Na noite de 21 de janeiro, 27 soldados da Guarda Nacional Bolivariana rodearam um comandante-general num quartel de Cotiza, no Norte de Caracas. Naquele momento, estavam desobediência: entrincheirados e com armas nas mãos, iniciaram um motim contra as forças de seguranças leais ao regime, contando, para isso, com a ajuda de alguns populares. Foi um dia de grande tensão — e que, mais tarde, os levou a serem detidos e levados para uma prisão em parte incerta. Mas, no meio daquela crispação, quando resolveram cercar aquele comandante-geral, os soldados não o agrediram e nem sequer gritaram com ele.
Em vez disso, disseram-lhe aquilo que provavelmente nunca lhe tinham dito. Queixavam-se de falta de respeito do seus superiores, falta de meios para viverem as suas vidas, falta de perspetivas, falta de tudo. E, a determinado momento daquela conversa, que foi gravada e colocada a correr nas redes sociais, o soldado que segura a câmara chama a atenção do comandante-general e dirige-lhe a palavra, falando de uma falta ainda maior do que as até então enunciadas.
“Como é possível que eu tenha perdido o meu bebé de quatro meses? Amanhã a minha filha ia fazer sete mesinhos”, diz o soldado, que, ao contrário do que acontecia até agora, fala sem ser interrompido. “Desde dezembro que não ganho um salário. Nem um rancho [casa abarracada] posso fazer, não tenho um rancho para meter os filhos e a minha esposa. Como é possível isso acontecer a um guarda nacional, um funcionário do Estado? Imagine-se!”
O comandante-general, quando consegue a sua vez para falar, dirige-se em particular ao soldado que perdeu a filha. “Tu, que me estás a falar de uma série de coisas, parece que não estás a analisar bem o que se está a passar. O que eles querem são os nossos recursos naturais, que nós temos”, diz-lhe. E depois concretiza: “Tu não estudaste um pouco o que se passou com o mundo e com os EUA?!”.
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Este episódio aconteceu a 21 de janeiro de 2019, um dia antes de Juan Guaidó, presidente da Assembleia Nacional da Venezuela — que o regime e a justiça venezuelana não reconhecem e que é apenas composta por deputados da oposição — se ter autoproclamado Presidente interino da Venezuela. A essa ação, seguir-se-ia o reconhecimento internacional de países como os EUA, Colômbia e Brasil, tal como a recusa de reconhecer outro Presidente além de Nicolás Maduro por parte da Rússia, Turquia ou China.
O momento será, assim, o mais recente, mas está muito longe de ter sido o único sintoma de desunião entre os militares venezuelanos e, sobretudo, de desagrado de diferentes patentes das forças armadas daquele país em relação aos seus superiores e ao regime de Nicolás Maduro.
2018 foi, como nenhum ano dos quase 20 que o chavismo já leva, aquele que levou a uma maior onda de repressão e detenções dentro das forças armadas venezuelanas — com a jornalista Sebastiana Barráez, especializada em temas militares, a referir em setembro do ano passado que, desde janeiro e até à data, tinham sido presos 60 funcionários militares e 82 sob suspeita de planearem levantamentos contra o regime. Outras estimativas à altura eram ainda mais expansivas, apontando para um total de 185 oficiais sob investigação e a serem interrogados por atentarem contra o chavismo.
A estes números, têm-se juntado diferentes episódios. Em junho de 2017, um polícia alinhado com os setores mais extremistas da oposição venezuelana, sobrevoou Caracas a bordo de um helicóptero roubado e atacou com granadas o edifício do Supremo Tribunal de Justiça da Venezuela. Em agosto de 2018, enquanto Nicolás Maduro discursava — precisamente rodeado de militares —, dois drones carregados com bombas explodiram naquilo que seria um ataque dirigido ao Presidente.
Além disso, as referências a tentativas de golpe de Estado são frequentes. Em março, Nicolás Maduro expulsou do exército 24 oficiais, depois de os acusar de tentarem planear um golpe de Estado. Um deles, o capitão reformado Juan Carlos Caguaripano, chegou a liderar um tentativa de assalto a um paiol no Norte da Venezuela, levando à morte de dois dos seus seguidores. Enquanto isso, de acordo com a Reuters, estima-se que mais de 4 mil militares rasos tenham desertado ao longo de 2018, muitos deles tendo emigrado para a Colômbia e para o Peru.
É neste ambiente de aparente instabilidade entre os militares que a Venezuela entra num dos períodos mais críticos — e, a longo trecho, insustentáveis — dos já quase 20 anos do chavismo. Desde esta quarta-feira, em que Juan Guaidó se autoproclamou Presidente interino da Venezuela, evocando a Constituição para esse efeito, que o país vive uma dualidade inédita: tem dois tribunais supremos; dois procuradores-gerais; dois parlamentos; e, agora, dois presidentes. Porém, apesar de todos os sinais que têm surgido, há uma esfera de elevadíssima importância no regime venezuelano para aquela realidade: precisamente, as forças armadas.
Entre Maduro e Guaidó, quem mais convence os militares?
Nicolás Maduro e Juan Guaidó estão, neste momento, numa luta pelo reconhecimento por parte das forças armadas. E, no que a este importante capítulo diz respeito, o líder chavista vai confortavelmente na dianteira.
Não foi, porém, por falta de esforço de Juan Guaidó que esta realidade se instalou. A 21 de janeiro, dois dias antes de se ter autoproclamado Presidente interino da Venezuela, Guaidó divulgou um vídeo no qual falava diretamente aos militares do país.
“Vocês conhecem a Constituição e sabem muito bem qual é o caminho que devemos seguir na Venezuela em circunstâncias decisivas como as que vivemos hoje. Aqui, todos fomos vítimas de um sistema que vos obrigou a olhar para o lado, enquanto outros roubam”, disse o líder político de 35 anos.
Na mensagem, Juan Guaidó insistiu que não era a revolta que queria. “Nós não vos estamos a pedir que se sublevem, irmãos, e muito menos apelamos a uma rebelião”, disse a determinada altura. Mas, ainda assim sublinhou que eram eles quem tinha o dever de honrar a Constituição: “Estamos a pedir-vos que nos ajudem a retomar a ordem constitucional e que a democracia, que um dia vocês juraram defender, volte a reger os destinos políticos do nosso país”.
Por fim, aludindo à lei de amnistia que a Assembleia Nacional oposicionista aprovou para todos os militares que contribuam para o cumprimento do Artigo 233 — aquele em que Juan Guaidó se baseia para se ter autoproclamado Presidente — o jovem líder político tornou a sublinhar: “Não te estamos a pedir que faças um golpe de Estado. Não te estamos a pedir que dispares. Antes pelo contrário. Estamos a pedir-te que não dispares contra nós. Que nos defendas e ao direito que este povo tem de ser escutado, feliz e livre. Só faltas tu“.
A mensagem de Nicolás Maduro aos mesmos destinatários chegou a 23 de janeiro, pouco depois de Juan Guaidó ter feito a sua autoproclamação e países como os EUA, Colômbia e Brasil já o terem reconhecido como líder legítimo daquele país. Perante uma plateia de apoiantes, onde estava também um grupo de militares, Maduro dirigiu-se àqueles e ordenou-lhes: “Máxima lealdade, máxima união, máxima disciplina. Desta vez, vamos vencer também! Também vamos vencer esta luta! Leais sempre, traidores nunca!”.
Esta quinta-feira, voltou a instar os militares a manterem-se do seu lado. Na cerimónia de abertura do ano judicial, sublinhou o facto de os líderes das oito regiões de defesa integral terem declarado o seu apoio ao governo chavista. Referindo que aquele era um “pronunciamento constitucional, firme, claro e inequívoco”, Maduro congratulou-se: “O poder militar falou e está com a Constituição. Está com a pátria e está com o povo. Cumpra-se! A pátria militar ergue a sua voz firme e clara!”.
Entre os especialistas ouvidos pelo Observador, restam poucas dúvidas de que os militares venezuelanos estão com Nicolás Maduro. Esta é a conclusão a que chega, por exemplo, Rocío San Miguel, diretora da ONG Control Ciudadano e uma das maiores autoridades no estudo dos militares venezuelanos. “E isto só é possível porque, desde o primeiro momento da sua designação como Presidente, Nicolás Maduro dedicou toda a sua atenção às forças armadas, de maneira a controlá-las”, explicou ao Observador.
Como Maduro aperfeiçoou a arte chavista de ter os militares ao seu lado
Estranho seria se o regime chavista não soubesse a importância que os militares têm no derrube e manutenção de regimes. Esta história começa quando, em 1992, um tenente-coronel chamado Hugo Chávez liderou uma tentativa de golpe de Estado para derrubar o então Presidente Carlos Andrés Pérez. Segue depois para 2002 quando, já com Hugo Chávez na presidência, após ter sido eleito no final de 1998, um golpe de Estado contra o seu governo durou apenas dois dias, em grande parte devido ao apoio que o chavismo reunia, então, junto dos militares. E, agora, em 2019, a maioria desse apoio mantém-se, asseguram os especialistas consultados pelo Observador.
“[Um levantamento contra Nicolás Maduro] é algo que não podemos descartar totalmente, mas a ineficácia das forças militares é tão grande que não tem capacidade política nem técnica para dar um golpe de Estado”, disse Hernán Castillo, académico venezuelano que estuda os militares daquele país.
Um dos segredos para o maior controlo de Nicolás Maduro sobre os militares foi a sua atomização. “O exército na Venezuela chavista foi propositadamente montado de forma a dificultar uma insurreição militar. Há muitas divisões, mais do que num exército normal”, explicou ao Observador o norte-americano Harold Trinkunas, especialista na Venezuela, da Stanford University.
É precisamente nesse sentido que aponta um relatório publicado em setembro de 2018 pela Control Ciudadano, que espelhava bem a atomização das forças armadas venezuelanas. Entre as medidas tomadas entre 2013 e 2018, está o abandono de um sistema da Guarda Nacional Bolivariana assente em 9 comandos regionais, passando para 24 zonas em cada um dos estados do país; a passagem de 73 para 236 destacamentos; tal como de 159 para 514 companhias.
“Com uma divisão tão acentuada, é impossível às forças armadas planearem uma movimentação de dimensões maiores àquela que aconteceu, por exemplo, com o helicóptero que atacou o Supremo Tribunal de Justiça”, disse Harold Trinkunas. “O mais certo é serem apanhados, como tem acontecido regularmente.”
Na análise de Rocío San Miguel, Nicolás Maduro conseguiu garantir o apoio das forças armadas de três maneiras.
A primeira diz respeito à vigilância levada a cabo pelos serviços de informação, o SEBIN. “Nicolás Maduro serve-se em grande parte do seus sistema de inteligência e contra-inteligência para vigiar internamente os militares, o que lhe permitiu afastar muitas pessoas desfavoráveis. Maduro foi o primeiro Presidente da História moderna do nosso país a degradar e expulsar oficiais de comando das forças nacionais”, diz. “E isto só foi possível porque fez uma vigilância extrema e, claro, assessorada por Cuba”, conclui.
Neste capítulo, não é só a vigilância que conta — é também o que se segue depois de os supostos conspiradores serem detidos. De acordo com um relatório publicado pela Human Rights Watch a 9 de janeiro deste ano, pelo menos 32 militares foram detidos e torturados após terem feitos críticas ao regime ou sido acusados, nalguns casos sem provas, de prepararem um golpe de Estado. Segundo a organização de defesa dos direitos humanos, os detidos sofreram vários tipos de tortura, entre estrangulamentos, espancamentos, cortes com lâminas nas solas dos pés ou choques elétricos, entre outros. “Os serviços de informações não só estão a deter e a torturar membros do exército, como nalguns casos chegam a perseguir as suas famílias e outros civis quando não conseguem encontrar os suspeitos”, acrescenta José Miguel Vivanco, diretor da Human Rights Watch para o continente americano.
A segunda via identificada por Rocío San Miguel tem a ver com o controlo dos recursos naturais da Venezuela, que Nicolás Maduro serviu como brinde a várias chefias militares. “No ano 2017, 47% dos ministros de Maduro eram militares. Hoje em dia só são 25% e isso só acontece porque os ministérios, em si, já não dão dinheiro”, explica. “Mas de qualquer das maneiras, os militares continuam a controlar os três recursos mais importantes do país: o petróleo, o ouro e a importação de comida”, continua Rocío San Miguel. A estes, junta-se ainda o narcotráfico e outros tipos de contrabando. “A Venezuela é o país com maior tráfico de cocaína do mundo. Depois há o tráfico de minerais, alimentos e combustível. Tudo isto acontece em enormes proporções e sempre pelas fronteiras. E quem as controla, claro, são as forçar armadas nacionais. Por isso, é impossível que estes tráficos não lhes passem pela mão”, completa a especialista.
Enfim, a terceira maneira engendrada por Nicolás Maduro para assegurar o apoio dos militares foi, na prática, eliminar as hipóteses políticas da oposição. “Ele desumanizou e destruiu a oposição, deixando o país sem a possibilidade de uma alternativa de poder na oposição. E, historicamente, os militares venezuelanos agarram-se ao poder”, sublinha Rocío San Miguel.
Entre estas três vias que levaram Nicolás Maduro ao controlo das forças armadas, a diretora do Control Ciudadano reconhece que agora, com a autoproclamação de Juan Guaidó, a terceira pode estar mais comprometida. Além disso, também os recursos que têm enriquecido os militares afetos ao chavismo podem, de repente, parar de render dinheiro. Para isso, basta que os países que já reconheceram Juan Guaidó imponham um embargo petrolífero à Venezuela — algo que os EUA consideram fortemente.
Será então possível que a influência de Nicolás Maduro junto dos militares colapse como um castelo de cartas nos próximos dias, com o exército a jurar lealdade a Juan Guaidó e à Assembleia Nacional oposicionista?
Para já, não há sinais nesse sentido, mesmo que um deputado daquele assembleia, William Barrientos, tenha dito ao The New York Times que já havia tenentes-coronéis e “até muitos generais” que disseram estar “dispostos a defender a Constituição, o Estado de direito e a vontade do povo venezuelano”. Mas a verdade é que as armas e restantes meios ainda estão, para já, nas mãos de Maduro e dos círculos que lhe são favoráveis.
Entre a paz e uma guerra civil, há um mundo de cenários — muitos delas mortíferos
Esta quinta-feira à tarde, o número de mortos em toda a Venezuela na sequência de manifestações contra Nicolás Maduro já tinha subido para 26. Além disso, os detidos eram mais de 300, incluindo os 27 militares que se amotinaram nos arredores de Caracas.
O ambiente é de crescente preocupação — e a violência, nas atuais condições, só tem por onde aumentar. Por isso mesmo, garante Hernán Castillo, a oposição não só não tem capacidade técnica como também não tem interesse para levar para a frente um golpe de Estado do tipo militar. “Isso só agravaria todos os problemas do país, sejam os políticos, sociais ou económicos”, garante, acrescentando que, nesse cenário, ao exército leal a Nicolás Maduro somar-se-iam ainda os colectivos, grupos paramilitares que controlam diferentes bairros por todo o país.
Também Rocío San Miguel descarta, para já, a possibilidade de haver uma guerra civil na Venezuela. “A única maneira de chegarmos a uma guerra civil é se as forças armadas se dividirem e isso não me parece provável. Historicamente, a Venezuela nunca fez isso. Nos golpes militares que temos na nossa História recente, em 1958, em 1992 e em 2002, as forças armadas estiveram sempre unidas, nunca se dividiram”, refere a diretora do Control Ciudadano.
E, à falta de uma cisão nas forças armadas, nenhum grupo dentro da Venezuela teria como fazer frente aos militares. “Não há nenhum lado capaz de estar armado e de executar operações militares ao mesmo nível das forças armadas nacionais. Essa é uma capacidade exclusiva das forças armadas”, sublinha.
Isso não quer dizer, porém, que a situação esteja perto de acalmar, com o regresso da normalidade às ruas venezuelanas — antes pelo contrário. “O nível de violência de caráter civil, que já é enorme, pode aumentar. Não nos podemos esquecer que há quase 15 milhões de de armas e munições ilegais nas ruas da Venezuela”, garante Rocío San Miguel. “Agora, mais do que nunca, quem sair à rua corre o risco de apanhar uma bala perdida”, assegura. E, quando é assim, pouco importa quem a dispara.