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AFP/Getty Images

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Pré-publicação. Fome de golo – os grandes goleadores do futebol português

Novo livro de Rui Miguel Tovar apresenta as histórias dos grandes goleadores que fizeram História no futebol português, de Pinga e Ronaldo passando por Peyroteo, Matateu, Eusébio ou Fernando Gomes.

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De Pinga, o génio de borracha, a Cristiano Ronaldo, que tem o mundo a seus pés, o futebol português foi conhecendo alguns dos maiores goleadores de sempre. Cada um com os seus clubes, cada um com a sua carreira, cada um com a sua história. História e histórias, muitas histórias. As mesmas histórias que são contadas como ninguém por Rui Miguel Tovar no seu mais recente livro “Fome de Golo”, da editora Clube do Autor. O Observador faz a pré-publicação de dois capítulos, escolhendo as figuras de Matateu, “a oitava maravilha”, e Ronaldo, mais uma vez candidato à Bola de Ouro que será conhecida esta segunda-feira. Mas ainda há Peyroteo, José Águas, Eusébio, Yazalde, Nené, Manuel Fernandes, Jordão, Fernando Gomes e Jardel, entre outros.

Matateu, a oitava maravilha

Quando se fala das sete maravilhas do mundo, há sempre quem defenda uma classificação ou a outra. Sim, existem as sete maravilhas do mundo antigo (Pirâmides de Gizé, Jardins da Babilónia, Estátua de Zeus, Templo de Ártemis, Mausoléu de Halicarnasso, Colosso de Rodes e Farol de Alexandria) e as do mundo moderno (Muralha da China, Petra, Cristo Redentor, Machu Picchu, Chichén Itzá, Coliseu de Roma e Taj Mahal). Por muita discussão, rios de tinta entre esta ou aquela, a oitava maravilha, essa, é intocável: é de origem moçambicana e chama-se Lucas Sebastião da Fonseca, vulgo Matateu. O elogio pertence aos ingleses.

«Matateu, a oitava maravilha». Eis o título do Daily Sketch, um tablóide nascido em Manchester nos anos 20 do século passado e entretanto sugado pelo Daily Mail nos loucos 70’s, por ocasião de um Portugal-Inglaterra (3-1), no Jamor, em Maio de 1955. «Um negro sempre sorridente de Moçambique é, esta noite, o rei do futebol português. Lá, foi-lhe dado o nome de Lucas, mas há muito tempo que já ninguém se preocupa com isso. Passaram a chamar-lhe Matateu — um cognome que significa “oitava maravilha do mundo” — desde que começou a driblar como um mago e a chutar como um canhão. «Fomos derrubados por essa oitava maravilha que rebaixou e humilhou uma Inglaterra destroçada e inebriada. E não há justificação porque, com excepção do maravilhoso Matateu, o grupo português é uma equipa de passeantes, com apenas uma vitória nos últimos 19 jogos.»

Calma, isto nem é nada. Porque Matateu é capaz de uma proeza ainda mais alucinante, no mês seguinte, com a eleição, por parte da imprensa europeia, de melhor jogador da Taça Latina, prova que antecede a Taça dos Campeões. A oitava maravilha até supera as vedetas do Real Madrid, campeão europeu em Paris. Como titulava a revista Miroir Sprint: «Di Stéfano perdeu o sorriso frente a Matateu.» Na altura, também o jornal L’Équipe lhe faz uma ode. «Matateu joga futebol como se estivesse a dançar ballet, tal a facilidade com que serpenteia por entre os opositores. Quando é carregado em falta, simplesmente levanta-se e continua a andar como se nada fosse. Ali não há maldade, só pureza.»

Alegria, sonho, pureza. Matateu é tudo isso num só. É único. As tardes de glórias acumulam-se umas atrás das outras desde o primeiro dia em Portugal. É uma terça-feira, 4 de Setembro. «Tratar tudo urgentemente stop Matateu embarque Lisboa primeiro avião stop.» Reza assim o telegrama do Belenenses, que lhe paga 30 contos de luvas, mais um ordenado mensal de 1600 escudos. Escreve o Diário de Lisboa, a uma coluna: «Vindo de Moçambique, chegou hoje de avião ao aeroporto, onde era aguardado pela direcção do Clube de Futebol Os Belenenses, o jogador Matateu, o mais popular avançado-centro da província, que ali jogava no Clube João Albasini, de Lourenço Marques. Matateu, de 24 anos, vai alinhar pelo clube de Belém e está creditado como elemento de grandes recursos.» Ai está creditado, está.

Matateu nem demora dez minutos a dar espectáculo. É a primeira jornada do campeonato, com o Sporting, nas Salésias. A bola vai parar-lhe aos pés e dá um nó cego em Juvenal antes de comandar o contra-ataque do 1-0, da autoria de Pedroto. Esse mesmo, o José Maria. O Sporting reage e dá a volta antes do intervalo. Na segunda parte, é um ver-se-te-avias. Aos 48 minutos, Matateu recebe de costas para a baliza, vira-se, dribla cinco adversários e atira rasteiro, sem hipótese para Azevedo. É o 2-2. A quatro minutos do fim, já com 3-3 no marcador, Matateu volta a dar que falar com sucessivos dribles em cima de três sportinguistas. Às tantas, toma lá, ó Azevedo. É o 4-3 final, é a loucura. Os adeptos invadem o campo e levam Matateu em ombros até aos balneários. Começa aqui a lenda. Que ainda hoje perdura.

Até ao final desse campeonato, em 1951-52, Matateu haveria de marcar também ao Porto (1-1 no Lima) e ao Benfica (2-0 nas Salésias). Na época seguinte, mais cinco golos aos três grandes. Sem esquecer a já merecida estreia na selecção AA, convocado pelo seleccionador Cândido de Oliveira, em Novembro de 1952. Entra ao intervalo para o lugar do benfiquista Caiado, num 1-1 com a Áustria, nas Antas. Até Maio de 1960, Matateu faz parte do onze ideal de Portugal e assina a espantosa marca de 13 golos em 27 internacionalizações. Para o definir melhor, Portugal marca 39 golos com Matateu em campo. Desses 39, um terço pertence-lhe. É um registo impressionante. Valioso. Poucos há assim, capazes de elevar o seu nome em tempos mais ingratos da selecção, entre 16 derrotas, três empates e apenas oito vitórias.

Matateu é homem dos maiores feitos. Com golos, assistências ou até fait-divers. Veja lá este aqui: há um Portugal-Argentina a 28 de Novembro de 1954. Ao intervalo, os altifalantes do Jamor anunciam Matateu como pai. De uma menina. Como se chama? «Como ainda não havia ecografias, a dúvida era se era rapaz ou rapariga. Uma vez definido o sexo, passou-se à escolha do nome e o jornal A Bola sugeriu o nome de Argentina ao Matateu e ao meu padrinho, um senhor muito importante do Belenenses chamado Manuel Vacondeus. Sabe como é, publicidade e tal. O meu pai aceitou e fiz-me Argentina. Se jogássemos nesse dia com o Japão, ficava Japão.» Argentina, ainda bem. É ela quem continua a gerir hoje o património do Belenenses, debaixo da bancada central do Restelo. Do pai, as melhores recordações futebolísticas. Das arrancadas, dos remates, dos golos, dos aplausos dos adeptos. Na verdade, Matateu é um avançado completo, cheio de energia, forte como um touro e com um sensacional tempo de salto. Ninguém lhe faz frente. E os golos aparecem-lhe de qualquer maneira e feitio, entre pé esquerdo e direito, dentro ou fora da área, e muitos de cabeça.

É um fenómeno. Disso mesmo dá conta Félix Mourinho. O guarda-redes do Vitória FC (Setúbal) defende um penálti de Matateu, em Setembro de 1956. «Foi uma defesa por instinto. Um pouco como aquela que fiz nos Arcos, em 1961, na estreia do Eusébio pelo Benfica. Na altura, o Eusébio atirou para a esquerda e eu fui lá. Com o Matateu, fui para o lado direito. Também defendi um penálti do Yazalde, do Sporting.» Destes três, quem é o rei? Mourinho responde sem pestanejar. «O Matateu era um fenómeno dentro da área, melhor até que o Eusébio. Quero dizer, dentro da área, a rodopiar sobre os adversários. Fora dela, o Eusébio foi o rei. O Yazalde era um espectáculo para qualquer um. De um fair play sensacional.» Que se esclareça um pormenor, no dia em que Mourinho defende o tal penálti, Matateu marcaria dois golos na goleada por 5-1. Outro detalhe, o rodopiar sobre os adversários. É a sua imagem de marca.

Na estreia europeia do Belenenses, vs. Hearts, em Setembro de 1961, o golo da consolação é um mimo. Simpson nem a vê. Escreve o Diário de Lisboa: «Um golo que não ficará mal colocado na vitrine dos feitos gloriosos do incomensurável Matateu, a quem nem os anos fazem mossa.» Outro feito são os golos em catadupa. Em Dezembro de 1957, marca cinco ao Braga na primeira parte. E acrescenta-lhe mais um na segunda parte. Ao todo, seis. É obra. De Matateu, pois claro.

Outra estreia, a do Restelo. O Belenenses convida o Sporting e ganha 2-1, na tarde de 23 de Setembro de 1956. O resultado está empatado até perto do fim. De repente, Matateu dobra os rins a Couceiro, tabela com Tito e finaliza de cabeça, em antecipação a Octávio de Sá. O Restelo transborda de alegria e aplaude vivamente a entrega do troféu ao capitão da equipa vencedora, Figueiredo. Passa um dia. Dois. Nem 48 horas depois da inauguração, e eis o Restelo a encher-se de pessoas mais uma vez. Agora, a ocasião é um jogo internacional para testar a electricidade do estádio. O adversário chama-se Stade de Reims, campeão francês em 1955. No seu onze, figuras imparáveis como Jacquet, Zimny, Jonquet, Hidalgo e Glowacki — todos eles presentes na primeira final da Taça dos Campeões em 1956, perdida para o Real Madrid. A este quinteto, acrescente-se o nome de Fontaine. Sim, esse mesmo, o melhor marcador do Mundial-58, com 13 golos (um recorde ainda em vigor numa só edição). Outro 2-1 para o Belenenses. Quem faz o segundo, de novo? Ah, pois é, Ma-ta-teu. Que é alvo de marcação individual rotativa: ora é Zimny, ora é Schöllhamer, ora é Panverne. Os três sentem enormes dificuldades para o travar. É um autêntico quebra-cabeças. Equipas como Sporting, Porto e Benfica marcam-no homem a homem num tempo em que nem se pensa nessas modernices.

Em 1957, o Belenenses faz uma excursão ao Brasil. Num dos jogos, com um misto Vasco/Santos, no Maracanã, o avançado sempre sorridente atira três bolas à trave, antes de um tal Pelé marcar os primeiros golos internacionais de uma carreira fulgurante. Dois anos depois, em 1959, dá-se o arranque da primeira fase de qualificação de sempre do Europeu. A Portugal calha-lhe a modesta República Democrática Alemã. Em Berlim, a jogatana de Matateu é tal que o seu nome é entoado pelos militares alemães nas bancadas. Quando o árbitro apita para o final, o português é rodeado pelos admiradores e atira para o jornalista Aurélio Márcio, d’A Bola: «Viste os russos a chamar pelo meu nome?» Desconcertante. Como numa entrevista com António Baptista-Bastos.

— Costuma ler?
— Jornais. A secção desportiva dos jornais. Gosto muito de ver o meu nome nos jornais.
— Gosta de música?
— Um pouco. Samba. Sim, gosto de samba.
— Que divertimentos prefere?
— O cinema. Mas é uma chatice. Adormeço sempre. As letras daquilo que eles dizem passam a correr. Adormeço sempre.
— Você tem viajado muito. De que país gostou mais?
— Da Itália.
— Porquê?
— Por causa das mulheres. Lindas.
— Ouça uma coisa, Matateu…
— Olhe, escreva o que quiser; é assim que eu faço sempre, quando estou com um jornalista que me parece bom rapaz. Escreva o que quiser e ponha essas palavras na minha boca. À vontade. Mas não ponha lá que eu disse mal… Matateu não diz mal de ninguém.

Nada de dizer mal de ninguém, agora fazer mal aos guarda-redes já é uma constante. Desde sempre. Desde Moçambique, onde nasce no bairro do Alto Mahé, como filho do casal Lucas Matambo e Margarida Heliodoro. Sem qualquer aptidão para a escola, passa o dia a jogar futebol de rua. Todos o conhecem. E todos lhe chamam Matateu. Que vem de tateu em landim significar pele a cair — ou crosta. Ele explica: «Quando me magoava em criança, não tinha paciência para aguardar que a ferida secasse, arrancava a crosta antes de tempo.» Impaciência, ora aí está uma característica bem vincada de Matateu. Sobretudo na hora de rematar à baliza. Daí os golos a torto e a direito, muitos deles impossíveis, outros banais. Ao todo, 218 em 289 jogos na 1.a divisão, que lhe garantem o título de melhor marcador em duas ocasiões [29 em 1952-53, mais 32 em 1954-55]. Como se isso fosse pouco, é ele quem marca o golo da vitória da Taça de Portugal-1960, frente ao Sporting, no Jamor. A jogada é de contra-ataque, cortesia Yaúca. Quando Octávio de Sá lhe sai aos pés, a bola é desviada para a direita, e Matateu, sempre mais lesto do que os outros, arruma a questão. É o 2-1 definitivo. É o único título do Belenenses até 1989. É o único título de Matateu no Belenenses.

Nada de campeonatos? Nem um para amostra. Em 1955, o título foge-lhe a quatro minutos do fim, por culpa de uma recarga vitoriosa de João Martins, o «sexto violino», a uma defesa incompleta de José Pereira. Com o 2-2 no marcador frente ao Sporting, o Belenenses é ultrapassado pelo Benfica na última jornada. Uma dor imensa trespassa a alma de todo e qualquer belenense. Matateu é um deles. Tal como Vicente, o seu irmão e genial marcador de Pelé (elogiado pelo brasileiro a respeito de duas exibições imaculadas, sem puxões na camisola nem faltas desnecessárias). Quando Vicente tem o acidente de viação e é obrigado a deixar o futebol, o Belenenses prepara-lhe uma festa de despedida. O artista convidado é o rival fidagal Atlético. Quem joga lá? Esse mesmo, Matateu. Será ele o único homem à face da Terra para fazer os adeptos azuis aplaudir um jogador de vermelho e branco? Boa pergunta. O Belenenses, que ganha 4-3, contrata o brasileiro Ivair à Portuguesa dos Desportos só para este jogo. Outros tempos. No outro lado, Matateu apresenta-se no onze do Atlético e é aplaudido pelos adeptos. Os do Belenenses, claro. Que enchem o Restelo para homenagear Vicente e o irmão. Matateu entra em campo e marca pontos. Com aplausos e vivas. Depois, marca golos. Dois. Na baliza, José Pereira, o famoso Pássaro Azul. Matateu é Matateu. Grande, enorme. Que ultrapassa qualquer barreira. Até a da rivalidade do dérbi ocidental.

Por essa altura, Matateu já ajudara o Atlético a subir à 1.a divisão à custa dos seus 28 golos. Um deles é o da finalíssima para apurar o campeão, vs. Sanjoanense. Um remate vistoso fora da área a fixar a derrota por 2-1. É aos 39 anos que goza da última experiência na 1.a divisão, pelo Atlético. E sai-se com nota artística, graças aos nove golos, sete dos quais na primeira volta (um ao Sporting, outro ao Benfica). Já nos entas, Matateu diverte-se e diverte-nos: Gouveia 1967-68, Amora 1968-69 e Chaves 1969-70. No meio está a virtude. É no Amora que Matateu dá mais nas vistas. Com um ordenado mensal de três contos. «Muita gente tem-me dito: “Então, Lucas, tu foste internacional tantas vezes, aceitas ir jogar para um clube assim que nem é da 3.a divisão?” Mas respondi sempre que isso não me interessava, futebol é futebol e é igual em toda a parte, isso de divisões tanto me faz, a primeira como a segunda ou a terceira, são só números e nada mais. O futebol é só um e é sempre o mesmo, o que importa é que eu me dê bem com os colegas e com toda a gente e que o dinheiro não falte no fim do mês.»

Com 21 golos na 1.a divisão distrital de Setúbal, é não só o melhor marcador do campeonato como ajuda o Amora a subir à 3.a nacional (na final, é seu o cruzamento na linha de fundo para o solitário 1-0 de Toni Brito ao Seixal). Com cerveja ou nem por isso? «Tenho 41 anos e sinto-me com 19, porque estou conservado em cerveja. Acredite, quando não bebo cerveja, não sou o mesmo, sinto-me mal e o meu rendimento é sempre inferior. Se não bebesse cerveja, já teria arrumado as botas há muito tempo.» Que craque, o Sebastião Lucas da Fonseca. Ou simplesmente Matateu. Ou, então, a «oitava maravilha». Agora escolha.

Cristiano Ronaldo, o mundo a seus pés

Há quem diga que o cinema é acção, mas é um equívoco. O movimento é apenas uma parte do cinema. O espectáculo também não é o cinema. E também não é cinema fotografar actores a representar. Fiar-se nos actores é pedir emprestado ao teatro. Para os entendidos, como Alfred Hitchcock, a montagem é o aspecto essencial de um filme. E basta ver a cena do chuveiro em Psycho. A faca de Anthony Perkins nunca toca o corpo de Janet Leigh no ecrã. Dá-se a impressão de que sim, só que, na realidade, não toca. O efeito é da montagem. E também não se mostra nenhuma parte do corpo feminino que possa ser considerada tabu. A ilusão de nudez é também alcançada através da montagem. Há 70 planos com trucagens diferentes em 45 segundos. Tudo «culpa» da montagem. No futebol, as palavras acção, movimento e espectáculo desaguam invariavelmente em golo. Se for de livre directo, é uma montagem. Porque o jogador nunca vê a baliza toda e nem sempre o guarda-redes assiste à partida da bola. De repente, alegria de um lado e tristeza do outro. Tudo «culpa» da montagem. Como nos filmes. Inventámos esta linha de pensamento agora mesmo para nos sentirmos mais confortáveis na abordagem da temática dos livres directos, um capítulo dominado por Ronaldo (sete na selecção — recorde nacional — e 61 na carreira — a 25 de Zico).

Livres directos? Baaaaah, Ronaldo faz acção, movimento e espectáculo em tudo. Ele é livres directos, ele é penáltis, ele é jogadas individuais, ele é remates de primeira e sem preparação, ele é com o pé direito, ele é com o pé esquerdo, ele é de cabeça, ele é de calcanhar, ele é de bicicleta. Ele é tudo, de qualquer maneira e feitio, de qualquer lado. Até sem ângulo. É literalmente craque da cabeça aos pés, recordista de categorias infinitas. A história é assim há anos e anos. Ronaldo é Ronaldo, não há volta a dar. É o melhor marcador de sempre da Taça/Liga dos Campeões (e só começa a marcar a partir do 30.º jogo). É o melhor marcador de sempre do Real Madrid. É o português melhor marcador de sempre, à frente de dois fura-redes intemporais como Peyroteo e Eusébio.

A magia de Ronaldo é mesmo essa de nos surpreender a cada instante. Antes, é magrinho. Agora, é um touro. Antes, é um fantasista com queda para os dribles estonteantes (às vezes, poucas vezes, inconsequente). Agora, é um goleador nato. Estilo Hugo Sánchez, melhor marcador do campeonato espanhol 1989-90 com 38 golos, todos ao primeiro toque. Ronaldo está nesse caminho do toma lá, dá cá. Claro, a finta é a sua melhor imagem de marca. Quando alguém lhe aparece à frente, vai dar nó. Só que quando ninguém se aproxima, Ronaldo espalma a bola e é o forrobodó. Antes ou agora, o apetite insaciável pelo golo é de sempre. Nunca muda. O primeiro ao serviço da selecção é em Torres Novas, a 24 de Fevereiro de 2001, pelos sub-15. Ronaldo veste o número 9. Das mil e poucas pessoas nas bancadas, todas o aplaudem. Sem o conhecer minimamente. É aplaudir por patriotismo. «Era um trinca-espinhas», garante Carlos Godinho, director desportivo da Federação. Nesse jogo com a África do Sul, o 1-0 é de Diogo Andrade. O 2-0 final é de Ronaldo. Na estreia, um golo. Está lançado, o miúdo.

Passam-se dois meses e, em Abril, a selecção sub-15 volta a jogar. É o popular torneio de Montaigu. No primeiro jogo, um golo de Ronaldo no 2-2 com a anfitriã França. No segundo, descanso vs. Camarões. No terceiro, o Japão é cilindrado por 7-0. No ataque, o trio Ronaldo, João Vilela e Hugo Monteiro. Dos três, sé um se destaca: Ronaldo, com golos aos 33, 43 e 70 minutos. Diz o seleccionador Silveira Ramos: «Abriu o livro, assim do nada. Já sabíamos dos repentes dele, mas ali ficou vincado o seu estilo que ainda hoje perdura.» A fome de bola leva-o aos sub-17 e assina seis golos (Finlândia, Holanda, Inglaterra, São Marino e Andorra-2). Assim como quem não quer a coisa, já estamos no Verão de 2002. O treinador do Sporting é o romeno Laszlo Bölöni, conhecido pela aposta destemida em juniores como Quaresma e Hugo Viana, peças-chave na conquista do título de campeão português 2001-2, ao lado de monstros consagrados, estilo André Cruz, Paulo Bento, João Vieira Pinto e Jardel. Na pré-época, Bölöni chama Ronaldo, e o jovem corresponde à sua imagem. Com um golo. Ao Betis, na Maia.

Dia 4 de Agosto, tarde quente. Prepare-se, vai aquecer ainda mais. Aos 28 minutos, Toñito lança Quaresma, e 1-0. Quatro minutos depois, Joaquín ultrapassa o chileno Contreras e o argentino Quiroga antes de cruzar para o 1-1 de Alfonso. Mais golos só na segunda parte. Aos 55 minutos, Prats passa a bola a Quaresma, facto devidamente aproveitado para um centro na direcção de Pedro Barbosa: 2-1. O Betis reage e empata novamente, aos 85 minutos, bis de Alfonso, agora de cabeça, após livre pela esquerda de Calado — esse mesmo. Quando já toda a gente espera o apito final, chega o momento alto do jogo, com Cristiano Ronaldo a ser mais rápido do que Prats e a rematar ao ângulo superior esquerdo, sem espaço por aí além. No final, Bölöni refreia os ânimos da imprensa, já pronta a coroar Ronaldo. «Acredito nele, porque tem talento. Mas se pensa que um campo de futebol é uma sala de ballet, ou se pensa que já é jogador de futebol, está a incorrer num erro enorme. Tudo farei para que não pense desta forma. Fala-se muito do Ronaldo. Basta, ainda só marcou um golo.» Um, não. No particular seguinte, Ronaldo marca o segundo o cioso, num 12-0 ao Alcanenense.

Ainda a época 2002-3 vai no adro e já Ronaldo faz das suas, num Sporting-Moreirense, a 7 de Outubro. Na baliza, João Ricardo, titular de Angola no Mundial-2006. «O 1-0 é daquele bielorrusso, o Kutuzov. O 2-0 é do Ronaldo, ainda na primeira parte. Arranca do meio-campo e então não é que ninguém dá com um pau no gajo? Entrou na área, tentei a mancha, mas ele picou-me a bola. Golo. Na segunda parte, faz o 3-0 e ainda atira uma bola à barra. Não sei se foi o primeiro jogo dele a titular ou não, mas a verdade é que esse jogo deu-lhe mais visibilidade do que nunca. Naquela altura era o Quaresma a figura, o homem do momento. A partir daí, o Ronaldo deu o salto.» E de que maneira. Ainda em Outubro, no Bessa, o clássico Boavista-Sporting arrasta-se para um empate. Ao penálti de Jardel (45 minutos), responde Martelinho (70 minutos) a aproveitar um clamoroso erro de Contreras. É então que Bölöni faz entrar Ronaldo para o lugar de Quaresma, aos 81 minutos. No instante seguinte, Beto vê o amarelo por derrubar Cafu. Aos 85, o mesmo Éder impede um golo de Beto na linha. Aos 87, Jardel atira à figura de Ricardo. Ya, o 1-1 afigura-se como provável. Calma. Em cima dos 90 minutos, Carlos Martins descobre Ronaldo dentro da área e o número 28 bate Ricardo. Até final dessa época, Ronaldo já aparece nos sub-21 de Portugal (um golo à Grécia, outro à Inglaterra). Pelo meio, uma batata ao Estarreja (4-1) e mais uma à Oliveira do Hospital (8-1), ambos para a Taça de Portugal.

É Verão, de novo. A selecção apresenta-se em Toulon para o mais reputado torneio de jovens de que há memória. O seleccionador Rui Caçador tem a equipa na cabeça, entre Bruno Vale; Miguel Garcia, Zé Castro, Pedro Ribeiro e Vítor Rodrigues; Meireles, Faria, Davide e Ronaldo; Lourenço e Hugo Almeida. O começo é de sonho: 3-0 à Inglaterra e 3-0 à Argentina. É de Ronaldo o primeiro golo. Segue-se a derrota com o Japão(1-0) e mais uma vitória (Turquia, 3-1) antes da final. Aparece-nos a Itália e resolvem os suplentes João Paiva mais Danny (3-1). A glória é um estado permanente na vida de Ronaldo. Um mês depois, é a inauguração do novo Estádio José Alvalade. Para a estreia, o Manchester United. É um arranjinho de Carlos Queiroz, ex-treinador do Sporting e então adjunto de Alex Ferguson. A coisa faz-se tranquilamente, a 7 de Agosto de 2003. Luís Filipe marca o primeiro golo do estádio, João Vieira Pinto estica a vantagem para 3-0 e só um autogolo de Hugo encurta a distância. Nenhum destes nomes salta para as primeiras páginas dos jornais, só o de Ronaldo. Todos os jogadores do United andam vidrados com o puto-maravilha, que destroça a defesa, sobretudo o pobre irlandês O’Shea, fintado vezes sem conta. Ao intervalo, já Ferguson mandara o roupeiro chamar Peter Kenyon, o homem do dinheiro no United. Quando lhe perguntam se vale meeeesmo a pena, o treinador escocês desarma qualquer um: «John O’Shea acabou com enxaqueca, contrata-o e já!»

No United, o artista português ganha músculo, experiência, categoria e tudo isso. Mais a camisola sete, a mítica sete. Essa mesma, a de George Best, Bryan Robson, Eric Cantona e David Beckham. É o próprio Ferguson quem o desafia a vestir o sete. Best aplaude. «Ora aí está finalmente um jogador à minha imagem, irreverente, sem medo do drible nem dos adversários: Ronaldo tem tudo.» Tem mesmo. E o United sabe-o. Tal como o holandês Van Nistelrooij, seu companheiro no ataque. Os dois entendem-se de olhos fechados na primeira época. E na segunda também. Já na terceira é que não. Em 2006, conta Ferguson, «Ruud mudou e não sei ainda a razão. Primeiro insultou-me quando lhe disse que ia ser suplente na final da Taça da Liga, o Carlos virou-se contra ele e aquilo ficou feio no banco.» É o dia do United-Wigan em Cardiff, a dupla de avançados de Ferguson é Rooney mais Saha. Curiosidade: os dois marcam. Rooney 2, Saha 1. O outro é de Ronaldo, 4-0. Mais zangado do que nunca, Ruud descarrega a fúria em Ronaldo. «Uma vez, num treino, pontapeou Ronaldo e disse-lhe: “O que vais fazer, queixar-te ao papá?”» Ruud refere-se a Queiroz, mas a verdade é que Ronaldo perdera o pai há pouco tempo e o comentário afecta-o. A ele e ao United — Van Nistelrooij é transferido para o Real Madrid. «Todo o episódio foi muito triste», relata Alex.

Problemas à parte, Ronaldo eleva o seu jogo na Premier League. Aqui o elevar tem o que se lhe diga, porque há dois golos inesquecíveis de cabeça. Um é em Roma, em Abril de 2008. Ele salta mais de três metros para conectar um cruzamento da direita. Pobre Doni, pobre Roma. Passam-se alguns dias, tipo um mês, e o homem repete o salto mágico na final da Liga dos Campeões, em Moscovo. Pobre Cech, pobre Chelsea. No ranking dos grandes golos pelo United, um outro salta à vista. E, desta vez, o salta é traiçoeiro. Com o Porto, no Dragão, a eliminatória está a pender para o FCP, por via do 2-2 em Old Trafford. Estamos em Março de 2009, o jogo dos quartos-de-final da Liga dos Campeões continua em fase de estudo, 0-0. Às tantas, Ronaldo pega na bola, dá um toque para a frente e dá uma sapatada com uma força inaudita. Helton até está bem colocado, só que fazer o quê? A bola entra num piscar de olhos, à velocidade de 102 quilómetros/hora. É eleito o golo do ano pela UEFA. Só pode. Na eliminatória seguinte (meias-finais), o United calha com o Arsenal. Em Londres, joga-se um lugar na final. É o tudo ou nada. E aparece o (super-) homem. Que demora qualquer coisa como nove segundos desde o toque de calcanhar de Park até ao golo na cara de Almunia. Pelo meio, a bola ainda passa pelos pés de Rooney. Para Ferguson, «é o golo mais perfeito» da sua infinita carreira. Bola extra: é uma correria de 76 metros, de uma área à outra. Chega, é tempo de dar o salto. Aqui o salto é metafórico.

Com nove títulos no bolso (Liga dos Campeões 2008 incluída) e entre 118 golos em 292 jogos, Ronaldo sai para o Real Madrid em 2009. Enche os cofres do United, qualquer coisa como 96 milhões de euros. É o jogador mais caro de sempre e vai entrar para o maior clube do mundo. Na primeira época, mais jogos do que golos (35-33). Tssss tssss. Na segunda, mais do mesmo (54-53). O que se segue é im-pre-ssio-nan-te. Em especial em 2012, com 60 golos. Sessenta. Bate-se um recorde nacional, à frente dos 58 de Eusébio. Desses 60, sete por Portugal e 53 pelo Real Madrid. O registo é avassalador, até porque marca na maioria dos jogos (diga lá 33) e às vezes, quando o faz, é de uma pontaria incomum. A saber: oito bis, oito hat-tricks e ainda um póquer (vs. Sevilha, fora). Como se isso fosse pouco, é o melhor marcador da Liga espanhola. E também da Europa. Bota de Ouro, portanto. A segunda. Uma pelo United, outra pelo Real Madrid. A dinâmica repete-se em Ligas dos Campeões e Bolas de Ouro. No pares, sigue sigue.

Siga a marinha. Mesmo. Até na selecção. Conquistado Toulon, em 2003, é hora de abraçar os AA. Scolari lança-lhe o isco, em Agosto de 2003, com o Cazaquistão, em Chaves. Em menos de um ano, Ronaldo é a figura de Portugal. Falamos-lhes do Euro-2004. É o número 17 e começa no banco de suplentes. A tempo ainda de participar no jogo de abertura, com a Grécia, no Dragão. Além de ser o autor do penálti sobre Seitaridis no 2-0 de Basinas, é ele quem fixa o 2-1, de cabeça, após canto de Figo, na esquerda. Marcaria ainda à Holanda, na meia-final, outra vez de cabeça, a canto de Deco. O rapaz acha-se o Klinsmann (avançado alemão que concilia Euro e Jogos Olímpicos em 1988) e dribla as férias com uma ginga de corpo. Ala para a Grécia, o berço dos Jogos Olímpicos. Lá, Portugal é eliminado na primeira fase, num grupo acessível com Iraque, Marrocos e Costa Rica. Contabilizamos duas derrotas por 4-2 e uma só vitória, com golo de calcanhar de Ronaldo (2-1 a Marrocos).

No Mundial-2006, Cristiano pede ao capitão Figo para marcar o penálti do 2-0 ao Irão. A bola entra e o 17 aponta para o céu, em jeito de homenagem ao pai, o autor da frase lendária «o meu filho é uma força da natureza» ainda o rapaz nem saíra do Sporting para o United. O regabofe continua no Euro-2008, já com o 7 nas costas a aproveitar a retirada internacional de Figo, com um golo à República Checa de Petr Cech, a quem já havia marcado no mês anterior, para a final da Liga dos Campeões (repetimo-nos, que cabeceamento naquele United-Chelsea). Já vamos em quatro fases finais. Cinco, com o Mundial-2010, na África do Sul. É o primeiro Mundial no Continente Negro e Ronaldo aparece como capitão. O 6-0 à Coreia do Norte é dele, num misto de sorte (ressalto) e génio (malabarismo). No Euro-2012, de novo com a braçadeira e já com Paulo Bento no lugar de Carlos Queiroz, bis à Holanda (2-1) no apuramento para os quartos-de-final e golo à República Checa (Cech again) a caminho das meias. Sete fases finais. Mais uma e apanha Klinsmann. Atenção, Ronaldo só tem 29 anos e Klinsmann já é o seleccionador dos EUA; adversário de Portugal em Manaus. Acaba 2-2, sem golos de Ronaldo. Esse está guardado para o adeus doloroso, vs. Gana, em Brasília.

No Euro-2016, o capitão assina o ponto vs. Hungria, em dose dupla (3-3). O primeiro golo é sublime, de calcanhar. O segundo também, de cabeça. Agora escolha. Na meia-final, 1-0 a Gales de cabeça. Mais um golo em que salta como se fosse LeBron James. Tremendo. Ninguém o aguenta, ninguém o supera. Na Taça das Confederações, 1-0 à Rússia de cabeça. E outro golo à Nova Zelândia. Nove fases finais sempre a marcar. Ou dez, se continuar assim no Mundial-2018. Se? Essa é boa. Na primeira jornada, Ronaldo festeja um hat-trick frente à Espanha (3-3). E continua on fire, com Marrocos (1-0). Dez fases finais seguidas sempre a facturar. Há espaço para a décima primeira? Mesmo que não houvesse, ele abriria caminho. O sucesso está-lhe no sangue.

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