Um primeiro caminho no estúdio principal pelo presente e pelo futuro a breve prazo, onde entram temas como o recente caso do Belenenses SAD-Benfica nove anos depois de ter sido adjunto de uma União de Leiria que também entrou em campo com menos jogadores, a Seleção, o dérbi de sexta-feira e a nova vida de treinador, agora à espera que o telefone toque para assumir um projeto como técnico principal. Uma segunda viagem no estúdio 2 pelo passado, das memórias de São Vicente à chegada ao Sporting vindo da 2.ª Divisão, passando pelos três anos na Real Sociedad, a hipótese Barcelona (de Cruyff), o regresso a Portugal e a saída de Alvalade. “Não há problema, hoje tenho tempo para tudo”, diz. E assim foi.
Aos 59 anos, Oceano Cruz continua fit como se tivesse deixado de jogar no mês passado, sempre com uma postura de liderança que ficou como marca de uma longa carreira que como jogador acabou aos 37 anos – embora agora assuma que podia ter sido um ano antes, ficando logo como adjunto dos leões. Assume que em campo uma das poucas coisas que lhe ficaram a faltar foi ganhar o Campeonato pelo Sporting, destaca como treinador, após passagens pela equipa B verde e branca, pela Seleção Sub-21 e largos anos como fiel adjunto de Carlos Queiroz no Irão ou na Colômbia, tem tudo por fazer. Pelo meio, torna-se um contador de histórias quando abre o baú das recordações numa entrevista de vida de 14 mais 54 minutos, mais de uma hora que podia ter ainda mais uns pozinhos que se perderam no meio do trânsito de Lisboa.
Há quanto tempo é que não vai a São Vicente e o que é que se lembra de São Vicente da última vez que lá foi e de São Vicente onde nasceu?
O que me lembro é que… Bem, os meus amigos de São Vicente vão ficar chateados comigo, mas a última vez que fui a Cabo Verde fui só ao Sal, até fui lá fazer umas férias com a Marina [Mota] e como o tempo era tão curto não deu para passar por São Vicente. A última vez lá foi com as minhas filhas, que andavam a pedir isso há muito tempo e foram umas férias espectaculares, tivemos a oportunidade de conhecer bem São Vicente, tivemos a possibilidade de conhecer Santo Antão que é ali ao lado e que não conhecíamos. O que notei em São Vicente foi a evolução que aquela terra está a ter, Cabo Verde está a evoluir de uma excelente forma. Gostei do que vi. Para mim, São Vicente é quase tudo em Cabo Verde, sentimos que estamos na nossa terra e as minhas filhas também sentiram o mesmo, o que é bom…
Contou numa entrevista ao Expresso que era para ser Oceano Atlântico, porque o seu padrinho era Oceano Pacífico. Imagino que a sua mãe não pensasse na altura que fosse cruzar tantos oceanos na carreira, sendo que tem família também na Alemanha.
Tenho, o meu irmão mais velho vive na Alemanha, tem a dupla nacionalidade alemã e portuguesa há muitos anos, tem uma filha que também é meio alemã, meio cabo-verdiana e meio portuguesa, que é uma coisa complicada… Foi bom não ter o Oceano Atlântico porque já era uma bandeira grande para carregar e às vezes como as crianças às vezes não têm filtro é complicado, ia sofrer um bullying maior na escola…
Mas chegou a sofrer esse bullying por ser Oceano?
Eu já sabia, quando estávamos na escola e começávamos a falar nas aulas de geografia nos oceanos… Mas levava aquilo para o lado positivo, ia para a brincadeira…
Pelo menos era o único…
Sim, isso era. Aliás, não, havia o meu padrinho. Era o Oceano Pacífico Fortes e o Oceano Andrade da Cruz. Na escola era o único, isso sim.
Tinha pessoas da família do Mindelense, que era uma espécie de Benfica, o seu pai jogou no Derby, filial do FC Porto. Como é que o Oceano vai parar ao Sporting?
São as leis da vida… Quando nasci foi numa casa de benfiquistas entre aspas, de gente do Mindelense. Como o meu pai trabalhava na Alemanha, a minha mãe decidiu trazer a família toda para Lisboa porque estávamos mais perto dele, o meu pai vinha de férias de três em três anos. Era engraçado porque quando o meu pai viajou pela primeira vez a minha mãe estava grávida de mim e quando chegou já tinha três anos e não sei quantos meses e não sei quantos dias, a minha mãe é que contava tudo e eu dizia ao meu pai ‘Tu não és o meu pai, o meu pai está na Alemanha’. A minha mãe achou por bem virmos todos para Portugal. Ao chegamos a Portugal começamos a ter essa cultura do Benfica, do Sporting, do FC Porto, se calhar o FC Porto menos, não era tão falado porque os jovens vão mais para as equipas que ganham e na altura era mais o Benfica e o Sporting que ganhavam. Se calhar é depois a tendência do ser do contra, a minha irmã mais nova é do Paços de Ferreira…
Do Paços de Ferreira, “o” Paços de Ferreira?
Porque é do contra. Mas ela é uma rapariga super inteligente, atenção. Quando ela decidiu que ia dizer que era do Paços de Ferreira, antes de decidir isso estudou tudo o que havia a estudar sobre o Paços de Ferreira. Estudou quando tinha sido fundado, quantos sócios é que tinha, o percurso… E nós perguntávamos ‘Mas tu és do Paços de Ferreira? Tu conheces o Paços de Ferreira? Então vamos fazer perguntas’ e ela respondia a tudo. Paços de Ferreira para tudo. E o que aconteceu? Começou mesmo a gostar do Paços de Ferreira e hoje é verdadeiramente do Paços de Ferreira. Se calhar essa cultura do ser do contra, aquelas quezílias boas que há sempre entre os irmãos, e nós somos seis, acontece sempre, aquilo do picar uns aos outros… Não estava bem em mim aquilo do ser do Sporting mas já tinha uma certa admiração pelo Sporting. Depois, o prazer de entrar naquela casa, se ainda existissem dúvidas, deixou de haver…
Sempre foi bom aluno, daqueles que não precisava de estudar muito para ter boas notas. Alguma vez se arrependeu de não ter seguido mais os estudos?
Não mas por acaso até fui sempre bom aluno…
Até onde é que chegou?
Cheguei até à porta da universidade mas nesse ano apareceu-me o Nacional da Madeira e fui falar com os meus pais. Eles foram sempre apologistas de jogar à bola, na altura fiz a formação toda no Almada dos 13 anos até ao primeiro ano de sénior, que foi quando fui depois para o Odivelas. Aparece o Nacional da Madeira, tive uma conversa muito séria com os meus pais, mais com a minha mãe que era quem tomava as grandes decisões lá em casa, e disse que podia fazer uma espécie de um ano de licença sem vencimento. O Nacional não me dava para continuar com os estudos, era mais profissional. No Odivelas treinava à noite, dava para estudar. O que aconteceu é que esse ano do Nacional acabou no Sporting e a partir daí… Sempre quis retomar os estudos mas fui deixando sempre para trás e chegou a uma altura que já não tinha cabeça…
Alguma vez teve outro trabalho pelo meio ou foi só estudos e futebol?
Quando depois o profissionalismo nos segue é um bicho muito forte, toma conta de tudo. Quando cheguei ao Sporting senti-me realizado e aí o meu propósito de vida, porque sabia exatamente o que queria, era ser profissional de futebol. O que fiz foi trabalhar para isso, quando cheguei ao Sporting tinha muitas limitações em termos técnicos e em termos de jogador que queria ser. Pensei que era o que queria, trabalhei muito forte, fiz horas extraordinárias, muitas mesmo para poder melhorar. Foi o grande objetivo de carreira.
Portanto, o futebol aparece ainda antes de vir para Portugal.
Sim, desde pequenino, ainda em Cabo Verde, em São Vicente. Ali começamos a andar e o futebol já lá está. Na altura ainda era com aquelas bolas de trapos, que hoje muita gente não sabe o que era mas que tinha umas meias com tecidos moles lá dentro, não pode ser nada perigoso, e jogávamos com aquilo. Não tínhamos aquela bola de futebol como é normal mas inventávamos, com aquelas bolas de meias e o vício do futebol já lá estava. Continuou, sempre com os estudos em primeiro lugar mesmo quando entrei nos iniciados do Almada, fiz o percurso todo até ao primeiro ano de sénior, consegui sempre conciliar as duas com esse bichinho sempre a entranhar-se mais e quando aparece a hipótese do profissionalismo, aí já não há nada para fazer…
Qual foi o primeiro impacto de passar aquela porta 10A, que era na altura a entrada mítica do Estádio José Alvalade, vindo de uma segunda divisão?
Bem, a 10A era para os sportinguistas em geral, nós tínhamos aquela ao lado, a 8A, que ficava ali ao lado. A sensação… A sensação é pensar que tinha acabado de ver aqueles jogadores no Campeonato da Europa de 1984, em França, os Patrícios, são jogadores que admirava como o Jordão, o Damas ou o Manuel Fernandes, e de repente estou a equipar-me ao lado deles num balneário, a olhar para as partes intimas do senhor Damas, do senhor Jordão, do senhor Manuel Fernandes [risos]… Pensei ‘Ok, porreiro, ótimo!’. Mas ao mesmo tempo temos de disfarçar, não podemos estar ali sendo um colega e a olhar para o senhor Jordão como se fosse um suprassumo. E eu tinha uma admiração muito grande pelo Jordão…
Era o jogador que mais admirava? É curioso que muita gente fala do Jordão, não só pelo que era como jogador mas pelo que era como pessoa…
Era uma pessoa extraordinária, super inteligente, super culto… Era um artista! Quando acabou a carreira dedicou-se à pintura, já quando jogava também pintava porque tive acesso a algumas coisas. Ele dizia sempre que quando saísse do futebol era mesmo para sair do futebol e que não queria saber mais do futebol. Andou a preparar-se psicologicamente para isso e, com a inteligência que ele tinha, preparou logo a outra carreira que foi tendo enquanto era jogador. Ele era mesmo um artista, pintava como ninguém e tinha uma forma de estar especial. Até no balneário, a forma de estar era especial, a forma como os jogadores olhavam para ele. Respeitavam aquela vontade de ter privacidade, o que dentro de uma equipa de futebol é difícil. Curiosamente, demo-nos bem desde o primeiro dia, à exceção do primeiro treino…
Então?
Foi uma bola dividida, primeiro treino… Atingiu-o a sério, numa bola dividida, ele ficou assim a olhar de lado para mim… Mas não disse nada, eu é que fiquei aflito a dizer ‘Desculpe senhor Jordão, desculpe senhor Jordão’ mas ele também viu que não era por maldade, disse logo ‘Ok miúdo, tudo bem, não tem problema’. No final do treino veio ter comigo e perguntou onde ia almoçar. Disse que não sabia, que ia ficar por ali perto porque tínhamos treino depois à tarde e disse-me para ir almoçar com ele. A partir daí não foi uma amizade instantânea mas houve esse abertura que acabou por se tornar numa grande amizade. Era uma pessoa diferente mas quando gostava era até ao fim mas era um grande profissional e acima de tudo um grande jogador. As pessoas não imaginam sequer a qualidade técnica que ele tinha…
Como por exemplo?
Olhe, como brincadeira posso dizer que ele vinha ter comigo assim ‘Olha, hoje se me vires tocar a bola no treino com o pé esquerdo, cada vez dou-te cinco contos’, que naquela altura era muito dinheiro. Andava o treino todo a ver se tocava e não tocava, tudo com o pé direito. No treino da tarde era ao contrário, se tocasse com o pé direito na bola era cinco contos e era tudo com o pé esquerdo. O treino todo à procura, nada. Foi o primeiro jogador que vi a jogar igualmente com os dois pés, depois vi outros, como o Iordanov, mas não há muitos. E fazia isso de uma forma extraordinária, custou-me muitos almoços e jantares, porque era eu que pagava se perdesse, mas aprendi muito…
Chega em 1984/85 ao Sporting, deu esse salto da segunda divisão para um “grande” sendo que nunca tinha passado pela formação de um “grande”. Lembra-se desses primeiros jogos em Alvalade, do impacto do salto?
Lembro-me. Lembro-me bem dos primeiros jogos, lembro-me de um jogo treino na Naval com a Académica, ganhámos 3-1. Nessa altura o Sporting jogava com o mesmo sistema que tem agora, com os três centrais, com o Toschak. Vinha para o meio-campo e foi ele que me adaptou a central pelo lado direito pelas minhas características. O Venâncio era o central pelo lado esquerdo, depois havia o Virgílio e o Morato mas era por aí, o Carlos Xavier a fazer de Esgaio ou de Porro e o Mário Jorge de Nuno Mendes, quando cá estava, no ano passado. Jogávamos nesse sistema e foi a melhor coisa que me podia acontecer porque o Toschak dava-me liberdade, sabia que tinha pensamento de meio-campo, podia saltar mais. Eu na verdade queria era liberdade para correr porque das coisas que fazia melhor na altura era correr…
E tinha pulmão para isso…
Era das coisas que fazia melhor na altura [risos]. Depois provocava muitos desequilíbrios com a minha subida ao meio-campo e às vezes até à área. Provocava desequilíbrios embora só muitos anos mais tarde tenha aprendido a entrar bem na área para finalizar porque fui melhorando na finalização, naquela altura era só correr… No meu primeiro ano joguei quase sempre, o que é complicado porque quem vem de uma segunda divisão, chega ao Sporting e faz 90 e tal por cento dos jogos é complicado. Foi um salto tremendo e uns meses depois fiz também a estreia na Seleção… Ainda bem que em termos de carreira tinha a minha mãe e a estrutura familiar que me preparou porque é realmente um salto tremendo. Se não tivesse uma preparação familiar para aguentar esse estrelato, como as pessoas queiram chamar, ia ser complicado. Percebo as dificuldades pelas quais passam alguns jovens e também a necessidade de alguns jovens serem preparados para esse nível de competição e acho que às vezes descuramos um pouco isso e acontecem os casos como o [Fábio] Paim, por exemplo.
O que é que sentiu naquela altura, sair dos treinos e ter muita gente, não conseguir andar na rua sem passar despercebido?
No princípio era tranquilo, ninguém me conhecia. Depois quando começo a ser titular do Sporting e começa o Campeonato, ficou complicado… Tinha sorte porque fazia a viagem para a Alvalade com o Gabriel, que veio do FC Porto para o Sporting e vivíamos em Miraflores. Às vezes até vínhamos no Citröen 2 cavalos, adorava. Demorava de quando em vez a pegar mas quando pegava… Tinha um carro mais moderno mas ele adorava aquele e eu também. Era porreiro. Mas notei a diferença foi quando saí de Miraflores e, através da amizade que tenho com o Rosário, que é o adjunto do Fernando Santos, somos compadres, fui viver para Caneças. Aí no princípio tinha carro, já tinha comprado, e não tinha carta. Nos primeiros dois ou três dias vim de transportes públicos para Alvalade. Aí era impossível. Era por carinho mas as pessoas… Às vezes entrava no autocarro, encostava-me lá atrás, baixava o chapéu e fingia que estava a dormir, de Caneças a Alvalade ainda era uma viagem… Fingia que estava a dormir mas bastava o primeiro e era só dar autógrafos, não parava. Falei com o Sporting a dizer que tinha de fazer o exame e despachar as aulas, porque depois comecei a vir de táxi mas o meu ordenado não dava para aquilo todos os dias, mas uns meses depois tirei a carta.
Essa primeira passagem pelo Sporting tem sete anos e alguns pontos marcantes até em termos institucionais, porque é o final da era João Rocha, a passagem de Jorge Gonçalves e a chegada de Sousa Cintra, entre 1984 e 1991. O que é que recorda desses tempos, havendo quase um sentimento de muita carolice pelo meio?
Recordo logo o senhor João Rocha, era um presidente extraordinário. Talvez o melhor presidente de sempre do Sporting até à data. Tinha uma relação espacial com os jogadores que eram mais impactantes do Sporting, como era o caso do Jordão, do Manuel Fernandes, do Damas, era muito especial. Uma vez por semana ele fazia um jantar em casa dele, e era ele que cozinhava, fazia umas gambas extraordinárias, só para falar com os jogadores, perceber como estava a equipa. Ou seja, tentar ter o pulso da equipa através dos jogadores mais emblemáticos. Nunca vi nenhum presidente fazer isso, marcou-me. Quando o Jordão me convida para um desses jantares passados uns meses, que não foi logo, percebi o que presidente estava a pescar: saber o que se passa numa conversa informal, a jantar, de forma tranquila…
E gostava disso?
O Sporting cumpria todos os seus compromissos, sem faltar. Se o pagamento era no dia 30, pagava no dia 30. Depois o João Rocha fazia apostas especiais com os jogadores.
Lembra-se de alguma aposta especial?
Houve um jogo com o Athl. Bilbao, na UEFA, que eliminámos o Athl. Bilbao, o nosso prémio era 150.000 escudos. Que era o meu ordenado na altura! Para se ver, o prémio do jogo era o meu ordenado, para mim era muito dinheiro. Então ele chegou a esse tais jogadores mais emblemáticos e diz ‘Uma coisa: se eliminarem o Athl. Bilbao o prémio passa para 700 contos’, e 700 contos quase que comprava uma casa naquela altura, de 150 contos para 700 contos. Mas depois disse o resto: ‘Se forem eliminados, retiro 100 contos de cada um’. Logicamente que o Jordão e o Manuel Fernandes, que era quem tomava as decisões da equipa, aceitaram. E eu só disse ‘Senhor Jordão, só para dizer que ganho 150, se por acaso isto correr mal este mês…’ e ele a dizer para não me preocupar que íamos ganhar… [risos] Ele tinha apostas destas, era um presidente muito ativo e com coisas engraçadas, esta coisa de se não ganharem devolvem…
Depois entra Jorge Gonçalves.
O que notei quando ele entra é que tinha grandes ideias mas acho que entrou muito mal acompanhado. Acho não, tenho a certeza. Tanto que uma das pessoas que mais sofreu com a presidência de Jorge Gonçalves foi o próprio Jorge Gonçalves porque a vida dele a partir dessa altura ficou virada do avesso e acabou de forma trágica, como sabemos. Ele veio com boas ideias, lembro-me que a última negociação que ele fez, que na altura já era capitão do Sporting, já tinha conversas muito diretas, como por exemplo o Hassan que tinha vindo de Moçambique e não tinha recebido ordenado. Na altura, quase que o obrigava a ir buscar as receitas ao Bingo para pagar aos jogadores que mais estavam a necessitar.
Teve pena por exemplo de não ter jogado com o Rijkaard? Era uma das famosas unhas do Sporting que tinham sido apresentadas e esteve lá…
Não… o Rijkaard nós jogamos muitas vezes. Tanto que ficou uma boa relação, uma boa amizade. Ele já disse ‘Eh pá, nós os dois aqui a jogar juntos fazíamos o melhor meio campo da Europa’. E levávamos aquilo a brincar. Mas só para acabar esta fase do Jorge Gonçalves. Ele com aquela ideia das unhas e não sei quê, aquilo foi tudo complicado. Quando ele vai negociar o seu último empréstimo, com uma empresa internacional sediada na Holanda, deixa o mandato ao resto da Direção e diz assim “Pá, se eu não cumprir o empréstimo, peço a demissão. Quando está a negociar o empréstimo, a demissão já tinha sido pedida…
Não teve hipóteses então.
Ainda por cima ele foi atraiçoado pelos elementos da Direção. Nunca mais recuperou disso. E curiosamente o Sporting nunca mais recuperou. Porque aquilo entrou numa esfera… Depois veio o Sousa Cintra. Chegou uma altura tínhamos sete meses de ordenado em atraso, o que é muito. E com sete meses de ordenado, havia jogadores que já estavam há algum tempo no Sporting, como era o meu caso, portanto dava para aguentar, mas havia muita gente que tinha acabado de chegar. Era uma situação… Gerir aquilo e até como capitão de equipa, naquela altura foi muito complicado mesmo. Leva-nos a crescer às vezes, estes momentos de dificuldade. E quando chega o Sousa Cintra, é a fase de ele tentar resolver estes problemas. Mas depois também é a fase em que acabei por sair para Espanha.
Pegando precisamente por aí, a saída para Espanha em 1991, sai com Carlos Xavier, depois está três anos no País Basco. Como é que foi essa experiência, tendo em conta que estamos a falar numa altura em que a ETA estava muito ativa e havia a rivalidade com o Athl. Bilbau?
A primeira coisa que eu assustei, quando me aparece a hipótese da Real Sociedad, foi o problema da ETA. Não há que fugir a isso, por muito que possamos dizer que uma coisa é política e outra é futebol. E a ETA fazia atentados e matava muita gente, era uma situação muito complicada. Por isso tive de pensar bem. E curiosamente a decisão de ir para Espanha nem parte de mim, eu só vou para a Real Sociedad porque o Sousa Cintra me vendeu primeiro…
E só depois é que avisou?
Sim. Logicamente que eu podia ter dito que não, porque tinha esse poder. Quando o presidente fala comigo explica que é dinheiro que vai entrar no clube. Disse ‘Tu sabes que este clube está a precisar de dinheiro’ e no fundo também havia aquela minha necessidade de que se calhar precisava de sair para as pessoas me darem o valor que achava que já tinha nesse momento. Se calhar foi a junção das duas coisas porque se eu quisesse ficar, ainda tinha contrato com o Sporting, logicamente que podia ficar. O presidente podia ficar um bocado contrariado mas podia ter ficado… [risos]
Saiu mesmo.
Também foi a minha vontade em querer sair. Mas curiosamente quando cheguei a Espanha, essa minha preocupação da ETA desvaneceu-se por completo. Tinha certos cuidados. Primeiro, aí sim, não entrar nesse lado político da coisa, porque temos de compreender os países onde nós estamos e as realidades de cada região. E a zona basca, em termos de Espanha, tem uma realidade diferente de outras zonas. A Espanha vive muito por regiões, é completamente dividida entre o Norte, o Sul, zona basca, Andaluzia… Aprendi a respeitar isso. Tive uma coisa engraçada que o capitão de equipa me disse: ‘Podes dizer o que tu quiseres, não te vou dizer o que tens de dizer em termos de imprensa, mas seria bom que não dissesses que estás muito feliz aqui em Espanha, era melhor que dissesses estou muito feliz aqui no País Basco’…
Iam dando muitos conselhos desses quando chegou?
Foram-me dando algumas dicas de coisas que devia dizer, que era politicamente mais correto. E fiz isso. E realmente com a ETA, só tive um susto, que foi um dia em que estávamos numa cervejaria. Há muitas sociedades em Espanha, naquela zona basca, há sociedades em que as mulheres não podem entrar. Isto é um bocado machista mas é verdade, há sociedades só feitas de homens e quem gere a sociedade são os homens, que vão lá, juntam-se num grupo de amigos, é como eles chamam uma peña. Juntam-se ali, têm a despensa cheia, cozinham para eles próprios, estão ali a noite toda e vão embora. E eu uma vez estava numa dessas sociedades a jantar e há um amigo nosso que é morto pela ETA. Um miúdo que entra e mata-o à nossa frente. Aquilo já foi complicado…
Mas foi uma coisa aleatória?
Não, não é aleatório. A ETA no País Basco não fazia atentados aleatórios, fazia atentados que eram diretos às pessoas. Os atentados aleatórios que a ETA fazia era quando punha os carros bomba mas isso era sempre fora do País Basco.
E essa pessoa já conhecia antes ou era um amigo do amigo?
Era amigo do amigo, que estava ali na peña e que depois já conhecia. Porque de cada vez que eu ia lá jantar ele estava lá, era sempre o mesmo grupo de pessoas. Portanto as pessoas vão-se conhecendo mais. E depois outra coisa que me marcou em Espanha foi quando a ETA raptou um alcaide, pediu a libertação de uns quantos presos políticos e disse ‘Se vocês não libertarem este, este e este, nós matamos este homem. E ele foi morto ao vivo, com um telefonema. Eram 15h, quase que fizeram uma contagem. 4, 3, 2, 1 e ouve-se o tiro, depois aparece o corpo. Aí sim, aquilo envolveu-me de tal maneira… Pensei ‘Pá, não consigo fugir mais disto em termos políticos, neste momento tenho de dar a cara’.
E deu mesmo.
Porque esse alcaide era uma pessoa que estava sempre com o Real Sociedad. Viajava connosco, era um político que adorava o futebol e que adorava o Real Sociedad. E tinha a nossa idade, tinha 30 e poucos anos, um bocadinho mais velho. Mas era a nossa idade e era muito mais novo que muitos jogadores que nós tínhamos. O caso do Aranhaga, que era o capitão. E tínhamos uma relação muito próxima. E aí houve um movimento muito grande contra os atentados. Foi quando as ruas de San Sebastian tiveram milhões de pessoas na rua. Mas quando digo milhões, são mesmo milhões. Porque veio gente de toda a Espanha e aí fiquei na linha da frente na manifestação contra o terrorismo. Aí não há forma de fugir. Aconteça o que acontecer, mesmo que eu entre lá na famosa lista da ETA, que é complicado…
Já tinha nessa altura um papel de peso na equipa?
Quando eu cheguei no primeiro ano, com o Larrañaga, que era o capitão mas já estava em fase final da sua carreira, o Toschak disse-me que quando ele acabasse a carreira, que seria provavelmente nessa época, iria ser o capitão. Aí recusei, por causa da ETA. Se fosse capitão entrava na mira da ETA, o que era complicado, e recusei por isso. Disse ‘Se quiseres posso ser o líder da equipa, é uma coisa que acontece de uma forma natural, mas usar a braçadeira não’. Aquela braçadeira tinha muito simbolismo, era uma braçadeira com as cores do País Basco. Tinha muito simbolismo e sempre disse ao Toschak ‘Vamos entrar aqui numa guerra em que não devemos entrar’. Deve ser sempre um basco capitão de uma equipa da Real Sociedad.
Entre esses três anos, há também aquela oportunidade do Barcelona. Acha que foi “aquela” grande oportunidade que uma pessoa daqui a 20 ou 30 anos ainda vai pensar como teria sido?
É a grande oportunidade e sabia que dificilmente isso voltaria a acontecer ou provavelmente nunca mais voltaria a acontecer. Foi um bocadinho como quando me aparece a hipótese de vir para o Sporting, só que a hipótese de vir era treinar ao fim de semana e depois víamos o que ia acontecer. Como vir à experiência. E a minha mãe disse-me na altura “Tens contrato com o Nacional da Madeira, vai. O que pode acontecer? Não ficares no Sporting? Voltas para o Nacional. Mas o pior que te pode acontecer é ficares a pensar no que teria acontecido se tivesses ido’. A hipótese do Barcelona é um bocadinho isso mas de uma forma mais concreta porque o contrato já lá estava, portanto não era ir treinar à experiência. Eles iam pagar à Real Sociedad o que eles pediam, só que a Real Sociedad pediu este mundo e o outro. E eu com a minha idade… Na altura tinha 31 anos. E o Barcelona não podia pagar tanto dinheiro por mim.
Chegou a falar com o Cruyff na altura?
A reunião que tive foi mesmo com o Cruyff e com o Nuñez [presidente do Barcelona na altura]. Sou convidado para a festa de campeão do Barcelona, logicamente não apareci na festa, porque estavam lá as câmaras todas de televisão. E não dava porque o último jogo do campeonato era Barcelona-Real Sociedad. Eles disseram ‘Fica aqui, fala connosco’ e eu disse ‘Fico aqui mas não falo com vocês hoje’. Estiveram dois dias em festa e no segundo dia fui ter com eles ao hotel Maria Cristina, em Barcelona. Uma suite lá em cima com o presidente do Barcelona e com o Cruyff. A nossa reunião durou exatamente quatro minutos e meio. Eu dizia assim “Eh pá, isto é o Barcelona, vou pedir isto’. Um número que eu achava que era astronómico. E de repente o presidente do Barcelona faz-me uma proposta quase do dobro do que eu tinha pensado que era astronómico. E eu a fingir que estava a pensar… [risos]. Disse ‘Ok, tenho de pensar um bocadinho mas olhe, em princípio parece-me que está tudo bem…” [risos].
Estava tudo feito então.
Avisei-os na altura que iam ter um grande problema que era a Real Sociedad porque tinha mais um ano de contrato. E eles disseram ‘Não, não há problema, Temos aqui o Arconada, o Goicoechea, o Beguiristáin, o Bakero, tudo jogadores que vieram de lá. A nossa relação com a Real Sociedad é fantástica, não te preocupes com isso. O mais que complicado é isto que fizemos agora, que era chegarmos a acordo contigo, agora com a Real não te importes’. Mas estava o Toschak na Real, que tomava as grandes decisões e achava que eu era o melhor jogador. Nesse ano, a Real ia tornar-se numa sociedade desportiva e dizia ‘Nós não podemos vender o nosso melhor jogador sem uma contrapartida económica muito grande’. Pediram muito dinheiro e o Cruyff aí liga diretamente para mim a dizer ‘Não consigo convencer o presidente a pagar isso por ti. Tenho muita pena mas não vai dar’. Foi quando tive a minha grande discussão com o Toschak. Discussão séria mesmo. Mas não adiantou de nada. Acabei por ficar e cumprir mais esse ano.
Ficou mesmo em 1993/94 na Real Sociedad.
Mas fiz uma promessa nessa altura, disse que não renovaria com a Real quando acabasse. E não renovei, no fim do contrato vim para o Sporting.
Acaba por voltar ao Sporting em 1994. O que é que recorda desse regresso?
Para mim foi ótimo, eu saí pela porta 8A e regressei pela porta 10A. Os três anos de Espanha, em termos de sequência de carreira, foram extraordinários, foram os melhores anos da minha carreira. Em Espanha, estive sempre na seleção dos melhores jogadores a atuar na Liga, fui considerado o melhor médio a jogar em Espanha e na altura tinha uma concorrência feroz, estavam o Maradona e o Simeone no Sevilha, o Laudrup em Barcelona, havia jogadores fabulosos e eu estava nessa elite dos grandes jogadores. As pessoas em Espanha viam-me como um grande jogador e as pessoas no Sporting viam-me como um bom jogador, que tinha muita força mas algumas limitações técnicas. Depois fui eleito o melhor jogador de Espanha, numa eleição feita pelos treinadores, que é uma eleição que tem todo o significado.
E havia sempre aquelas festas entre os melhores do ano.
Todos os anos havia um jogo que era a seleção dos melhores jogadores a atuar no Campeonato espanhol contra Real Madrid ou Barcelona, ano sim, ano não. E antes desse jogo fazia-se o jogo das estrelas, com atores, cantores e atrizes, tudo se juntava, o Rei de Espanha também estava sempre lá. Era arbitrado pelos melhores árbitros, um dia inteiro que era uma festa do futebol com toda a gente do mundo do espetáculo e essa receita revertia a favor de uma associação da luta contra a droga. Nos jogos em Barcelona estavam 120 mil pessoas a ver em Camp Nou, nos jogos em Madrid estavam 80 ou 90 mil, que era o máximo no Santiago Bernabéu. Depois de estar três anos seguidos nessa festa, estou na elite do futebol espanhol. Quando regresso, os sportinguistas e os portugueses no geral já me viam com esse olhar de Espanha, porque foi na altura em que as televisões começaram a transmitir os jogos da Liga. Acho que a ida para Espanha permitiu isso. Saí pela porta 8A, a porta dos jogadores, mas voltei pela porta das feras.
Quem é que o impressionava mais nesses jogos de celebridades e estrelas?
O Maradona impressionava-me sempre, a forma como ele brincava com o futebol, como brincava com a bola. O Maradona tinha íman, toda a gente gostava dele, era uma coisa impressionante. E quando chegávamos a estas alturas ele atraía toda a gente. Na altura, lembro-me de que havia um jogador que era o Penev, um búlgaro, que teve um cancro nos testículos, uma coisa muito complicada, e recordo-me da alegria de todos nós quando estávamos no jogo e ele, depois de ter recuperado, fez um dos golos. É um dos momentos mais marcantes dessa altura. Até os jogadores da outra equipa vieram festejar com ele. Era um momento de confraternização muito grande e existia uma relação muito boa entre toda a gente.
A verdade é que podia ter voltado ao Sporting um ano antes e ter estado no célebre 6-3…
Ainda bem, assim só estive nos 7-1 [risos]. Lembro-me dessa história e as pessoas não sabem disto: a primeira pessoa que vai ter comigo a Espanha para falar do meu regresso ao Sporting chama-se Bobby Robson. Ele falava de uma forma tão entusiasmada e dizia-me sempre ‘Olha estes miúdos, vê estes miúdos, Figo, Peixe, Filipe etc.. Depois olha para estes jogadores experientes, Balakov, Valckx, etc. Tu vens para esta equipa e nós somos imbatíveis’. O entusiasmo dele contagiou-me e eu disse ‘Ok, vou voltar’. Quase que trato de tudo com o Bobby Robson e quando chego ao Sporting é quando o Carlos Queiroz assume. Mas as coisas foram quase todas tratadas com o Bobby Robson.
Isso alterou a forma como chegou?
Aconteceu aquela confusão com a inscrição de jogadores e quando cheguei tive uma conversa muito séria com o professor [Carlos Queiroz] e ele disse logo ‘Vens para cá, vais ser o líder desta equipa’. O Cadete decidiu oferecer-me de volta a braçadeira de capitão, porque achava que o capitão tinha voltado. O Carlos aceitou-me da melhor forma, achou que eu ia para ajudar e a ideia era essa. Mas o curioso disto tudo é que a primeira pessoa com quem falei sobre o regresso foi com o Bobby Robson e de repente, quando eu chego, ele já não está. Já tinha ido para o FC Porto e ainda veio ser campeão a Alvalade, o que foi duro…
Ganhou a Taça de Portugal em 1995 num Jamor completamente cheio e ainda uma Supertaça mas nunca foi campeão nacional com o Sporting. O que é que faltou a essa equipa que tinha Figo, Balakov, Amunike, Juskowiak, etc.?
Acho que em termos de equipa não nos faltou nada. É fácil nesta fase dizer que foi o sistema mas a verdade é que o Sporting era altamente penalizado pelas arbitragens. Não sei quem é que organizava as coisas, quem é que tratava das coisas por fora, mas nós em jogo sentíamos às vezes que era quase impossível ganhar. E continuávamos a tentar e a lutar e estivemos sempre nessa luta. Mas chega a uma altura em que cansa. E depois apareciam aquelas reações que os jogadores tinham e que provocavam cartões amarelos e cartões vermelhos… O Sporting, nessa altura, tinha talvez a melhor equipa dos últimos 30 anos. Tirando esta equipa do ano passado que foi campeã e que também tem mérito, foram extraordinários. Mas aquele plantel do Sporting era extraordinário, era para ganhar o Campeonato não só um ano mas dois, três, quatro anos seguidos. Infelizmente as coisas acabaram por não acontecer e depois não ganhas um ano, o Sporting é um clube vendedor e acaba por haver saídas. Sai o Balakov, sai o Amunike, sai o Figo e a partir daí a equipa só foi enfraquecendo ao longo dos anos seguintes.
Como é que surgiu a oportunidade de acabar a carreira no Toulouse e como é que correu essa experiência em França?
Acabar a carreira no Toulouse foi quase uma birra minha. Nos anos anteriores, tinha criado um contrato de palavra com o Sporting em que lhes disse que a partir daí renovava só por um ano. No final da época fazia o balanço, eles também, e decidia se dava para continuar mais um ano ou não. Porque quando eu vou para Toulouse já vou com 37 anos, acabei a carreira com 37 anos. Foi isso que aconteceu no meu último ano. Recordo que o meu último ano no Sporting, em termos produtivos, é o meu melhor ano de sempre em Alvalade, 1996/97. Marco o primeiro golo do Sporting na Champions contra o Mónaco, sou o jogador que tem mais minutos, sou um dos melhores marcadores da equipa apesar de ser um médio defensivo. Em termos de rendimento, foi mais do que ótimo. Nessa altura, pensei que se no ano anterior não tinha havido qualquer problema, muito menos iria haver nesse ano. O presidente do Sporting já era o José Roquette. Quando vamos aos Açores fazer um jogo amigável contra o Santa Clara falei com o presidente no avião e ele disse-me que quando voltássemos passava lá pelo estádio e assinava por mais um ano. Era uma conversa rápida. Claro que entrei logo naquele pensamento de que ia jogar mais um ano, de que ainda não ia acabar a carreira. Mas quando chego a Alvalade, dois dias depois, a proposta já é diferente…
Diferente? Então?
Oferecem-me o cargo de adjunto para um treinador que ainda não sabiam quem seria, porque estavam à procura de um treinador para a nova época. Mas disseram-me que eu ia ser adjunto, apesar de não ter os cursos de treinador, disseram que iam preparar-me com os cursos todos, para depois no futuro eu ser o treinador do Sporting. E eu perguntei o que tinha mudado, se dois dias antes era para ser jogador mais um ano porque é que achavam que não podia jogar mais. Disseram que era o melhor para o Sporting naquele momento, que era bom. Só que depois eu também tinha alguns amigos jornalistas que me alertaram para o facto de existir uma lista de dispensas que precisava da assinatura de um treinador. E depois aí é que percebi que não podia aceitar, o meu primeiro ato como treinador seria dispensar o Paulo Alves, o Pedro Barbosa, o Pedro Martins, etc., que foram todos metidos numa hipotética lista de dispensas. Era uns 12 jogadores, jogadores que eu achava que eram importantes para o Sporting porque eram grandes jogadores. Eu dizia que não percebia o porquê daquela lista de dispensas.
E o que fez então?
Marquei uma reunião com o presidente e disse-lhe ‘Percebo a oferta que me fez mas não percebo porque é que me quer dar este presente envenenado, de ter de assinar esta lista de dispensas’. E disse-lhe que ia continuar como jogador mais um ano. Ele disse que o Sporting não estava interessado em mim como jogador e eu disse ‘Ok’. Fui de férias, tinha contrato até ao início da época seguinte e quando acabasse o contrato eles tomavam a decisão, de querer renovar comigo ou não. Depois nas férias dispensaram-me de aparecer nesses dias em que ainda tinha contrato e eu, picado com isso, vou parar ao Toulouse, porque na minha cabeça queria jogar mais um ano.
Mas arrepende-se de ter tomado essa decisão?
Acho que foi um erro, tenho de reconhecer que estive mal. Não era por causa de mais um ano que ia melhorar alguma coisa em termos da minha carreira como jogador. Provavelmente, deveria ter aceitado o convite do Sporting e dava a volta a essa lista de dispensas. Mas na altura não pensava ou não sabia aquilo que sei hoje. Porque o ideal era aceitar esse contrato como treinador mas depois quando viesse essa lista de dispensas dizia que os jogadores eram importantes e eram grandes jogadores e o treinador era eu e eu é que assumia. Mas fiquei tão ofendido… Porquê? Se há dois dias achavam que ainda tinha toda a capacidade para ser jogador mais um ano? Quis mostrar-lhes que ainda tinha essa capacidade para jogar mais um ano. Em vez de ter levado para esse lado de querer mostrar alguma coisa, deveria ter tentado dar a volta à situação. Até porque aquilo que eu mais desejava era ter continuado no Sporting, mesmo que fosse como treinador. Deveria ter lidado com a situação de forma diferente.
Apanhou várias gerações na Seleção, dos tempos em que havia muitas guerras ainda pelos clubes a outros tempos mais serenos. Qual foi a equipa onde teve mais prazer a jogar?
Foi com a nova geração, sem dúvida, a chamada ‘geração Queiroz’, a geração dos miúdos que foram campeões do mundo em Riade e aqui em Portugal. Eu fui sempre apanhado entre gerações. Quando chego ao Sporting tenho o Jordão, Manuel Fernandes, Fernando Gomes no FC Porto, João Pinto, que são jogadores mais antigos, e eu no meio. E depois de repente chegam os jogadores da era Queiroz, jogadores mais novos, e eu continuo a estar no meio. Eu fui sempre um entre gerações, nunca tive a minha geração. Mas onde me deu mais gozo como jogador foi com os jogadores mais novos.
As divisões dentro da Seleção, originadas pelas rivalidades entre os clubes, acabaram por impedir um sucesso que podia ter aparecido mais cedo?
A Seleção estava completamente dividida. A Seleção só deixa de estar dividida com estes jogadores jovens que entraram na Seleção e com os jogadores que emigraram, porque aí perde-se um bocadinho o conteúdo dessa ideia do Benfica, do Sporting e do FC Porto quando a maioria está a jogar lá fora. Quando saem para o estrangeiro vêm com outra mentalidade para a Seleção, vêm com um propósito de estar mais juntos. O que afastou a Seleção de ganhar, durante muitos anos, pelo menos essa Seleção mais velha, não foi o talento que tinham, que era extraordinário, mas sim essa divisão que nunca permitiu que nós tivéssemos uma Seleção a 100%. Havia sempre qualquer coisa. Mesmo uma quezília ao longo dos treinos… Parece que não mas há sempre qualquer coisa que entra na engrenagem. Essa areia que entra na engrenagem depois aparece no jogo e não permite que a máquina seja perfeita. E na altura tínhamos jogadores para ter a máquina quase perfeita. Estivemos muito próximos da perfeição em 1984, na meia-final. Mas, mesmo nessa meia-final, quem eram os selecionadores? As pessoas não se lembram dessas alturas mas tínhamos jogadores perfeitos e olhávamos para o banco e cada um puxava para o seu lado, porque havia quatro selecionadores. Quem é que tomava as decisões? É uma coisa muito complicada…
Portugal foi às meias do Europeu em 1984, chegou a uma final pela primeira vez em 2004, conquistou o Europeu em 2016 e terá jogado o melhor futebol em 2000. Contudo, ficou a ideia de que o Euro-96 podia ter sido o primeiro passo nas conquistas da Seleção.
Esse primeiro passo deveria ter sido dado em 1996. A Seleção era fabulosa, tínhamos os nossos jogadores mais jovens no auge e os jogadores com mais experiência também estavam bem. Mas houve uma coisa que não programámos e que nos faltou, que às vezes acontece no futebol. Os nossos melhores jogadores – estamos a falar do Rui Costa, do Figo, do Paulo Sousa, aqueles jogadores que jogavam nas grandes equipas da Europa –, quando nós começamos o pré-estágio final, na Irlanda, foram para o Algarve para fazer um programa de recuperação. Devíamos ter feito esse programa de recuperação a esses três jogadores, pelo menos esses três, connosco, na Irlanda. Não havia tantas distrações como podem ter existido no Algarve.
Foi isso que falhou na fase final?
A grande verdade é que naqueles jogos equilibrados faltaram-nos as nossas estrelas, os que decidem os jogos, faltou-nos aquele lance de génio, do jogador que fisicamente está no seu auge. E realmente eles vinham de épocas extremamente desgastantes nos seus clubes e quando chegaram à Seleção não puderam dar o 100% que normalmente davam. Em termos de entrega deram, logicamente, porque davam sempre, mas em termos físicos não tinham esses 100% para dar. Acho que foi essa a diferença. E depois apanhámos uma República Checa fabulosa, temos de dar mérito ao adversário, que acabou por ir até à final. Mas esse devia ter sido o primeiro passo da Seleção portuguesa, porque tínhamos todas as possibilidades de conquistar esse Europeu, todas mesmo. Até de ganhar à Alemanha, perfeitamente. Quando entrou esta geração, eles jogavam olhos nos olhos com qualquer equipa, o que não acontecia com a geração anterior.
Mais olhos nos olhos do que hoje?
Acho que sim. Nem é jogar mais olhos nos olhos do que hoje, acho é que as outras equipas é que ficavam mais surpreendidas do que hoje. Porque de repente vem uma Alemanha e o Figo pega na bola e o Rui Costa e o Paulo Sousa e estão ali a dar “chocolate” e os alemães estavam à espera de ir para cima e de que estivéssemos sempre no processo defensivo e só tentássemos transições de vez em quando. E de repente quem tinha mais bola éramos nós. E essas equipas é que não estavam habituadas ao nosso talento. Agora é mais difícil surpreender porque as equipas já estão à espera, vemos o Bernardo Silva, o Cancelo, o Cristiano, o Bruno Fernandes, o Diogo Jota, todos lá fora. E eles também vêem e hoje em dia já não surpreende. Eles às vezes é que já não olham tanto nos olhos como deviam olhar.
O que é que deixou por fazer no futebol como jogador e o que é que ainda quer fazer como treinador?
Como jogador, deixei muita coisa por fazer. Em termos de trabalho, de profissionalismo, de entrega, não deixei nada por fazer. Mas podia ter tido mais títulos ao longo da carreira, ainda que isso não tenha dependido de mim mas sim de muitos outros fatores. Faltou o Campeonato com o Sporting, em termos de títulos, sinto que isso é uma falha mas fiz tudo para que pudesse acontecer. Infelizmente, não foi possível. Penso no que podia ter acontecido se tivesse ido para o Barcelona, se calhar a carreira tinha dado uma viragem de forma diferente. Mas eu não podia ter feito mais do que aquilo que fiz. Tomei talvez uma decisão errada que foi a última, devia ter ficado no Sporting no último ano em vez de ir para Toulouse, se bem que em Toulouse correu bem também…
E como treinador?
Como treinador, ainda me falta fazer quase tudo. aí, não há nada por fazer sabendo que ainda há muito para fazer. Falta-me fazer quase tudo. É esperar pelos próximos tempos, para ver se aparece um projeto que eu ache que é um projeto sólido e para encarar de frente e seguir aquilo que comecei em 2009, no União de Leiria. Comecei da pior forma possível, eu e o Domínguez, não havia melhor coisa para o batismo da nossa carreira do que apanhar aquela situação do União de Leiria, a acabar a época só com oito jogadores. Mas foi um bom começo, deu para aprender muita coisa. E a passagem pelos Sub-21 também me ajudou muito, trabalhar com os jogadores jovens. Nestes anos com o Queiroz, que foram alguns anos de aprendizagem, fiquei sem dúvida melhor treinador. Ter passado pelo processo de reconstruir a equipa B do Sporting também foi um processo muito aliciante, jogadores como o Eric Dier, João Mário, Bruma, Esgaio. Muitos daqueles para os quais olho no presente e fico satisfeito por vê-los no alto patamar em que estão.
Como é que olha para o que se passou no Jamor no jogo entre Belenenses SAD e Benfica e como é que analisa também o impacto que teve no estrangeiro?
A questão do Jamor levou-me para o passado. Passei pelo mesmo, ainda que em circunstâncias diferentes, no União de Leiria, ainda na Primeira Liga. Foi uma das grandes vergonhas que aconteceram no futebol português e este jogo do Jamor foi a segunda maior vergonha. Eu acho que neste momento estamos a ser falados no mundo inteiro da pior forma, tenho amigos e pessoas que conheço pelo mundo inteiro a dizer ‘Mas o que é que se passa no vosso país, o que é que se passa no vosso futebol, para permitirem que uma equipa jogue nas circunstâncias em que jogou?’. No fundo, isto é uma página negra do futebol português. Agora resta saber quem são os culpados porque normalmente é preciso que as coisas más aconteçam para depois andarmos todos aqui a apontar o dedo à procura dos culpados quando esta situação nunca deveria ter acontecido.
Acha que o futebol português aprendeu alguma coisa com essa situação do União de Leiria há quase dez anos?
Não, pelos vistos não. Aquilo no União de Leiria não teve consequências, só teve consequências para o próprio clube mas esse também já estava condenado até pela falta de pagamentos e pelas rescisões de jogadores que aconteceram naquela altura. Mas penso que não aprendemos nada com os erros e continuamos a cometer erros que são graves e difíceis de reparar. Este é um erro que vai ser muito complicado de reparar e que pode ter impacto no futuro da nossa Liga.
Outro dos temas quentes dos últimos dias é o sorteio do playoff de apuramento para o Mundial 2022, com Portugal a encontrar primeiro a Turquia e a poder depois ter pela frente a Itália caso esta vença a Macedónia do Norte. Ainda há esperanças na qualificação?
Acho que há esperança, há muita esperança. Estive no Estádio da Luz no jogo com a Sérvia e saí desiludido. Saí desiludido, especialmente, pela forma como nós não soubemos sair da teia que os sérvios montaram. Cometemos sempre os mesmos erros, fizemos sempre a mesma coisa e há um nome para isso, para quando se faz sempre a mesma coisa e tenta-se um resultado diferente… Mas nem vou por aí. Mas saí realmente desiludido. Acho que temos todas as hipóteses de estar no Campeonato do Mundo até porque penso que aprendemos muito com a derrota com a Sérvia. Mas há um erro em que nós não podemos cair: não podemos jogar com a Turquia a pensar na Itália. Porque aí sim, aí estaremos de fora do Campeonato do Mundo. A Turquia vai ser um adversário extremamente complicado. É um adversário acessível para a Seleção portuguesa, em circunstâncias normais eliminaremos a Turquia, mas é um erro muito grande quando há dois jogos que nos separam do Campeonato do Mundo e nós queremos jogar os dois jogos ao mesmo tempo. Primeiro a Turquia e depois vamos ver, até porque no futebol quem sabe se será Itália ou a Macedónia. Primeiro a Turquia e depois, sim, iremos encarar a Itália ou a Macedónia.
Portugal chega ao playoff porque no último jogo em casa e a precisar apenas de um empate perdeu com a Sérvia. O que é que Portugal tinha que perdeu nos últimos jogos? O que é que tem falhado na equipa para alguns dos melhores jogadores do mundo não conseguirem fazer a diferença no plano coletivo como antes faziam?
Acho que o grande problema é que Portugal ainda não mudou, Portugal está a meio caminho dessa mudança. E esse meio caminho provoca indefinições muito complicadas. Quando fomos campeões da Europa, Portugal era aquela equipa muito conservadora, assegurava o resultado e pronto. Agora, quer ser uma equipa muito ambiciosa porque tem jogadores muito talentosos, temos os melhores jogadores do mundo na nossa Seleção e é bom não esquecermos isso. Há grandes talentos na nossa Seleção mas, neste momento, Portugal está a passar por essa mudança entre aquela equipa super conservadora e uma equipa que assume o jogo. E como ainda estamos a meio dessa definição, vamos passar por alguns dissabores como passámos contra a Sérvia.
Mas porque é que Portugal não assumiu o jogo contra a Sérvia? É falta de arrogância?
Se nós olharmos para o jogo com a Sérvia, e isto já falando em termos de treinador, em termos táticos, Portugal tentou sempre fazer a mesma saída de jogo na primeira parte. Era o Rui Patrício a dar a bola para um central, o central dava para outro central e o outro central dava para o lateral e às vezes despachávamos a bola. Nós não conseguimos sair do nosso último terço devido à pressão da Sérvia. Uma equipa tem de ter mais soluções nessas saídas de jogo. E nós, se calhar, até temos, mas o que é certo é que nessa primeira parte não demonstrámos nenhuma outra solução. Não houve nenhuma vez em que o Patrício tivesse dado um murro na mesa e tenha dito ‘Meus amigos, subam no terreno que eu vou bater a bola’, para mudar um pouco essa saída de jogo. Tivemos sempre a mesma saída, sempre o mesmo padrão de saída de jogo e a Sérvia montou essa teia com quatro, cinco jogadores que nos pressionaram. As grandes jogadas de perigo da Sérvia aconteceram por ofertas nossas. Nós a querer sair a jogar e a perder a bola e a Sérvia a criar oportunidades de golo.
Mas como é que isso foi decisivo para o resultado final?
Se repararmos no segundo golo, que é o golo decisivo, existe essa tal indefinição. Como é que uma equipa que estava a jogar com cinco defesas, porque eram três centrais mais os dois laterais e ainda com a ajuda dos médios defensivos, acaba por sofrer um golo de cabeça no último minuto do jogo? Não com um jogador mas com dois ou três jogadores com possibilidade de fazer golo. É difícil para um selecionador — e eu sei porque trabalhei em seleções nos últimos anos — porque os jogadores jogam ao domingo, viajam no domingo à noite ou segunda-feira, chegam segunda-feira ou terça e há um jogo na quinta-feira. É difícil trabalhar em termos táticos. Por isso é que, quando um treinador concebe essa ideia de jogo, tem de trazer os jogadores certos para essa ideia, porque não tem tempo para preparar os jogadores para a ideia tática que tem do jogo. O que falta um bocadinho na nossa Seleção, e perdoe-me o Fernando Santos, é que não podemos trazer sempre os mesmos jogadores quando temos uma ideia de jogo diferente. Temos de começar a trazer os jogadores certos para a ideia de jogo que queremos para a Seleção, porque não há tempo para os preparar. Em março, temos três dias para decidir se vamos ou não estar no Campeonato do Mundo e os jogadores, quando chegarem, vão estar a dois ou três dias do jogo. Não há tempo para preparar nada taticamente. Tudo aquilo que o nosso selecionador quiser fazer para o jogo com a Turquia, tem de começar a pensar já quais são os jogadores certos. Porque não consegue treiná-los e não consegue prepará-los da forma como os clubes conseguem, porque trabalham todos os dias a preparar o jogo que vão ter no fim de semana ou a meio da semana.
O Oceano decidiu não seguir agora viagem com Carlos Queiroz para o Egito mas vai continuando a seguir o seu trabalho. Como é que vê estes primeiros tempos marcados pelas vitórias e para a qualificação para o playoff de apuramento africano?
É lógico que sigo muito de perto o trabalho do Professor, até porque foram muitos anos juntos. As pessoas pensam que foi desde 2013 mas não, já começou antes, em 2009, quando o Professor Carlos Queiroz estava na seleção portuguesa, no apuramento para o Mundial da África do Sul de 2010, e eu era selecionador dos Sub-21. Aí é que começou a nossa relação laboral em termos de técnicos, porque já tinha começado antes, ele como treinador e eu como jogador. Vai ser uma ligação que se vai manter sempre e é lógico que eu sigo o Egito. Esta primeira fase do Egito podemos dizer que foi de sucesso absoluto. A equipa fez aquilo que queria, conseguiu o primeiro lugar do grupo, e agora é esperar pelo sorteio final, que também vai ser um playoff duríssimo. Como diz o Scolari, aquilo é mata-mata e pode calhar tudo, vai ser complicado. Têm agora a CAN mas esse torneio serve mais como preparação do que outra coisa porque provavelmente não vai contar com os jogadores que jogam na Europa, só com os jogadores locais. Mas é um torneio que lhe vai permitir ter um maior conhecimento dos jogadores que depois pode utilizar nessa fase duríssima que é o playoff. Mas eu penso que o Egito tem todas as condições para chegar ao Campeonato do Mundo e aí o Professor Carlos Queiroz vai fazer história, porque será dos poucos selecionadores a ter cinco Campeonatos do Mundo e por quatro seleções diferentes [África do Sul, Portugal, Irão e Egito].
Já teve alguma abordagem ou algum contacto nestes últimos tempos para poder assumir um projeto? Dá preferência a Portugal ou gostava de ir para o estrangeiro?
Neste momento estamos na fase dos contactos. Têm aparecido algumas coisas, provavelmente a decisão estará para breve mas ainda não há nenhuma decisão tomada. Há um interesse da minha parte — e foi por essa razão que fiquei — em querer continuar a minha carreira como treinador principal e é esperar. Eu não vivo com o mal dos outros e às vezes os treinadores têm isso, estão na bancada a esfregar as mãos para que as coisas corram mal dentro de campo para o colega ser despedido e assumir. Eu tenho essa vontade de treinar mas não desejo mal a ninguém para depois poder aproveitar essa situação. Vamos ver o que vai acontecer.
Mas preferia ficar por cá ou continuar a treinar no estrangeiro?
Não sei, sinceramente não sei. Às vezes dou por mim a pensar que ficar aqui em Portugal é complicado, porque em termos de futebol as coisas estão muito complicadas no nosso país e eu estive tantos anos fora que não sei se irei habituar-me à forma como as coisas estão neste momento.
Complicadas como?
Em relação ao jogo, em relação à imprensa que nós temos e que também é um bocadinho complicada, em relação àquilo que nos dão na televisão em termos de consumo de futebol. Vendem que falar mal é que é bom, dizer mal é que é bom. Viver nesse ambiente, para mim, é muito complicado. Sou uma pessoa muito frontal, sou uma pessoa muito direta, e às vezes começo a ver certos programas da nossa televisão e tenho de mudar de canal porque irritam-me solenemente. É a cultura de dizer mal, dizer mal apenas por dizer mal. E não é só no futebol, infelizmente na política também acontece. Mas o futebol põe-se a jeito, muitas vezes.
Esteve cinco anos com Carlos Queiroz no Irão, que deu um salto enorme no plano mais internacional. Acha que nesta altura com o aumento de iranianos na Europa e alguns em grande nível como o Taremi já existe o reflexo do crescimento ou ainda vai aumentar?
Acho que já existe, até porque nós fizemos esse trabalho em termos de preparação dos jogadores iranianos para a alta competição nestes anos em que estivemos lá. No princípio, quando chegámos à seleção do Irão, existiam poucos jogadores a jogar fora do Irão. isso permitiu-nos ter uma flexibilidade para fazer esse trabalho, aquilo que eu digo que o selecionador não tem, que é trabalhar com os jogadores. Nós no Irão tivemos isso. Fizemos um protocolo com os clubes em que os jogadores jogavam ao fim de semana e aqueles jogadores da nossa matriz, que era à volta de 50, 50 e tal jogadores, ficavam connosco segunda, terça e muitas vezes quarta-feira a fazer recuperação e nós já a darmos alguns conceitos táticos daquilo que nós queríamos e a prepará-los em termos físicos, com trabalho de ginásio e etc, para a alta competição. Tivemos um ano e pouco a preparar esses jogadores para isso antes de começarmos a fase de apuramento para o Campeonato do Mundo da Rússia. E é aí que começamos a trazer novos talentos para a seleção, nomeadamente o Taremi, o Sardar [Azmoun], o Jahanbakhsh, e andámos à procura de jogadores iranianos fora do país como é o caso do Ghoddos.
Esse trabalho acabou por criar a próxima grande geração iraniana?
Fizemos um trabalho de prospeção muito grande e preparámos uma seleção com uma média de idades de 22, 23 anos, que se apurou para o Campeonato do Mundo sem derrotas, que é uma coisa histórica. Se olharmos para a média dessa seleção, não há dúvidas de que têm jogadores para os próximos 10 anos. Neste momento, estão em primeiro lugar na fase de qualificação para o Campeonato do Mundo e não tenho dúvidas de que se vão qualificar, com os jogadores que eram os nossos jogadores, digamos assim. O Irão está mais do que preparado e se nós olharmos agora cada vez há mais jogadores iranianos a jogar por essa Europa fora e por esse mundo fora e isso é sinal de que as pessoas já começam a olhar para o jogador iraniano de outra maneira. Porque eu recordo que, na altura, falei com muitos clubes aqui em Portugal, falei da qualidade dos jogadores iranianos, indiquei muitos jogadores incluindo o Taremi e ninguém parecia estar interessado. Foi preciso o Taremi ter vindo para o Rio Ave para as pessoas começarem a acreditar que, se calhar, o jogador iraniano tinha potencial. E é bom para o futebol iraniano, porque o melhor futebol está na Europa e o jogador iraniano ao vir jogar para a Europa vai beber muito desse melhor futebol que se pratica cá.
No Campeonato, temos já na próxima sexta-feira um Benfica-Sporting. Estava à espera de um Sporting tão consistente mesmo com um aumento de jogos e com a entrada na Liga dos Campeões? O que é que espera deste dérbi?
Sinceramente, estava à espera de que o Sporting fosse consistente este ano. Se repararmos, o Rúben Amorim começou a preparar esta equipa e esta forma de jogar ainda antes da época em que o Sporting foi campeão. O Rúben teve tempo, teve esses meses antes e fez esse trabalho. E fez a prospeção para exatamente aquilo que eu digo: encontrou os jogadores certos para o sistema que queria impor dentro da equipa. E penso que conseguiu fazer isso. No ano passado, o Sporting foi uma surpresa só para quem não olhava para os jogos do Sporting. E o que é engraçado é que quase todos os treinadores dizem que sabem como é que o Sporting joga mas não sabem como é que podem dar a volta a essa forma de jogar. Isso quer dizer que o Rúben tem um sistema de jogo bem preparado para a sua equipa e o que eu noto, a grande diferença que eu noto no Sporting deste ano para o Sporting da época passada, é maior consistência defensiva. E isso torna uma equipa perigosa. Uma equipa campeã tem de ter consistência defensiva, não há nenhuma equipa que consiga ganhar o Campeonato sem consistência defensiva a não ser o Barcelona dos anos do Cruyff em que sofria quatro e marcava cinco. Mas, normalmente, uma equipa que é campeã tem uma grande consistência defensiva e isso permite ao Sporting uma coisa: o Sporting faz um golo no jogo e nota-se a quase plena certeza dos jogadores de que já ganharam o jogo. E isso é muito difícil de obter numa equipa de futebol. Vimos agora este jogo com o Tondela no fim de semana — a partir do momento em que o Sporting fez o golo parecia que o jogo estava decidido e o golo foi nos primeiros minutos de jogo. É essa consistência defensiva que faz com que esta equipa comece a acreditar e acabe por se tornar uma equipa muito perigosa. Acho que o Sporting este ano vai ser um dos concorrentes ao título.
Mas qual é que acha que vai ser o resultado final do jogo de sexta-feira?
Chamamos o João Pinto para os prognósticos no fim do jogo! Mas sinceramente, neste tipo de jogos, o que desejo sempre é que ganhe o melhor. Essencialmente, espero que seja uma grande propaganda do futebol positivo. Porque estamos a precisar de coisas boas no nosso futebol. E bom seria um bom jogo, sem casos, sem problemas e que ganhasse a melhor equipa.