No começo da semana uma notícia contava que a cadeia de restauração McDonald’s fazia uma separação sexista entre rapazes e raparigas no seu conhecido Happy Meal. Tudo porque, até 18 de fevereiro, oferecia dois tipos de brinquedos: o My Little Pony, rotulado como sendo para raparigas, e os Transformers, para rapazes. Não é a primeira vez que acontece. E não só na McDonald’s.
A McDonald’s Europa, desde Londres, emitiu uma comunicação escrita e admitiu mudar a política brevemente em Portugal. “Há alguns anos agimos no sentido de que os nossos empregados mudassem a forma como se referiam aos brinquedos do Happy Meal. Por exemplo, nos EUA, têm instruções para falar do nome dos brinquedos sem qualquer referência a género. Esta diretiva está no manual de treino que é suposto seguir. De acordo com a nossa política global, as equipas [em Portugal] serão instruídas para descrever os brinquedos pelas suas qualidades e não oferecer certos brinquedos a rapazes e outros a raparigas”, lê-se no comunicado.
Aquela cadeia de restauração não está sozinha. A notícia rebentou em Portugal esta semana, mas a empresa acompanha uma tendência que tem sido adotada por outras marcas. No Halloween de 2015, a Disney optou por classificar os fatos no site como “fatos para crianças” ao invés do habitual “fatos para meninas” e “fatos para meninos” e a Toys “R” Us anunciou uma coleção “Gender Neutral Baby” — aqui não há azul nem rosa, há roupas em tons de laranja, castanho e cinzento. A Target, marca americana de brinquedos, seguiu o mesmo caminho e várias marcas de roupa apostam também em “roupas neutras”. Os exemplos não param de crescer.
“Não se deve impor um brinquedo a uma criança porque é rapaz ou rapariga. Deve ser ela a escolher”
Mas fará sentido o retratamento da marca? O pediatra Mário Cordeiro acredita que não. “Não me parece que o facto de haver um brinquedo que é para rapaz e outro que é para rapariga seja ofensivo. Eu defendo a igualdade de género — e defendo-a em qualquer idade. Mas os rapazes e as raparigas não são iguais.” O pediatra vê nos brinquedos, diferentes para cada um dos géneros, uma questão meramente simbólica: “Sim, é. Como o azul e o cor-de-rosa nos boletins de saúde das crianças. Como os símbolos nas portas das casas-de-banho. Estamos a falar de crianças. É uma não-questão. Um não-problema.”
Mas o especialista alerta que uma coisa é igualdade de género — e que essa não está em causa aqui –, outra é a liberdade de escolha. “Não se deve impor um brinquedo a uma criança porque é rapaz ou rapariga. Isso não. Deve ser ela a escolher. O que a McDonald’s deveria fazer, ela e outras marcas, era criar uma gama de brinquedos vasta. Uma para rapazes, outra para raparigas e outra mais transversal ainda, para ambos. E são eles que escolhem qual querem. E os pais não se devem assustar, entrar em pânico, sentir quase um terror porque o filho escolheu a princesa e a filha um super-herói.”
Confundir identidade de género, experimentação, sexualidade e orientação sexual é algo habitual no consultório do pediatra. “É a partir dos dois anos de idade, pouco mais, que começa a identificação com o sexo. Eu sou rapaz porque tenho uma pilinha, eu sou uma rapariga porque tenho um pipi. Isto não é o mesmo que falar de orientação sexual. O facto de um rapaz querer brincar com uma boneca não faz dele homossexual. O mesmo em relação às ‘maria-rapaz’, que gostam de jogar futebol, por exemplo. Depois, as crianças começam a identificar-se com os progenitores do mesmo sexo e a replicar os seus comportamentos.”
Os cérebros são diferentes
Os rapazes e as raparigas são diferentes. Não só no género, nas escolhas que fazem, mas no que condiciona essas escolhas: a biologia, o cérebro. Diana Prata é neurocientista e investigadora principal no Instituto de Medicina Molecular. E explica que diferenças são estas a nível do cérebro. Diferenças que se conhecem desde cedo. Muito cedo. “Sim, os cérebros dos rapazes e das raparigas são diferentes. E são-no desde o útero. Por exemplo, existe um corpo caloso, mesmo no centro do cérebro, a unir os dois hemisférios, que é maior nas mulheres do que nos homens. Por outro lado, no total do volume, o cérebro masculino é maior. Estas são diferenças básicas.”
Mas pensemos no que um e outro cérebro fazem de diferente. “As mulheres, por exemplo, são melhores na comunicação – é também por isso que as raparigas tendem a começar a falar mais cedo do que os rapazes. Eles, por sua vez, são melhores na navegação espacial, no imaginar da rotação dos objetos, na tridimensionalidade, na própria orientação”, explica Diana Prata.
E recorda alguns estudos da neurociência que ajudam a compreender o porquê das escolhas das crianças, quando rapazes e quando raparigas. “Alguns dos estudos são realizados em bebés até aos dois anos de idade, bebés que, não socializando muito ainda, não podem por isso ser influenciados pelo meio envolvente, pela cultura. E esses estudos revelam que os rapazes selecionam preferencialmente os carros para brincar e as raparigas as bonecas. O que é interessante é que estes estudos são realizados em diferentes países, continentes e culturas. E os resultados são semelhantes em tudo. Há até um estudo que é muito conhecido, realizado pelo neurocientista Simon Baron-Cohen, em que são analisados os cérebros dos bebés logo no primeiro dia de vida. O que Baron-Cohen fez foi analisar os comportamentos deles, rapazes e raparigas, diante de determinadas imagens. Os rapazes fixam-se mais tempo numas imagens e as raparigas noutras.”
Baron-Cohen, no seu livro “The Essencial Difference: Men, Women and the Extreme Male Brain”, apresenta dois tipos de cérebro: o voltado à empatia, ou empathizing, mais comum nas mulheres, e o sistematizador, ou systemizing, mais frequente nos homens. O feminino permite a melhor compreensão do outro e das emoções, enquanto o masculino demonstra maior habilidade no entendimento de coisas e de sistemas.
Mas o que é que pesa mais, a questão biológica ou a cultural nas decisões e escolhas de uma criança? Diana Prata não tem dúvidas. “Os cérebros dos bebés surgem com certas predisposições, é verdade. Mas o cérebro adapta-se ao meio, ponto. As decisões que o cérebro toma, mais racionais ou mais intuitivas, são decisões para se adaptar ao meio. Creio que ambas têm o seu peso. Mas a genética não pode ser manipulada pela cultura, claro. Ou é difícil que o seja. Por isso eu diria que as escolhas, pelos brinquedos, pelo que for, são biológicas. E é essa biologia que se adapta à cultura, apreendendo-a.”
E quando as crianças escolhem brinquedos do género oposto?
Mário Cordeiro rejeita completamente que se negue à criança um brinquedo só porque é “de menino” ou “de menina”. E explica: “Os pais chegam ao consultório ansiosos, assustados, porque o filho, rapaz, resolveu calçar os sapatos da mãe. Isso não significa nada. É apenas a experimentação do que é o sexo oposto. A curiosidade pelo sexo oposto. Como me sentiria, sendo rapaz, se fosse rapariga?”
O pediatra recorda um episódio curioso para explicar que experimentação é esta. “Isto passou-se vai para mais de 20 anos, em Inglaterra, quando lá estava a trabalhar e escrevi um livro sobre um adolescente. Era o diário desse rapaz de 14 anos. E na altura recebi muitas cartas de adolescentes. Eles, os rapazes, diziam que nada daquilo era novidade para eles, mas que gostariam que escrevesse o diário de um rapariga, para que eles soubessem como é estar na pele delas, como é que elas pensam. Elas, por sua vez, mostravam-se surpreendidas pelo que era ser rapaz. Os rapazes e as raparigas, quando crianças ou adolescentes, querem descobrir-se, primeiro, e depois saber como é estar no lugar do outro sexo.”
O que também é comum acontecer, até em oposição à procura, é o afastamento. “Sim, é curioso que os rapazes e as raparigas se afastam. E afastam-se por uma questão de identidade de género. Os rapazes procuram a afirmação do ‘ter’. São mais fálicos – não é por acaso que o símbolo que identifica o masculino é a espada de Marte –, mais adrenalínicos, mais de saltos e pulos, querem ser futebolistas e espadachins. Elas, por sua vez, procuram a afirmação do seu género pelo ‘ser’ e pelo ‘parecer’. Querem ser princesas, gostam de se arranjar, de se apresentar. E como as afirmações são diferentes, elas acham-nos uns chatos, e eles acham-nas aborrecidas de morte. A aproximação, a procura de um pelo outro, só surge mais tarde, na adolescência e com a puberdade.”
“Maria-rapaz” e menino “maricas”: uma luta desigual
Nisto de desafiar as convenções de género, as meninas podem ser mais rebeldes do que os rapazes. Prova-o as meninas com camisolas largas e boné na cabeça e os rapazes que não gostam de jogar futebol mas preferem fazer penteados às colegas. As primeiras são “engraçadas”, os segundos são “maricas”. A prova está também na experiência de Diane Ehrensaft. “Quando as crianças são mais pequenas, nós damos mais permissão e abertura a que uma menina se comporte como um menino. Os pais ficam mais alarmados quando vêem os seus meninos a serem femininos do que as suas meninas a serem masculinas”, explicou-nos a psicóloga clínica e autora do livro “Gender Born Gender Made – Raising Non-Conforming Children”, em junho do ano passado. “É preciso dar às crianças ‘criatividade de género’, ou seja, deixá-las explorar, deixá-las ser criativas nesse sentido, sem medo. A criança vai ser sempre a autora da sua identidade de género. Os pais não podem fazer nada”.
Se as crianças absorvem o que ouvem e o que veem, se adotam como certa a cultura e a educação que recebem, então vão reproduzi-la no relacionamento com os outros. Por isso, uma criança que saia da norma chamará a atenção para a sua diferença face aos outros. João é uma dessas crianças. Esta é a primeira frase que diz aos colegas novos que conhece na escola: “Olá, eu sou o João e gosto de brincar com coisas de menina”.
E é essa frase que serve para João decidir se vale a pena ou não ficar amigo dos meninos novos. “Se são meus amigos têm de perceber que eu gosto de coisas diferentes. Eu não acho que sejam coisas só para meninas, acho que é para rapaz e para rapariga. Se posso dizer e não gozam comigo é porque são mesmo amigos. Gostava que toda a gente gostasse de tudo, sem ser mau e bater e isso”.
Na escola, a educadora de João disse-lhe que a mãe dele era “maluca” por lhe dar o Nenuco que ele queria e não o deixou pedir o que ele queria ao Pai Natal. O João sofreu vários ataques no supermercado quando estava a comprar a revista da Violeta. “Ainda hoje me arrependo de não ter comprado o fato da princesa na Euro Disney que o João queria”, contava-nos a mãe, em outubro de 2014.
Sandra é mãe de um menino transgénero, porque manifestou uma identidade de género diferente da atribuída à nascença durante um longo período de tempo e de forma constante. Mas Sandra é também um exemplo daquilo que os especialistas consideram uma boa atitude a tomar: dar liberdade e não punir a criança por não corresponder ao esperado pela sociedade.
O que significa o conceito de identidade de género?
Identidade de género e orientação sexual são conceitos completamente diferentes. Quando se pensa em identidade sexual, há quatro conceitos envolvidos, clarificou ao Observador Zélia Figueiredo, psiquiatra e especialista na área da sexologia clínica. São eles: o sexo biológico (que é atribuído no nascimento), a identidade de género (aquilo com que nos identificamos e que é subjetivo, não está à vista), a expressão de género (relacionado com a construção social, aquilo que é apresentado na relação com os outros, ter uma expressão ‘mais feminina’ ou ‘mais masculina’), e depois há a orientação sexual (preferências que têm a ver com a atração e com os afetos, com o lado emocional – ‘eu gosto de alguém com determinadas características’). A componente mais fluida na infância é a expressão de género, ou seja, a forma de apresentação aos outros e de representação de papéis.
A identidade de género de cada um é constituída com base em três áreas, esclareceu Diane Ehrensaft, psicóloga clínica norteamericana:
- Biologia: os cromossomas, os recetores hormonais e os sinais neurológicos do cérebro;
- Educação: os pais ou os educadores que temos ao longo do crescimento, os professores, as figuras mais próximas com quem convivemos, a instituição religiosa em que crescemos;
- Cultura: os valores culturais, as leis e práticas da sociedade em que estamos. As noções de género são diferentes de cultura para cultura. Diane dá um exemplo: na Escócia os homens vestem saias e é suposto que o façam. “Esta é a parte cultural do género, daquilo que é aceitável e recomendável ou não”, explica.
Quando os pais não lidam bem com as escolhas dos filhos
Condenar, punir e castigar nunca é boa opção. Todos os especialistas ouvidos pelo Observador concordam num ponto: é preciso dar liberdade às crianças para brincarem e para se exprimirem. No consultório da especialista americana, em São Francisco, não faltam exemplos de más atitudes: “Um pai ou uma mãe que diz: ‘se queres estar sempre a vestir as roupas do teu irmão, por mim tudo bem, mas só se for dentro de casa. Noutro sítio qualquer não, porque não quero passar vergonhas’. O que estão a dizer é: o que eu sinto como pai/ mãe é mais importante daquilo que tu és como meu filho. Fazes-me passar vergonhas, fazes-me ter vergonha de ti. Assim, a criança vai sentir-se rejeitada”, refere a psicóloga.
E não faltam também exemplos de maus terapeutas: “Alguns dizem aos pais de rapazes: tire-lhe essas Barbies. Mande-as para o lixo e compre camiões”. Se ele gostar de dançar no quarto ou na sala a imaginar que é uma princesa, ignore-o. Nos momentos em que ele está a brincar às princesas, finja que ele não está ali. Não lhe dê atenção. Ponha-o de castigo. Mas se ele fizer alguma coisa ‘à rapaz’, dê-lhe mimos”.
Como perceber a fronteira entre ser uma fase de exploração ou ser-se transgénero? “É preciso que os pais estejam muito atentos a frases como: ‘mãe, quando é que me vai crescer uma pilinha como aos meninos?’ ou ‘quando eu crescer e for um menino…’ Porque as crianças pensam: ‘tal como as maminhas crescem nas meninas, os pénis também podem crescer’. O que temos de ver é se isto acontece de vez em quando ou se estas frases são repetidas constantemente, e perceber também se a criança se sente frustrada por não a ouvirem”, explicou Diane Ehrensaft ao Observador. Para estarmos perante uma criança transgénero, é preciso que haja diferenças marcadas entre o género com que o indivíduo nasceu e o género que expressa durante, pelo menos, seis meses.