Não podia haver maior eufemismo do que aquele que inicia a curta biografia no site oficial do Presidente bielorrusso: “Alexander Grigorievitch Lukachenko é um dos políticos mais conhecidos da Bielorrússia moderna.”
Alexander Grigorievitch Lukachenko é, na prática, o único político da Bielorrússia moderna. No dia 20 de julho de 2014 celebrou o seu vigésimo ano consecutivo como o homem mais poderoso desta ex-república soviética. Para muitos o relógio parece ter parado naqueles tempos: grande parte da imprensa pertence, ou tem ligações, ao Estado e serve apenas de plataforma para o Governo lançar a sua propaganda; os poucos media independentes que sobram vivem sobre o fio da navalha; para cada mil cidadãos há 14 polícias, o maior rácio da Europa, e os serviços secretos continuam a chamar-se KGB; há oito presos políticos na Bielorrússia e a tortura continua a ser prática.
Ainda assim, nada disto parece afetar a vida de muitos bielorrussos. O cidadão comum é, por norma, desinteressado por política e não percebe porque no estrangeiro o seu país é visto como uma ditadura. Se por momentos esquecermos as estátuas de Lénine, o busto de Felix Dzerjinski, fundador do KGB, e a toponímia dedicada a nomes como Marx e Engels, Minsk será igual a qualquer outra capital europeia. Não lhe faltam lojas vistosas, nem restaurantes para todo o tipo de carteiras, desde o McDonald’s à haute cuisine. No metro, a maior parte dos passageiros entretém-se com smartphones e e-readers.
Os críticos referem-se a Lukachenko como o “último ditador da Europa”, expressão cunhada em 2006 pela então Secretária de Estado norte-americana, a republicana Condoleezza Rice. Os seus apoiantes falam de um homem justo e um líder carismático, o único que foi capaz de unir a Bielorrússia. No meio estão os factos: Lukachenko é o líder europeu que está há mais tempo no poder.
O sonho soviético
Ninguém teria como adivinhar que iria ser esse o futuro da criança que nasceu a 30 de agosto de 1954 em Kopys, uma aldeia pobre e rural do Nordeste da Bielorrússia. Criado pela mãe e pelos avós, a infância e adolescência de Lukachenko foram marcadas pelo estigma de nunca ter conhecido o pai. A ausência parental foi motivo de chacota por parte dos colegas durante a infância e a adolescência. Na escola, nunca passou além de um aluno mediano. Já nas atividades extracurriculares o seu lado competitivo e ambicioso era o que mais sobressaía.
Lukachenko teve uma ascensão tipicamente soviética. Depois da escola secundária, estudou para ser professor de História. Já com o canudo na mão, foi chamado para cumprir o serviço militar obrigatório. Quando lá chegou, aos 23 anos, tornou-se tenente e instrutor político de um batalhão de guardas fronteiriços. O seu dever era o de manter o moral dos seus camaradas elevado e o de educá-los ideologicamente. Fazia-o com gosto e primazia, demonstrando um talento natural para falar em público. Quando saiu da tropa, escolheram-no para liderar, na região de Moguilev, o Komsomol — a juventude política estatal da União Soviética, ainda hoje ativa na Bielorrússia sob a sigla BRSM. Aos 31 anos, quando a sua integridade ideológica estava mais do que provada, foi escolhido para um cargo que muitos bielorrussos das zonas mais rurais tinham como o mais cimeiro e prestigiado: diretor de um colcóze, isto é, uma das quintas coletivas que marcaram a agricultura soviética.
Ao mesmo tempo que Mikhail Gorbatchov aplicava a perestroika e a glasnost desde Moscovo, Lukachenko geria o seu colcóze no Este da Bielorrússia com um punho de ferro. Mais tarde, quando questionado acerca de um rumor que surgiu sobre esses tempos, negou que tinha o hábito de bater nos trabalhadores daquela quinta de criação de porcos. Anos depois, porém, acabou por confessar — agredia-os, mas apenas porque apareciam bêbedos ao trabalho. Histórias como esta são, ainda hoje, um exemplo a que os seus apoiantes recorrem para elogiá-lo: “Se ele sabe gerir um colcóze, então sabe gerir um país!”
Em 1990, já o Muro de Berlim tinha ruído e a União Soviética não tardava a seguir-lhe o exemplo, Lukachenko foi eleito como deputado no Soviete Supremo da Bielorrússia. Foi lá que começou a dar sinais da sua veia populista e oportunista. O seu discurso era volátil, moldando-o consoante o que lhe convinha para chegar mais perto do topo. Uma prova disso é que chegou a estender a mão ao grupo parlamentar anticomunista, a Frente Nacional Bielorrussa, mas acabou por retirá-la assim que conseguiu tornar-se líder dos Comunistas pela Democracia. Alexander Feduta, jornalista, antigo ministro e compagnon de route de Lukachenko entretanto arrependido, escreveu assim na biografia do Presidente bielorrusso: “[Desde cedo] tornou-se claro que ele tinha sede de poder. Da mesma maneira que um rapaz de 16 anos deseja intimidade com uma mulher, Lukachenko, com cada fibra do seu espírito, com cada célula do seu organismo, queria ter poder.”
Em 1991, o parlamento foi chamado a votar a dissolução da União Soviética. Foi o consumar de uma certeza: 263 deputados votaram a favor do fim do império fundado por Lénine. Houve ainda mais três votos. Dois deputados abstiveram-se e apenas um votou contra. Ao longo dos anos, Lukachenko fez tudo para alimentar o mito urbano de que o voto solitário tinha sido dele. As testemunhas, porém, contam outra história: na altura da votação, que era secreta, Lukachenko ausentou-se, talvez para não se comprometer com nada nem ninguém quando tudo parecia ter pés de barro. Momentos depois de os resultados serem conhecidos, voltou ao plenário.
Foi naquelas mesmas cadeiras que assumiu a liderança da comissão parlamentar encarregada de investigar casos de corrupção que envolvessem deputados. Em 1993, dirigiu-se aos seus colegas enquanto segurava uma resma de papéis e disse-lhes: “Tenho aqui factos terríveis e muitos dizem respeito a pessoas que estão sentadas nesta sala.” O estilo agressivo e altamente condenatório, até justiceiro, era apenas maquilhagem. Em todo o documento, havia apenas um caso de corrupção denunciado: um deputado teria usado dinheiros públicos para construir uma garagem na sua casa de campo.
Ainda assim, a maneira como se dirigiu aos restantes parlamentares foi o bastante para o seu nome passar a ser conhecido por grande parte dos bielorrussos. Numa altura em que muitos temiam que o cenário russo — privatizações relâmpago, ondas de corrupção inéditas, inflação galopante e aumento radical da pobreza — se alastrasse à Bielorrússia, Lukachenko foi o político mais perspicaz a perceber que, para singrar, tinha de apostar numa retórica que apelasse à nostalgia soviética.
“Um homem primitivo”
O ano seguinte, 1994, foi de eleições presidenciais. A opinião publicada previa a vitória de Stanislau Chuchkievitch, então Presidente interino, ou de Viatcheslav Kiebitch, na altura primeiro-ministro. Já a opinião pública não deixou dúvidas: Lukachenko era o homem que se seguia. Na primeira volta conseguiu um total de 45,8% dos votos, deixando Kiebitch para segundo lugar com 17,7%. A segunda volta foi arrasadora para o primeiro-ministro, que viu os seus votos a descerem para 14,2%. Lukachenko vencera com 80,6%.
Chuchkievitch, hoje com 79 anos, recorda aqueles tempos ao Observador sentado na cadeira ortopédica do seu escritório. “As coisas naquela altura eram muito fáceis. O Lukachenko era um tipo sem experiência, quase ingénuo. Tanto eu como o Kiebitch [que morreu 11 dias após as eleições] éramos pessoas com estudos, portanto sabíamos que não podíamos prometer grande coisa às pessoas”, relembra, com a voz pesada e arfante. Para o primeiro Presidente da Bielorrússia pós-soviética, nunca houve dúvidas quanto a Lukachenko: “Desde o início ele demonstrou ser um homem primitivo. Foi por isso que fez todo o tipo de promessas às pessoas, que julgaram que íamos voltar aos tempos da União Soviética.”
Opinião semelhante tem Yuri Rastchevatski, realizador de 67 anos e autor do primeiro documentário sobre Lukachenko. Em “Um Presidente Vulgar” (1996), Rastchevatski conta a história da ascensão do Presidente bielorrusso, alternando entre um tom cómico e denunciativo.”Em 1989 parecia evidente que as pessoas já podiam dizer o que pensavam. Esse período prolongou-se durante cinco anos. Falar livremente passou a ser um perigo no final de 1994.”Desde então, Lukachenko tem governado sem obstáculos. Em 1996 lançou um referendo com sete questões que o tornou, legalmente, um ditador. O sistema político passou a ser divido em duas câmaras: o Palácio dos Representantes (a mais baixa) e o Conselho da República (mais próximo de Lukachenko). Metade dos nomes de cada um destes órgãos, tal como no Tribunal Constitucional e na Comissão Eleitoral, seriam escolhidos pelo Presidente. No Tribunal Supremo e no Tribunal de Contas, a escolha passou a ser exclusiva de Lukachenko. Além do mais, todos os seus decretos teriam valor de lei, dispensando aprovação parlamentar.
Foi reeleito em três ocasiões: 2001 (77,4%), 2006 (84,4%) e 2010 (79,7%). Ao contrário do que aconteceu nas eleições de 1994, as únicas totalmente livres na história da Bielorrússia, todos os plebiscitos que se seguiram foram marcados por fraudes eleitorais denunciadas por observadores independentes nacionais e internacionais. A campanha eleitoral é sempre marcada por episódios de intimidação e limitação da oposição. Em 2010, embora já se temessem os problemas do costume, ninguém estava preparado para o que ia acontecer.
“No dia das eleições havia muita tensão, mas também havia um clima de antecipação”, diz Andrei Sannikov, recordando ao Observador numa conversa por Skype o dia 19 de dezembro de 2010. Naquele ano, o ex-diplomata era o candidato da oposição mais bem colocado para fazer frente a Lukachenko. Ao mesmo tempo, o regime mostrou-se aberto a fazer algumas concessões, nomeadamente abrir a televisão do Estado aos candidatos da oposição que, pela primeira vez, tiveram direto a tempos de antena em direto. A campanha eleitoral foi relativamente livre e houve debates na televisão. Lukachenko não participou nem numa nem noutra.
“Eu acreditei genuinamente numa hipótese de mudança em 2010. A Bielorrússia estava muito mal economicamente e tinha-se tornado claro que Lukachenko não tinha respostas para os problemas que surgiram. As pessoas estavam mesmo muito fartas de Lukachenko.”
Estar na mó de baixo não é fácil. Assim foi com a Bielorrússia em 2010, quando caiu nas más graças da Rússia, então presidida por Dimitir Medvedev. Após a recusa de Lukachenko em privatizar a Beltrangaz, a empresa estatal de gás natural, a Rússia reagiu. Até aí, Minsk lucrava com a exportação de gás russo para a Europa através dos seus gasodutos. Era esta a base do frágil “socialismo de mercado” de Lukachenko, juntamente com a possibilidade de comprar combustível russo a preço de amigo. A Rússia ameaçou fechar a torneira e Lukachenko não teve outra escolha se não ceder e vender a Beltrangaz. A economia, porém, continuou frágil e periclitante. A inflação estava nos 53%. Ainda assim, conforme é tradição quando as eleições estão por perto, o Governo aumentou os salários da função pública e as pensões.
Nos calabouços do KGB
Estavam mais de 50 mil pessoas em frente ao parlamento bielorrusso. O edifício branco, de traços espartanos e utilitários, tem pela frente uma estátua com mais de vinte metros de Lénine. Era ao pé dela que Sannikov, juntamente com outros sete candidatos presidenciais, incentivava a multidão com palavras de ordem, ao mesmo tempo que apelava à calma. Já todos sabiam que Lukachenko teria vencido as eleições com 79,7% dos votos e que Sannikov, o mais votado de toda a oposição, teria conseguido apenas 2,56%. “Queríamos que fosse uma manifestação totalmente pacífica”, relembra.
Apesar dos apelos, houve quem avançasse sobre as portas de vidro do parlamento e as partisse com estrondo. Por momentos, estava iniciada uma tentativa de invasão a um dos principais edifícios do regime. A custo, grupos de manifestantes pacíficos conseguiram parar os mais hostis, que foram prontamente acusados de serem agentes infiltrados.
Sannikov estava acompanhado pela mulher, Irina Ralip, uma jornalista de investigação de caneta afiada e incómoda para o regime de Lukachenko. Foi ao seu lado que o candidato presidencial recebeu uma mensagem a dizer que representantes do Governo estariam à sua espera no edifício do parlamento para negociar com ele. Por momentos, pensou que tinha vencido. Era mesmo aquilo que ele queria. Era mesmo aquilo que todos os manifestantes queriam. Quando Sannikov comunicou esta informação à multidão, pediu-lhes para regressarem ordeiramente a casa. Assim o fizeram. Em pouco tempo a praça esvaziou.
“Depois eles atacaram.” Sannikov lembra-se de ver dezenas de polícias a avançar atrás de enormes escudos cinzentos, quase da altura deles, munidos de um bastão. Uma mão cheia deles correu na sua direção e pontapearam-no até ele cair. Depois, colocaram um escudo por cima do seu corpo e saltaram-lhe em cima repetidas vezes. Ao mesmo tempo, Ralip tentava salvar o marido, que ficara inconsciente durante o ataque. Quando recuperou os sentidos, percebeu que tinha a perna partida.
Por sorte, encontraram um amigo que lhes ofereceu boleia para o hospital. No caminho, enquanto Ralip dava uma entrevista a uma rádio moscovita, o carro foi parado pela polícia. Ainda com o telemóvel ligado e em direto para os ouvintes russos, Ralip foi arrastada para uma carrinha e Sannikov para outra. Foram os dois para os calabouços do KGB. Nessa noite, cerca de 700 pessoas foram detidas. Nos dias seguintes, os serviços secretos recolheram, por satélite, o número de telefone de todas as pessoas que estavam naquela praça. Durante meses ligaram-lhes, perguntando-lhes o que tinham feito naquela noite. Além de Sannikov, sete candidatos presidenciais foram presos. Um deles, Mikola Statkevich, continua atrás de grades.
Ralip, a mulher de Sannikov, esteve encarcerada durante um mês. Depois seguiram-se quase cinco meses de prisão domiciliária — durante este tempo todo, em que quase perdeu a custódia do filho de três anos, viveu com dois agentes dos serviços secretos permanentemente dentro de sua casa.
Já Sannikov foi condenado a cinco anos de prisão por organizar manifestações violentas. Ao fim de um ano e seis meses, com a saúde em risco, foi amnistiado pelo próprio Lukachenko. Nada que o faça esquecer a tortura, a negação de cuidados médicos e as ameaças de morte que recebeu.
Quando foi libertado, deu uma conferência de imprensa onde criticou o regime, exigindo a libertação de todos os presos políticos na Bielorrússia. Lukachenko não demorou a reagir. Com os olhos na objetiva das câmaras da televisão estatal, deixou o recado: “Mais um ato de pressão e esses fala-baratos que acabaram de ser libertados, e que deviam era estar agradecidos, voltam imediatamente a ser presos!” Foi a deixa para Sannikov sair do país.
Hoje vive em Varsóvia, a capital da Polónia, enquanto a mulher e o filho continuam em Minsk. A pouco mais de um ano das eleições presidenciais de 2015, Sannikov não tem grandes expectativas. Numa altura em que ainda não se sabe se a oposição vai apresentar várias candidaturas ou se avança um nome em conjunto, o ex-diplomata não guarda esperanças: “As forças da oposição serão controladas pelos serviços secretos.” Por outro lado, defende também que o tempo de Lukachenko está a chegar ao fim. “Vai tornar-se quase impossível para ele fingir que é apoiado pelo povo, que é alguém que o povo seria capaz de eleger.”
Há números, porém, que contradizem as convicções de Sannikov. A IISEPS, a única agência de estudos de opinião pública independente na Bielorrússia, mostra números positivos para o ditador. Em setembro, 53,5% dos inquiridos disseram confiar em Lukachenko, contra 33,3% que responderam negativamente. Se as eleições fossem em setembro, 44,5% teria votado nele.
Sannikov rejeita estes números e acusa a IISEPS de imparcialidade: “Eles são controlados pelo KGB. Se não é pelo KGB, é por outro órgão qualquer.” Para ele, esta agência nunca se “atreveu a mostrar quão baixa é a popularidade” do Presidente. “Os bielorrussos não são estúpidos para quererem viver numa ditadura”, responde, irritado.
“Pai só há um”
Sergei Nikolyuk, sociólogo da IISEPS, já está habituado a ouvir acusações como as de Sannikov desde que entrou para a agência há sete anos. “Eu até já fui membro do Partido Cívico Unido, mas tive de sair de lá porque toda a gente estava irritada comigo. Pessoas como eu, da organização para a qual eu trabalho, estragam-lhes a imagem que eles têm do mundo.”
Quando fala de números, Nikolyuk ressalva: “No nosso país os votos não são contados.” E mesmo que fossem, e dando-se o caso de haver eleições livres e justas, o académico garante que os resultados não seriam radicalmente diferentes. “Lukachenko teria cerca de 55% dos votos, suficiente para vencer na primeira volta, e a oposição teria cerca de 28%”, vaticina. “Mais coisa, menos coisa.”
Para Nikolyuk, estes números justificam-se com o que é para si um facto: 20 anos depois da primeira eleição de Lukachenko, a sociedade bielorrussa continua igual.
“Na ciência política existe um termo que é ‘liderança russa’ e o seu melhor exemplo não existe na Rússia, mas sim no nosso país. Este poder é centrado numa só pessoa e todos os outros são geridos por ele. O executivo, o legislativo, o judicial… Tudo. Este tipo de liderança é típico para pessoas que pensam de uma maneira que antecede à criação do próprio Estado. Isto é muito típico para o bielorrusso comum. Para ele, o Estado é visto como uma família enorme. Mas é uma família, de qualquer maneira. E Lukachenko é o pai, o líder da família. Como se diz aqui, batska. E por ocupar um lugar paternal na cabeça da população, esta não pode sequer pensar numa alternativa. Pai há só um.”
Shushkievitch, o primeiro Presidente da Bielorrússia pós-soviética, refere que esta mentalidade faz “parte da código genética do nosso país, e isto não está próximo de mudar”.
O exemplo preferido de Nikolyuk está na língua russa, a mais falada na Bielorrussa. Em russo, Estado diz-se gassudarstvo. “Mas uma coisa não tem nada a ver com a outra.” O primeiro, explica, é o “produto do trabalho e do debate de muitas pessoas e instituições”. O segundo, pode ser explicado etimologicamente. Gassudar, a palavra raiz de gassudarstvo, significa “senhor”. Assim, a ideia de Estado é concentrada numa só figura. Essa figura é, já sabemos, Lukachenko.
“Nos tempos medievais, o líder dava terras aos camponeses para eles trabalharem. Estes, em troca, teriam de servi-lo e velar pelos seus interesses.” Na Bielorrússia moderna, as “terras” são apartamentos baratos, educação e saúde gratuitas, pensões estáveis e imposto sobre o rendimento a 12% para todos — dos camponeses aos milionários.
Mas nem tudo são rosas. O salário mínimo são €120 ou €0,73 por hora. Em média, um professor universitário recebe €470 mensais, apenas cinco euros acima do salário médio. Em Minsk, os supermercados têm os mesmos preços do que em Lisboa e as rendas de apartamentos são semelhantes.
No que diz respeito a rankings a Bielorrússia está longe dos tops. Em matérias de liberdade de imprensa, a reputada associação dos Repórteres Sem Fronteiras coloca o país de Lukachenko em 157º lugar num total de 180. Na corrupção, a Transparency International colocou-o em 123º entre 177 países. No Índice de Liberdade Económica, determinado pela Heritage Foundation, um think tank conservador norte-americano, os números são da mesma ordem: 150º em em 178 nações.
É também na Bielorússia, onde o Estado detém 80% da economia, que existe um dos códigos laborais mais precários da Europa. Desde 2002 que é possível um trabalhador ser infinitamente contratado a prazo — o equivalente a um falso recibo verde. Ao abrigo desta lei é possível, por exemplo, despedir um professor no final do período letivo e voltar a contratá-lo assim que as aulas recomeçarem. Esta foi a forma encontrada pelo regime de controlar preventivamente todo e qualquer trabalhador. Ir a uma manifestação, criticar Lukachenko ou dizer mal do gassudarstvo nas redes sociais pode ser um erro fatal.
Nem Chuchkievitch passou ao lado de medidas deste género. Aos 79 anos, recebe uma reforma que, nominalmente, correspondente a 75% do que era o seu salário quando esteve no poder. Ao todo, 3200 rublos bielorrussos. No entanto quando o parlamento mudou de nome para Palácio dos Representantes em 1996, todas as pensões daqueles que trabalharam no órgão extinto foram congeladas e tornadas imunes à inflação. Em 1996, 3200 rublos eram razão suficiente para não se ter preocupações. Em 2014, 3200 rublos são 0,23€ e não chegam para comprar um bilhete de metro.
“Ordenhadoras ganham 3 mil dólares”
Outra das explicações para o sucesso de Lukachenko é o domínio quase total dos media, sobretudo das rádios e das televisões. A agenda de visitas protocolares de Lukachenko é amplamente dissecada nos telejornais, onde é comum ver-se o Presidente bielorrusso a conduzir um trator ou a visitar uma fábrica. É raro o telejornal em que Lukachenko não aparece, e poucos aqueles em que ele não faz parte da notícia de abertura.
Em “Ploscha”, um documentário de Rastchevatski de 2006, o realizador visita uma aldeia isolada, de onde os seus habitantes raramente saem. Não têm televisão nem telefone e a única janela que têm para o resto do mundo é o rádio. Assim que veem uma câmara, os aldeões queixam-se das suas condições de vida. O tom é de revolta. O cineasta pergunta-lhes, então, se acham que Lukachenko é o culpado da situação deles. “Claro que não!”, respondem-lhe de imediato. “Eles no rádio dizem que todas as outras aldeias são boas, tudo o resto na Bielorrússia é perfeito. Só aqui na nossa aldeia é que vivemos na merda!”
Para Rastchevatski, o alcance da propaganda de Lukachenko dentro de fronteiras nunca foi nenhuma surpresa. O que o deixou embasbacado foi quando visitou a mãe, que vivia a mais de mil quilómetros da Bielorrússia, na cidade ucraniana de Odessa.
“Ainda estás à luta como Lukashenko?”, perguntou-lhe a mãe.
“Sim, ainda estou”
“Mas está tudo tão bem lá [na Bielorrússia]! Nas vossas aldeias até as ordenhadoras ganham 3 mil dólares!”
O realizador não queria acreditar no que ouvira.
“Mamã! Onde é que ouviste isso?!”
“É o que toda a gente diz”, devolveu-lhe a mãe, como se falasse de uma verdade universal.
A fórmula é simples, explica: “Eles inundam as pessoas com estes boatos, criam estes mitos e as pessoas querem acreditar neles. As pessoas querem acreditar que existe algo bom.”
Rastchevatski conta esta história com o mesmo humor que é patente nos seus documentários. Quando nos abre a porta do seu escritório, está a acabar de editar um vídeo de desenhos animados onde Lukachenko tenta convencer Putin a deixá-lo fazer parte do seu plano de dominação mundial. O humor, garante, é uma das poucas armas que restam na Bielorrússia.
“Um dos principais instrumentos do poder, quer na Rússia, quer na Bielorrússia, é lançar o pânico na sociedade. Eles tentam assustar toda a gente, querem implementar um terrorismo estatal”, diz, sentado à secretária. “O humor acaba por ter fins terapêuticos. É uma boa terapia para as sociedades amedrontadas, porque as pessoas libertam-se rindo.”
Nikolyuk, porém, não é tão otimista quanto isso. Embora o humor possa ter os seus méritos, não vai ser através deste que as pessoas se vão libertar de Lukachenko. Na verdade, o académico não vê uma maneira de Lukachenko deixar de ser Presidente da Bielorrússia além de este morrer.
“Infelizmente, muitas pessoas creem que estão numa situação confortável neste momento, mesmo que vivam mal, mesmo que não tenham comida suficiente, mesmo que não tenham liberdade nenhuma. As pessoas acham que estão confortáveis. É uma pena, mas é verdade.”
* Este texto é o primeiro de uma série de três trabalhos sobre os 20 anos da Bielorrússia em ditadura, que o Observador publicará até terça-feira.