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Quando a Espanha tinha um caudilho: Francisco Franco, 40 anos depois

20 de Novembro de 1975. Francisco Franco morria após quatro décadas de poder. Mas quem foi este homem, e que regime foi este que saiu de uma sangrenta e cruel guerra civil, que ele mesmo desencadeou?

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No dia 13 de Julho de 1936, militares da Guarda de Assalto, fiéis ao governo da Frente Popular, assassinaram em Madrid o deputado conservador José Calvo Sotelo. Logo que foi confirmada a notícia, a conspiração militar contra o governo viu engrossar o número daqueles que, civis e militares, estavam dispostos a com ela colaborarem. Uma dessas figuras foi o general Francisco Franco. Apesar de profundamente monárquico e católico, Franco aceitara a legitimidade da II República espanhola, implantada em 1931. Agora, tudo ia mudar. No dia 18 de Julho de 1936, Franco surgiu como um dos líderes da insurreição do exército. Foi o começo de uma história que só iria terminar a 20 de Novembro de 1975, com a sua morte, depois de quase 40 anos no poder em Espanha.

Francisco Franco, o legalista pragmático

Quando foi pela primeira vez convidado para conspirar, Franco recusou. Declarou mesmo que os espanhóis eram republicanos. Em 1934, aquando da repressão pelo exército da sublevação nas Astúrias, foram generais republicanos como López de Ochoa, e não Francisco Franco, então chefe do Estado-Maior do Exército, que toleraram o uso de meios repressivos que estavam muito para além daquilo que seria legal e moralmente aceitável. É verdade que em Março de 1936, pouco depois da vitória eleitoral da Frente Popular, participou numa reunião conspirativa com outros militares de alta patente, mas a sua tomada de posição, mais uma vez, deu mostras de acreditar que a legitimidade e a natureza do novo Governo eram idênticos aos da República que se preparava para cumprir o seu quinto aniversário.

Fora aliás à luz deste entendimento das circunstâncias políticas que, pouco depois de terem sido conhecidos os resultados das eleições de Fevereiro de 1936, e perante a anarquia crescente, Franco propôs a declaração do estado de guerra. Tratava-se de uma solução absolutamente legal, diga-se, embora politicamente discutível, e que não pretendia subverter a ordem constitucional mas, pelo contrário, garantir que era possível controlar a violência quotidiana e que a lei e os resultados eleitorais seriam respeitados. Porém, e perante a recusa do presidente Alcalá Zamora, Franco retirou a sua proposta e decidiu continuar a agir dentro dos limites legais. Isto não significa que os acontecimentos das Astúrias, ou a avaliação que fez da evolução da situação política nos primeiros meses do Governo da Frente Popular, não tenham produzido em Franco, como sustentou o historiador Javier Tusell, uma substituição das suas convicções essencialmente antiliberais por outras próximas do “nacional-militarismo”.

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Até às vésperas do assassinato de Calvo Sotelo, Franco parecia convencido de que uma insurreição militar estava condenada ao fracasso. A 23 de Junho de 1936, escreveu ao chefe do Governo e ministro da Guerra, Casares Quiroga, garantindo o respeito do Exército pela lei. 

O Governo, entretanto, se nada fazia para travar ou moderar a revolução social em marcha, tomou medidas para travar a acção de chefes militares que mais cedo ou mais tarde poderiam pretender intervir na vida política, pondo cobro ao processo de radicalização social e política em curso (e que se sabia iria acentuar-se). Por prevenção anti-golpista e por conhecer o prestígio militar, mas também político, de vários generais, entre eles Franco, destacou-o para as Canárias, da mesma forma que o general Emílio Mola foi transferido de Marrocos para Pamplona e o general Manuel Goded “exilado” nas Ilhas Baleares.

Vista a acelerada degradação do ambiente político e social, Franco foi dando nota de uma maior compreensão para com os generais que iam conspirando e preparavam um levantamento militar que repusesse uma normalidade política e jurídica que o Governo da Frente Popular não queria ou não podia garantir. Ainda assim, e até às vésperas do assassinato de Calvo Sotelo, Franco parecia convencido de que uma insurreição militar estava condenada ao fracasso. A 23 de Junho de 1936, escreveu ao chefe do Governo e ministro da Guerra, Casares Quiroga, garantindo o respeito do Exército pela lei naquilo que parecia não uma dissimulação, como muitos posteriormente pretenderam, mas uma última tentativa de, em primeiro lugar, convencer o Governo de que a legalidade deveria ser reposta e, em segundo lugar, daquela que seria a sua disponibilidade e do Exército para colaborarem nessa reposição da ordem.

Comemoração da vitória de Franco na guerra civil: ele hesitou em sublevar-se até à morte de Sotelo

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O assassinato de Calvo Sotelo foi o acontecimento que tudo mudou. A partir de 14 de Julho, Franco compreendeu que os seus intuitos contemporizadores estavam condenados ao fracasso porque o Governo não só se mostrava incapaz de restaurar e manter qualquer princípio elementar de ordem, como colaborava activamente na supressão da legalidade. As portas que manteve entreabertas com a conspiração militar em marcha escancararam-se apenas na sequência da morte do deputado galego. Nessa altura, Franco percebeu que era mais perigoso não se sublevar do que sublevar-se…

Portanto, a atitude pragmática, cautelosa e contemporizadora de Franco para com o poder legítimo durante a vigência da II República, a par das suas críticas e desconfianças relativamente ao rumo e aos resultados obtidos pela ditadura do general Miguel Primo de Rivera (1923-1930) e pela generalidade da acção governativa durante o reinado de Afonso XIII (1902-1931), demonstram que nunca esteve disposto a conspirar a qualquer preço contra a legalidade republicana e, muito menos, antecipada ou precocemente disponível para liderar essa conspiração.

Isto não significa que Franco não fosse ambicioso e determinado – a sua carreira militar demonstrava que o era – e não estivesse disposto a sacrificar a sua fleuma e o seu calculismo perante a ditadura das circunstâncias ou a força das suas convicções. A sua carreira militar até ao Verão de 1936 e o seu comportamento político desde as vésperas do alzamiento, nas várias etapas da guerra civil e, posteriormente, num percurso em que permaneceu à frente do Estado espanhol até ao dia da sua morte, a 20 de Novembro de 1975, atestam-no para além de qualquer dúvida.

Ao princípio, a insurreição militar teve uma natureza e propósitos político-ideológicos relativamente indefinidos. Não era, desde logo, “fascista”, como também não era necessariamente monárquica, católica e autoritária.

A insurreição de 18 de Julho de 1936

Porém, quando a 17 e 18 de Julho de 1936 a insurreição se iniciou, primeiro em Marrocos e depois em Espanha, Franco decidiu participar. Fê-lo à frente de um exército africano – o mais bem treinado e equipado de todas as forças armadas espanholas –, mas subordinado à chefia nominal do general Sanjurjo e às qualidades organizadoras e mobilizadoras, no plano civil e militar, do general Emílio Mola.

Ao princípio, a insurreição militar teve uma natureza e propósitos político-ideológicos relativamente indefinidos. Não era, desde logo, “fascista”, como também não era necessariamente monárquica, católica e autoritária. É verdade que havia monárquicos e fascistas entre os revoltosos, carlistas e falangistas, respectivamente, fervorosos católicos e defensores de uma solução autoritária para o problema político espanhol. A opção autoritária podia ser vista como definitiva ou meramente transitória, devendo neste caso vigorar até ao momento em que pudesse ser restaurada uma nova ordem política democrática, mas sem os excessos trazidos pela II República. Essa nova ordem poderia ser republicana ou monárquica.

Francisco Franco com a sua tropas no final da guerra civil

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De qualquer modo, o programa mínimo dos insurgentes caracterizava-se pelo desejo de que a sua acção fosse capaz de corrigir as limitações, e eram muitas, decorrentes da teoria e da prática constitucional edificada desde 1931. Portanto, parece óbvio, nomeadamente naquilo que diz respeito ao comportamento e ao pensamento político do general Franco, por mais rudimentar que este último pudesse ser, que caso a ordem constitucional democrática tivesse sido garantida pelo Governo da Frente Popular, o futuro caudillo não se teria “pronunciado” e, posteriormente, fruto da sua vontade e de circunstâncias que lhe foram muitas vezes favoráveis, tornar-se chefe de facção e, depois, chefe de Estado.

Uma vez consumada a insurreição, Franco mostrou a sua firmeza, capacidade de liderança e iniciativa. Designadamente ao enviar à Alemanha um representante seu que negociasse com as autoridades germânicas a imediata disponibilização de meios aéreos que permitissem o transporte rápido e seguro dos contingentes do exército de Marrocos para a Andaluzia. Na verdade, caso esta iniciativa não tivesse sido tomada e obtido o sucesso pretendido, a República ter-se-ia salvo.

A partir daqui, e com o general Sanjurjo morto na sequência de um acidente de aviação perto de Cascais, a importância de Franco entre os generais revoltosos reforçou-se muitíssimo. Franco não só comandava o exército africano, como assumira o papel de principal, senão mesmo único, interlocutor dos generais insurgentes junto daqueles que seriam os seus principais apoiantes: alemães, italianos e portugueses.

Franco não só comandava o exército africano, como assumira o papel de principal, senão mesmo único, de interlocutor dos generais insurgentes junto daqueles que seriam os seus principais apoiantes: alemães, italianos e portugueses.

Franco antes de Franco

Quem era este homem que no espaço de poucos meses passou da condição de conspirador relutante a líder de uma facção civil e militar numa guerra civil que durou quase três anos, se repercutiu internacionalmente e de que foi vencedor incontestável? Francisco Franco Bahamonde nasceu em Ferrol a 4 de Dezembro de 1892 e morreu tranquilamente no seu leito, em Madrid, a 20 de Dezembro de 1975, embora tivesse passado os últimos 21 dias de vida em coma. Era o segundo de cinco irmãos e o seu pai pertencia a uma linhagem de oficiais da marinha espanhola. Cedo enveredou pela carreira das armas, embora por razões político-militares ligadas à derrota espanhola na guerra de 1898 com os EUA lhe tenha sido vedada uma carreira de oficial da Armada. Frequentou por isso, a partir de 1907, a academia militar em Toledo.

Em 1912, dois anos depois de concluir a sua formação de oficial de Infantaria, foi colocado em Marrocos. Apesar de ter sido um aluno sofrível a sua acção fez-se notar. Em condições políticas e militares adversas conquistou a merecida reputação de oficial competente e corajoso nas violentas campanhas militares de submissão dos intratáveis marroquinos. Aos 23 anos foi ferido em combate, posteriormente condecorado e, um ano depois do ferimento, em 1917, promovido a major (o mais jovem do exército espanhol). Em 1923, três anos depois de ter regressado a Marrocos como segundo comandante da recém-criada Legião espanhola, e após ter protagonizado mais algumas operações que deram muito boa nota do seu talento militar tacticista, foi promovido a tenente-coronel e nomeado comandante da Legião, substituindo José Millan Astrey, fundador e 1.º comandante daquela força. Ainda em 1923, casou-se com María del Carmen Polo. Três anos depois nasceu a filha do casal.

Franco com a mulher, María del Carmen Polo, numa cerimónia pública

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Em 1925, retornou a Marrocos e voltou a fazer-se notado entre oficiais, sargentos e praças espanhóis e marroquinos. No início de Fevereiro de 1926, Franco foi promovido a general, o mais jovem da história do exército espanhol e, talvez, o mais jovem de toda a Europa. Em 1928 foi naturalmente convidado para comandar a recém-criada Academia Militar de Zaragoza, onde passaram a ser formados todos os futuros oficiais do exército, independentemente da arma.

Três anos mais tarde, com a implantação da República, foi removido do cargo. Mas, felizmente para Franco, deixava um lastro de competência técnica e de algum carisma que lhe iriam permitir ter ao seu lado, depois de Julho de 1936, a quase totalidade dos oficias do Exército formados em Zaragoza no triénio “franquista”.

Apesar das suas convicções pessoais e políticas, e das discordâncias que manteve com governos e governantes republicanos, até ao assassinato de Calvo Sotelo, cerca de cinco meses após a vitória da Frente Popular nas eleições de Fevereiro de 1936, nada de politicamente insuperável opôs Franco à República ou a República a Franco. Criticou duramente Sanjurjo pelo facto de, em 1932, se ter colocado à frente de um movimento militar monárquico. A República nomeou-o comandante militar da província da Coruña e, depois, das Baleares. E se foi muito duro com o chefe de Governo Manuel Azaña no discurso de despedida e de encerramento da Academia Militar de Zaragoza, não deixou de apelar ao respeito pela lei e pela ordem. Ou seja, ao respeito pelo poder político legítimo, por mais críticas que pudesse merecer e independentemente de ser republicano e democrático.

A ascensão de Franco

Após o 18 de Julho de 1936, coube a Franco o comando do “exército de África”. Monopolizou ainda os contactos com os apoios estrangeiros vitais obtidos na fase inicial da insurreição. Mas Franco teve também a seu favor a morte acidental dos dois generais que desde o início da conspiração a tinham preparado ao mínimo detalhe, caso de Mola (falecido a 3 de Junho de 1937), ou atribuída a chefia do movimento insurreccional, caso de Sanjurjo (falecido logo a 20 de Julho de 1936). Franco capitalizou ainda os rápidos êxitos militares obtidos na Andaluzia ocidental, na metade poente da Castela meridional e na Extremadura entre finais de Julho e o fim do mês de Setembro.

Este conjunto de factos e de oportunidades foram aproveitados por Franco ao contribuírem para que, a 1 de Outubro de 1936, fosse escolhido para chefe civil e militar do campo nacionalista pelos demais camaradas membros da Junta de Defesa. Passaria por isso a usar o título de chefe de Estado enquanto líder civil e generalíssimo enquanto chefe militar de um regime política e ideologicamente híbrido, que se foi formando e transformando desde o início da guerra civil até finais de 1975.

Franco, el caudillo

Franco conduziu a guerra de forma eficaz mas talvez demasiadamente lenta, facto que exasperou alguns dos seus apoiantes, a começar por italianos e alemães. Há quem sustente que a sua lentidão foi propositada pelo facto de, em primeiro lugar, lhe ter permitido organizar e dar início a um processo de consolidação tanto do seu poder pessoal como da solução político-institucional do regime que tardou em encontrar. Em segundo lugar, o avanço lento dos exércitos nacionais deveu-se senão às suas limitações enquanto chefe militar, pelo menos à sua falta de audácia e à incapacidade para incorporar na sua estratégia e na sua táctica novos e modernos meios bélicos que substituíam uma guerra predominantemente de posições e que se notabilizara pelas piores razões na frente ocidental durante a Grande Guerra. Em terceiro e último lugar, Franco não teria tido pressa em ganhar a guerra porque o arrastamento desta permitia prolongar e tornar mais eficazes as acções de eliminação e de repressão de indivíduos que ao longo de anos, mas especialmente depois do triunfo eleitoral da Frente Popular, eram identificados como “republicanos”, sindicalistas, maçons, anarquistas ou comunistas…

Embora cada uma destas explicações seja não apenas plausível como eventualmente verdadeira, o factor mais importante por trás da lentidão do avanço dos nacionalistas deveu-se à capacidade de resistência das forças republicanas, às características físicas da geografia espanhola e à escassez ou ao carácter arcaico das vias de comunicação, que dificultavam a movimentação de exércitos modernos nos termos exigidos por uma guerra também ela preparada em termos relativamente modernos.

Não tendo aquilo que restava da República sido resgatado por uma guerra geral na Europa (que poderia ter deflagrado no Verão de 1938, por causa das reivindicações alemãs na então Checoslováquia), Franco conduziu os seus seguidores à vitória no dia 1 de Abril de 1939, na sequência das conquistas de Barcelona e de Madrid a 26 de Janeiro e 28 de Março, respectivamente.

Uma mulher chega à fronteira francesa, em fuga de Espanha depois da vitória de Franco na guerra civil

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Uma das questões mais relevantes e ainda hoje exaustivamente discutida da biografia de Franco durante a guerra civil espanhola e no pós-guerra relaciona-se com a natureza e, sobretudo, com a dimensão do terror “branco” exercido na retaguarda “nacionalista” no decurso do conflito e após a sua conclusão.

A dimensão do terror ou da repressão exercida pelos nacionalistas, fossem eles, sobretudo, militares, falangistas ou carlistas está bem expressa no número de homens e mulheres mortos sem direito a qualquer julgamento ou sujeitos a “julgamentos” meramente circunstanciais. Antony Beevor estimou cerca de 200 mil execuções e assassinatos da responsabilidade dos nacionalistas (cerca 38 mil teriam sido as vítimas do terror “vermelho”) nos quase três anos que durou a guerra civil e nos anos imediatamente subsequentes, quando o franquismo e os seus apoiantes sentiam, simultaneamente, a fragilidade relativa da nova ordem e a impunidade própria de um regime em construção, nascido e legitimado pelo uso casuístico da violência política.

Caso a guerra civil tivesse sido ganha pelos “republicanos”, a acção repressiva de uma República vitoriosa teria sido tão ou mais violenta e duradoira do que aquela aplicada pelos “nacionalistas”.

Se Franco nada fez para pôr cobro a uma feroz violência política exercida pelos seus seguidores, há que ter em conta as circunstâncias em que tal violência foi exercida. Em primeiro lugar, foi uma resposta, ou tentou parcialmente legitimar-se enquanto resposta, à violência revolucionária, sobretudo anarquista, que marcou grande parte da história de Espanha desde finais do século XX. Em segundo lugar, foi uma reacção à violência revolucionária (anarquista, comunista, anticlerical, sindical…) que se banalizou e foi promovida, ou ignorada, pelas autoridades após o triunfo da Frente Popular nas eleições de 1936. Uma violência que atentou contra a vida de indivíduos, de grupos e de classes sociais, mas também contra a integridade da propriedade privada. Uma violência que destruiu património civil e religioso, que perseguiu e eliminou religiosos, militares e agentes das polícias, industriais, “latifundiários”, falangistas ou carlistas e que pretendia destruir uma sociedade e eliminar indiscriminadamente tanto as suas elites como os seus apoiantes.

Neste contexto, Franco emergiu como alguém que, não tendo criado a crise política e social profunda que conduziu à guerra civil e ao confronto entre dois projectos revolucionários, cada um deles política e ideologicamente heterogéneo, acabou por resolvê-lo por, em parte, ter permitido àqueles que o seguiam usarem métodos de violência política indiscriminada, muito ao gosto do praticado no campo oposto. Aliás, e se a demonstração de um simples exercício contrafactual é permitido, poder-se-á afirmar, sem margem para grandes dúvidas, que caso a guerra civil tivesse sido ganha pelos “republicanos”, a acção repressiva de uma República vitoriosa teria sido tão ou mais violenta e duradoira do que aquela aplicada pelos “nacionalistas”.

Franco e o franquismo: as circunstâncias históricas

Do triunfo dos nacionalistas e da capacidade política e características pessoais reveladas por Francisco Franco para edificar e consolidar uma nova ordem política e social nasceu um regime ideologicamente híbrido que ficou conhecido por franquismo. Em primeiro lugar, o franquismo dependeu da evolução das circunstâncias históricas em que nasceu, se formou, se consolidou e evoluiu. Em segundo lugar, resultou da sua natureza político-ideológica, que apesar de tudo teve, e dos princípios de legitimidade que o sustentaram.

O franquismo nasceu e consolidou-se numa conjuntura em que o antiparlamentarismo e o anticomunismo gozavam de um apoio massivo, tal como o nacionalismo mais radical e os vários rostos assumidos pelo fascismo. Terminada a Segunda Guerra Mundial, o franquismo teve que se desfazer de grande parte da sua ligação ao fascismo e a formas exacerbadas de nacionalismo e até de imperialismo. No entanto, Franco e o franquismo souberam e puderam aproveitar e rentabilizar, interna e externamente, o anticomunismo que fazia parte do seu código genético desde, pelo menos, o Verão de 1936.

No fim da Segunda Guerra Mundial, Franco (aqui, com Mussolini) teve que se desfazer de parte da sua ligação ao fascismo

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Mas a história do franquismo, além de dependente de circunstâncias políticas, esteve sujeita aos ditames da realidade económica. Do ponto de vista económico, o franquismo conheceu duas conjunturas distintas. Uma que se iniciou em 1936 e se prolongou até meados da década de 1950. Foi marcada pela existência de dois conflitos militares – guerra civil e Segunda Guerra Mundial –, mas assentava também, vista a realidade dos factos e as convicções político-ideológicas das elites do primeiro franquismo, em pressupostos autárcicos. O resultado desta realidade foi um crescimento económico débil e uma impossibilidade real de criar e distribuir riqueza.

A conjuntura subsequente foi contemporânea de uma prolongada era de paz e de estabilidade, tanto interna como internacional, além de se ter distinguido por um abandono, e não apenas em Espanha, não só do nacionalismo económico, mas dos princípios autárcicos. Desta nova realidade, resultou um período com cerca de duas décadas em que a economia espanhola registou taxas de crescimento muito elevadas, forte industrialização e urbanização, crescimento e consolidação de um sector de serviços moderno e competitivo. Além do mais, o crescimento da riqueza disponível beneficiou todos os grupos sociais e todas as regiões de Espanha, ainda que de forma desigual.

Na comparação que pode ser feita entre a prática política que sustentou duas conjunturas com características tão distintas, deve sublinhar-se o facto de no primeiro momento a ideologia ter sido dominante, ao passo que, no segundo, o realismo e o pragmatismo foram preponderantes. Dir-se-á então que do ponto de vista de uma análise do franquismo na sua dimensão económica, a ideologia terá produzido resultados desastrosos, ao passo que o pragmatismo terá proporcionado consequências muito positivas.

Uma conclusão deste tipo está, infelizmente, ferida de anacronismo pela simples razão de que o nacionalismo e a autarcia económica na segunda metade da década de 1930, e em quase toda a década de 1940, não podiam ser abandonadas em praticamente nenhuma região do globo sujeita a um bloqueio económico severo e a outras formas de perturbação voluntária ou involuntária da actividade económica.

O papel desempenhado pela aplicação dos princípios político-ideológicos do regime em termos de comportamento da economia acabaram por ser relativamente irrelevantes, sobretudo se comparados com o papel desempenhado pelo peso das circunstâncias.

Por outro lado, à medida que a década de 1950 foi avançando não apenas a economia internacional tendeu para uma cada vez maior integração e cooperação entre as entidades nacionais que a compunham, como o próprio Estado espanhol criou e viu criadas condições políticas internacionais que favoreciam o progressivo abandono de um nacionalismo económico radical, da autarcia económica, pelo que daqui só poderia resultar a consequente aposta na cooperação e na integração económica com excelentes resultados nas taxas de crescimento. Por isso, em duas conjunturas com características e resultados distintos o papel desempenhado pela aplicação dos princípios político-ideológicos do regime em termos de comportamento da economia acabaram por ser relativamente irrelevantes, sobretudo se comparados com o papel desempenhado pelo peso das circunstâncias.

Quando em Espanha, entre 1936 e princípios ou meados da década de 1950, o franquismo ideológico comandou a economia, fê-lo afinal não apenas porque o desejava mas sobretudo porque a realidade não disponibilizava alternativas práticas. Quando a partir de meados ou finais da década de 1950 a conjuntura económica internacional mudou, o franquismo ideológico no domínio económico não desapareceu. Simplesmente, não interferiu substantivamente na realidade, facto que possibilitou não apenas as mudanças atrás referidas, mas ainda o trilhar de um caminho que parecia tornar o franquismo, a sua natureza e os seus objectivos, cada vez menos compatível com a sociedade onde se impusera, tanto no presente como num futuro em que ambicionasse sobreviver ao seu criador.

Natureza político-ideológica e princípios de legitimidade do franquismo

Política e ideologicamente, Franco e o franquismo foram sendo muita coisa ao longo de quase quatro décadas. No entanto, as mudanças por que passou só foram possíveis, sem porem em causa a sobrevivência do franquismo, porque algumas das suas características essenciais se sobrepuseram àquilo que se transfigurou ou até desapareceu.

A legitimidade política do franquismo nasceu em primeiro lugar de uma vitória político-militar e do apoio recebido das chefias militares que acompanharam Franco e aceitaram a institucionalização de um regime que recebeu influências políticas e doutrinais das mais variadas proveniências históricas e geográficas. Mas a legitimidade do franquismo dependeu ainda dos apoios e dos contributos dados por sectores e movimentos católicos, pela falange, pelos carlistas e demais sensibilidades monárquicas, ainda que não a dos partidários do pretendente ao trono, D. Juan de Bourbon. Por isso, a legitimidade do franquismo era compósita, assente em fundamentos contraditórios e em princípio incapazes de garantir um mínimo de estabilidade política e programática, mas também um mínimo de durabilidade.

Por isso mesmo, o grande enigma histórico do franquismo reside na capacidade demonstrada para superar a natureza e as limitações que estiveram na base da sua legitimidade. Essa capacidade evidenciou-se, em primeiro lugar, na vitória na guerra. Depois, sobrevivendo à Segunda Guerra Mundial. Em terceiro lugar, integrando-se numa nova ordem internacional que lhe era inicialmente muito hostil. Finalmente, vivendo tranquila mas ambiciosamente num universo que tendo tudo para lhe ser adverso chegou a parecer poder proporcionar a possibilidade de perdurar para além da morte do seu fundador. Isto independentemente dos problemas políticos que se acumularam nos anos que precederam a morte de Franco e o desaparecimento do regime. Problemas externos entre os quais sobressaía a questão do destino político a dar ao Saara Ocidental ou as críticas internacionais relativas ao modo como a justiça espanhola resolvia o problema da violência política armada que combatia o franquismo. Mas também questões internas que iam desde o recrudescer da contestação laboral e estudantil universitária, ao ressuscitar do problema das “nacionalidades históricas”, passando pela emergência de grupos terroristas cuja acção tinha tanto de eficaz, pelo menos nos resultados obtidos a curto prazo, como de implacável.

Franquismo e “transição democrática”

O franquismo terminou, ou se se quiser evoluiu, talvez de forma tão inesperada como começou e se consolidou. Ou seja, do mesmo modo que a participação de Franco na insurreição de Julho de 1936 se decidiu no último momento em circunstâncias descritas no início deste texto, ou que a sobrevivência do franquismo à Segunda Guerra Mundial foi em boa medida imprevisível, a sua rápida transmutação num processo bem-sucedido de transição para um regime democrático foi, e de certa forma ainda é, surpreendente. Não importa agora aqui, embora seja importante, enumerar e analisar circunstâncias, personagens ou acontecimentos exteriores ao franquismo que tiveram a maior importância para que essa transição bem-sucedida se desse. Importa, isso sim, dar nota daquilo que foi o contributo de Franco e do franquismo para que a democracia tivesse chegado a Espanha e iniciado um processo de formação e estabilização de maneira negociada e, portanto, global e relativamente pacífica.

Uma Espanha mais próspera não era certamente uma condição suficiente para que se transformasse politicamente numa democracia. Mas era certamente uma condição necessária.

Os méritos do franquismo, e em especial de Franco, quando se pensa no êxito que foi a “transição democrática” em Espanha, e mesmo tendo em conta que muito provavelmente Franco não só não a desejava como pretendia criar uma situação política que lhe sobrevivesse capaz de impedir aquela solução, residiram, como notaram Stanley Payne y Jesús Palacios, num conjunto facilmente identificável de mudanças ocorridas na vida do regime.

Em primeiro lugar, a escolha da restauração da monarquia mas cooptando para futuro rei o neto e não o filho de Afonso XIII. Esta preferência dava ao franquismo e à monarquia a possibilidade de começarem uma nova vida com escassas ligações a um passado doloroso. Além disso, a escolha de Juan Carlos, independentemente das suas qualidades ou limitações de natureza política, permitia que a substituição de Francisco Franco na chefia do estado espanhol tivesse uma mistura equilibrada de legitimidade, continuidade e rotura.

Franco, em Dezembro de 1970, rodeado por Juan Carlos e por María del Carmen Polo

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Em segundo lugar, e apesar do seu conservadorismo moral, político e religioso, Franco presidiu pragmaticamente a um relativamente longo e robusto processo de modernização económica e social. Ora, uma Espanha mais próspera não era certamente uma condição suficiente para que se transformasse politicamente numa democracia. Mas era certamente uma condição necessária. Como foi necessária a expansão do sistema educativo a partir da década de 1950 ou a “liberalização cultural” experimentada nos derradeiros dez anos do regime.

Em terceiro lugar, a longevidade do franquismo contribuiu para fechar velhas feridas que remontavam às décadas de 1930 e 1940. É verdade que a longevidade abriu novos focos, e muito graves, de conflitualidade política. No entanto, depois de 1975 os espanhóis não repetiram muitos dos erros do passado porque a passagem do tempo ajudara a perceber, às “duas Espanhas”, que o preço a pagar por um regresso ao passado seria demasiado elevado.

Em quarto lugar, as políticas sociais do franquismo, o crescimento e o desenvolvimento económico, ainda que tardios, a par das lições que muitos retiraram dos excessos de conflitualidade social praticados até ao fim da guerra civil, tornaram a Espanha socialmente mais coesa.

Finalmente, Franco preocupou-se, ainda que por interesse próprio, em desenvolver uma estratégia de despolitização da instituição militar, especialmente do exército. Portanto, e apesar do golpe militar falhado de 23 de Fevereiro de 1981, no momento da morte de Franco as forças armadas espanholas estavam muito menos aptas e disponíveis para derrubar um governo ou um regime – neste caso o franquista – do que tinham estado vinte ou trinta anos antes. Este facto beneficiou Franco e ter-lhe-á permitido evitar que sucumbisse às mãos de militares insurrectos. Mas também poderá ter beneficiado os políticos e a política da “transição”.

A 20 de Novembro de 1975, era esta a herança deixada por Franco e pelo franquismo, mesmo que em grande medida se tratasse de uma herança não só indesejada, como involuntária e, sobretudo, tão imprevista como imprevisível quanto às suas consequências. Ora é com alguma ironia que uma Espanha actualmente a atravessar a sua maior crise moral e política desde a transição, poderá e deverá reflectir, apesar de Franco e do franquismo serem irrepetíveis… ou porque são irrepetíveis.

Fernando Martins é professor do departamento de História da Universidade de Évora e coordenou a obra colectiva  “A Formação e a Consolidação Política do Salazarismo e do Franquismo. As décadas de 1930 e de 1940” (2012).

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