com a Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto e com a Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto.
É uma equipa grande que aqui trabalha?
Somos dez pessoas com uma polivalência enorme. No nosso Conselho de Consultores temos o Jay Levenson, que é International director do MoMA, temos o Marcelo Araújo, que foi diretor da Pinacoteca de São Paulo e hoje está à frente do Instituto Moreira Salles, onde trabalha o João Fernandes, curador natural do Porto que foi diretor do Museu de Serralves, temos a galerista espanhola Juana de Aizpuru, o Miroslaw Balka, porque é professor de arte em Varsóvia. São pessoas que nos têm ajudado muito. Estiveram cá antes da abertura e vêm cá regularmente e uma das suas preocupações é que a Casa de São Roque seja local. E local não quer dizer que é do Porto, mas sim que é da zona oriental da cidade do Porto. A inserção no espaço e a ligação às instituições locais é muito importante. É um privilégio termos estas pessoas com esta experiência museológica a ajudar-nos a criar um centro cultural diferente. Hoje sentimo-nos perfeitamente inseridos neste mundo e na zona oriental.
A visita de grupos e de amigos dos principais museus do mundo também tem sido um ponto de excelência para a divulgação da Casa de São Roque?
Sem dúvida. E também aprendemos muito com essas visitas. Só nas últimas semanas tivemos duas visitas de grande monta. A visita do Haus der Kunst de Munique, veio o diretor, Andrea Lissoni, e os patronos. É sempre muito interessante. Eles visitam a exposição, a casa, o jardim e há sempre um diálogo. Aprendemos sempre com as perguntas e com os comentários. Também recebemos há pouco tempo a visita da Secession, de Viena, que é uma instituição de referência criada por um grupo de artistas, nomeadamente o Gustav Klint, e que detém um edifício extraordinário da mesma época da intervenção do Marques da Silva aqui na Casa de São Roque, nos começos do século XX. Veio a presidente e todos os patronos, 36 exatamente.
Não é a primeira vez que vêm grupos tão ilustres…
Vieram os patronos do Metropolitan de Nova Iorque e do Walker Art Center de Minneapolis, e do primeiro museu de arte moderna dos Estados Unidos que é o Phillips Collection, em Washington. Também já vieram cá diretores de muitos museus da Europa e isso é fundamental. Têm vontade de conhecer a Casa de São Roque, o que nos orgulha, e partilham connosco a sua enorme experiência. É um intercâmbio muito rico, onde somos nós quem ganha mais.
Também é uma forma de divulgar os artistas?
Sem dúvida. Sabemos que há um trabalho muito importante de divulgação da arte portuguesa a fazer, porque os nossos artistas ainda não têm o reconhecimento internacional que, na minha opinião, deviam ter. É um trabalho que nunca está terminado e essas visitas são determinantes. De facto, quando vem cá um diretor de uma dessas instituições relevantes fica a conhecer os artistas que expomos do panorama nacional, além dos internacionais.
Como perspetiva os próximos anos da Casa de São Roque?
Pretendemos ter uma programação que seja cada vez mais marcante, sempre feita a partir de uma curadoria independente e queremos que essa seja a marca principal da instituição. É nossa vontade destacarmo-nos pela qualidade das exposições e pelo nosso envolvimento local. É também por essa via que queremos conquistar novos públicos e trazer uma vida cultural a esta parte da cidade que começa a ser uma realidade.
A proximidade com o antigo matadouro, futuro bairro das artes, é importante?
Muitíssimo. Estamos a 400 metros do matadouro e estamos à espera que quando estiver reabilitado faça com que as pessoas queiram descobrir esta zona da cidade que é tão genuína, e que mesmo as pessoas do Porto conhecem mal, e que tem muito para ver, tem arquitetura e tem espaços verdes muito interessantes.
E virá a ter essa marca da arte contemporânea?
Sim e vai ser muito forte.
Mesmo que Serralves, em termos de arte contemporânea, pareça imbatível atualmente na cidade do Porto?
É assim, de facto. Serralves é talvez uma das histórias mais marcantes do país nos últimos 50 anos. É muito bem sucedida, porque é uma parceria público-privada que envolve muitas das principais empresas portuguesas, tem uma participação muito grande a nível de visitantes portugueses e estrangeiros e é um espaço absolutamente sublime, agora enriquecido mais uma vez por Álvaro Siza, mas com a casa, o espaço Manoel Oliveira, o parque… uma história extraordinária que constitui uma das maiores realizações de Portugal das últimas décadas. Uma vez mais, acho que a cidade vai marcar a diferença através da sua oferta cultural e a Casa de São Roque quer contribuir para isso com muita ambição e com a sua escala. Pretendemos sempre ser uma instituição pequena, não queremos crescer demasiado do ponto de vista da dimensão. A nossa orientação é estarmos muito perto dos artistas tal como a Coleção Peter Meeker. Eles, os artistas, são a prioridade e o enfoque de tudo aquilo que fazemos e, para manter essa proximidade, a programação tem que estar à altura. Dizia a presidente dos patronos do Haus der Kunst, de Munique, que isto era uma obra de arte global, arte contemporânea, arquitetura, artes decorativas… A parte essencial desta obra de arte e para que ela se mantenha viva é a relação com os artistas que tem que ser cuidada.
Como conseguiu guardar a alma da casa?
Primeiro o António Ramos Pinto, um dos mais conhecidos produtores e exportadores de vinho do Porto, e o proprietário da casa, convidou, no final do século XIX, um jovem arquiteto, José Marques da Silva, que se tinha acabado de formar em Paris e que era desconhecido, a trabalhar nesta casa, sendo esta a sua primeira intervenção arquitetónica. Marques da Silva, no entanto, trabalhava com um dos grandes arquitetos parisienses, Victor Laloux, que fez nomeadamente a gare d’ Orsay, que conhecemos hoje como o Museu d’ Orsay. Trouxe dessa escola, o historicismo francês, a art nouveau belga. Trabalhou onze anos na remodelação e na expansão da casa, que era originária do século XVIII e transformou uma pequena casa onde a família vinha caçar neste palacete eclético. Foi uma intervenção de uma sofisticação enorme, cada sala tem uma solução diferente com as melhores artes decorativas que eram possíveis ter, não só de Portugal mas de todo o mundo. Temos azulejos belgas, azulejos de Sevilha, temos os grandes estuques de uma das maiores escolas do Porto, os Meiras. Além disso, está integrada num espaço verde criado por um jardineiro histórico, Jacinto de Matos, o paisagista que fez mais de 400 jardins no Porto e no norte de Espanha. Temos mantido o jardim exatamente igual ao que foi em 1900, desde o jardim de Inverno às camélias centenárias.
Com todo este trabalho, a coleção não pode ter a mesma atenção do colecionador que tinha antes, ou tem?
Tento continuar a dar-lhe a mesma atenção. Quero sempre ir mais longe. Acabei de adquirir uma obra única da Ana Jotta, que agora expomos na garagem, um espaço diferente da casa, uma obra de Jean-Luc Moulène e ainda uma outra peça recente de Pedro Casqueiro. São exemplos, outras aquisições têm acontecido, mas esse é um trabalho independente que o colecionador faz e que é autónomo. A direção artística da Casa de São Roque fará o que entender em relação à coleção na sua programação. Várias das nossas exposições nem sequer tiveram nada a ver com a coleção. Assim será.