Em 2015, o anarquista e ativista ecológico Eric McDavid foi libertado da prisão a meros dias de cumprir nove dos 20 anos de pena a que tinha sido condenado por planear colocar bombas em infraestruturas energéticas na Califórnia. Porquê? Porque entretanto se provou que tinha sido aliciado a cometer tais atos por “Anna”, uma informadora do FBI que se infiltrou no seu coletivo enquanto agent provocateur. A demonstrá-lo estavam 2,500 páginas de documentos que as autoridades propositadamente ocultaram — incluindo cartas de amor entre McDavid e Anna. Antes, em 2011, o mundo ficou a saber que o ativista ambiental britânico Mark Stone era, na verdade, o agente infiltrado Mark Kennedy, agindo nas sombras durante sete anos e manipulando várias mulheres a ser sexo com ele, algo que fez com o conhecimento dos seus superiores. Ironia das ironias, não só as vítimas processaram a polícia, como o próprio, caído em desgraça, também, o fez — alegando não ter sido bem preparado para evitar apaixonar-se.
Estes são apenas dois de muitos casos de vigilância sobre comunas rurais e grupos ativistas que inspiraram Rachel Kushner a escrever O Lago da Criação, publicado em Portugal pela Relógio d’Água e um dos títulos incluídos na shortlist de finalistas do Booker Prize deste ano. Em Lisboa a convite do LEFFEST, a escritora norte-americana de 56 anos — uma das mais celebradas da sua geração — contou ao Observador as motivações e os anseios que a levaram a escrever um romance cuja criação descreve como tendo sido “a experiência mais divertida” da sua vida.
A história segue “Sadie Smith”, o pseudónimo de uma agente norte-americana desgraçada e a trabalhar a soldo, contratada por uma empresa para infiltrar-se no Moulin, um coletivo anarquista no meio rural do sul de França que pode, ou não, ter perpetrado atos de sabotagem contra mega empreendimentos agrícolas na região. Após seduzir Lucien, um realizador parisiense, que lhe abre a porta para o grupo, tem como objetivo provocar a comuna e o seu líder, Pascal Balmy, a radicalizar-se e inevitavelmente entrar em rota de colisão com as autoridades.
O que Sadie não esperava era começar a deixar-se afetar pelos escritos de Bruno Lacombe, mentor do grupo e ativista dos tempos do Maio de 68, que deixou a civilização para ir viver para as cavernas da região como um ermita. Servindo, como Kushner descreve, como “o coração do livro”, Bruno, mais do que rejeitar a vida moderna, indaga-se onde é que falhámos e para onde seguimos. “Se Deus existe, pode ser um homem como Bruno ou uma pessoa como ele, porque mesmo que algumas das suas teorias sejam um pouco lunáticas, como se estivesse a criar mitos, ele pergunta: como podemos sair do carro sem condutor que está a aproximar-nos da extinção? Acho que é uma pergunta justa”, afirma.
Depois de Telex de Cuba, Os Lança-Chamas e O Quarto de Marte, Rachel Kushner volta a apontar o olhar para os colocados e os que se colocam à margem da sociedade, algo que, defende, advém em parte de ser uma escritora “virada para o exterior e que faz relatórios desse mundo”. Assim, escreveu um romance que abraça os anseios do nosso tempo — não só os climáticos, mas, de certa forma, o que é que andamos aqui a fazer.
O ato de escrita é por vezes associado à procura tortuosa por inspiração e criatividade. No caso de O Lago da Criação, tem dito que foi uma das experiências mais divertidas da sua vida. Em que sentido?
Quero contextualizar dizendo que gosto bastante de viver. Nem toda a gente gosta. Mas escrever o livro, assim que comecei a fixar o texto, foi um período de prazer quase maníaco, porque escrevi-o todo em 14 meses, foram dias longos, de levantar-me às cinco da manhã e escrever até às sete da noite. Conseguia ver tudo o que estava a descrever e, quanto mais mergulhava no texto, mais vívidas e precisas se tornavam as imagens, foi como se um filme se formasse à minha frente. Quase comecei a preferir o universo paralelo que estava a criar ao universo real em que vivo, mesmo que, para mim, a vida seja muito sagrada e abençoada até nos pormenores mais banais. Acredito em tentar aceder às pequenas alegrias de todos os dias. Mas os primeiros três anos e meio a tentar perceber o livro não foram assim.
Em que sentido?
No fundo, já andava a pensar num romance como este, talvez desde finais de 2008. Conheço alguns franceses que formaram uma comuna numa zona rural de França e foram invadidos pela polícia. O meu marido tinha uma espécie de ligação a eles e, por isso, eu tinha uma proximidade com este mundo que me permitiria reproduzi-lo sob a forma de um romance. Mas ainda não tinha pensado em quem seria o narrador, sendo que esta é uma componente essencial. Até podemos ter ideias e sentimentos, a estética e o conhecimento de uma região. Aliás, esta parte rural de França — a que as pessoas chamam “La France profonde” [“A França profunda”] —, é algo que eu realmente compreendo porque passei lá muito tempo. São lugares onde os parisienses não costumam ir, e as pessoas que lá vivem nunca estiveram em Paris. Aliás, estão-se a cagar para Paris.
Desprezam-na, até.
Sim, bem vimos o que aconteceu quando os Coletes Amarelos chegaram a Paris e começaram a incendiar coisas e a pintá-las com spray. O que queria dizer é que é possível ser capaz de reproduzir a sensação natural de uma região, talvez compreender algo sobre as lutas dos agricultores, assim como algumas diferenças e alguns elos entre eles e os jovens anarquistas que vêm das cidades e têm formação universitária. Ou entender a história da França rural, que é incrível numa lógica de resistência, não apenas na Segunda Guerra Mundial com a verdadeira Resistência francesa, mas durante centenas de anos antes, no que toca às revoltas camponesas e ao tipo de orgulho que as pessoas têm nestas áreas. Ou podemos ter uma relação com as cavernas: o sítio a que vou em França é todo constituído por cavernas de calcário, e Lascaux fica lá perto, sendo que há outras diferentes onde ainda se pode entrar. Podemos ter todas estas sensações e noções, mas isso não é suficiente para escrever um romance.
O que fica a faltar? Uma estrutura?
Sim, e precisa de uma perspetiva. E um dia, de repente, apercebi-me. Comecei a escrever a primeira página do livro — que já não é a atual primeira página — e fi-lo na perspetiva do Bruno. Tinha este conceito de um ancião para o grupo, alguém que concebi como um refugiado do longo século XX: perdeu a família na Segunda Guerra Mundial, foi muito moldado pelo maio de 1968, viveu os cumes da possibilidade revolucionária e depois os baixos do colapso dessa possibilidade nos anos 70, sendo que depois mudou-se para esta região rural pensando que “o campesinato é o verdadeiro sujeito político”. Na altura em que o romance se passa, por volta de 2013, decidiu que o capitalismo veio para ficar e que não há forma de o mudar, mas está convencido de que o projeto humano não é uma causa perdida e que podemos renovar a nossa consciência. Por isso, tive a ideia deste homem que rejeitou a vida contemporânea, se bem que não de uma forma niilista, pelo menos não é assim que o concebo; ele é uma espécie de pessoa muito gentil e afirmativa, mesmo estando totalmente separado dos demais. Ele é a pessoa mais ligada à comunidade no livro, apesar de estar totalmente isolado e de não o conhecermos. É um eremita, mas está na comunidade humana, enquanto Sadie circula constantemente entre as pessoas. mas é ontologicamente… eremita é a palavra errada, é uma solipsista. Uma pessoa profundamente só, talvez numa espécie de crise ontológica, porque como é que alguém se pode mover pelo mundo sem ter um sentido de responsabilidade perante as outras pessoas? Ela diz “deixo o meu lixo onde quer que vá, não há razão para o limpar uma vez que nunca mais volto ao mesmo sítio duas vezes”.
É quase como se ela não tivesse sequer uma noção de si mesma, porque essa noção está sempre relacionada com a próxima missão, certo? Por isso, ela metamorfoseia-se para conseguir isso.
Exatamente! Na altura, não estava a pensar conscientemente nisso, mas penso que é uma espécie de homenagem ao género do romance policial, o facto de não se descobrir muito sobre o narrador. Para ler Raymond Chandler, não é preciso saber sobre a infância de Marlowe. E não precisamos de saber sobre a infância de Sadie, mas ela quer contar ao leitor sobre os seus disfarces anteriores, como se essas “camadas de cebola” pudessem constituir a sua personalidade. Na verdade, o que elas traduzem é o seu foco, o seu processo de pensamento quando está a completar um trabalho é dizer ao leitor e a si própria que é uma perfeccionista, que não comete erros, mas depois é suposto o leitor reparar que ela bebe muito e pensa que consegue identificar fraquezas nas outras pessoas que elas próprias não conseguem identificar. De repente, quando escrevi aquelas primeiras linhas, “os Neandertais eram propensos à depressão”, fiquei com a ideia de que a voz do Bruno estava a ser interpretada por uma mulher, como se alguém estivesse a ler os seus comunicados. E depois, na terceira página, apercebi-me de que ela é uma força hostil que entrou em cena. E talvez na quinta ou sexta página, ela era uma “dessas pessoas”.
O que quer dizer com “essas pessoas”?
Quero dizer que, na vida real, eu tinha visto uma agente do FBI que aliciou alguém que era amigo de um amigo, não o conheço pessoalmente, e ele foi acusado e condenado a 21 anos numa prisão federal. E cumpriu nove anos antes de o seu advogado conseguir provar que ele tinha sido aliciado por essa mulher. Eu tinha visto isto acontecer e pensei “que tipo de pessoa faz isso para viver?” Que tipo de satisfação profissional e pessoal se pode obter arruinando deliberadamente a vida de outras pessoas? Porque não vejo que os ativistas ecológicos de esquerda sejam uma ameaça genuína para o sector da energia. E depois houve o caso de um agente britânico que se infiltrou junto de communards franceses, que eu conheço, e alguns americanos foram apanhados no meio disso e foram acusados. Estavam a passar pelos seus processos judiciais e, como sabes, quando se é arguido e se é acusado de um crime, a acusação tem de entregar aquilo a que chamam provas de descoberta, tem de mostrar todas as provas que tem contra nós. Uma das pessoas minhas conhecidas neste caso mostrou-me as provas que o seu advogado tinha recebido da acusação e vi as fotografias de pessoas que conheço a andar na rua em Nova Iorque e que estavam a ser fotografadas de perfil com uma teleobjetiva, não faziam ideia.
Um pouco como o que acontece no livro com o líder da comuna, Pascal.
Retiramos da vida para o texto, ou pelo menos eu retiro, aquilo que nos mancha a consciência e que exige ser olhado e interrogado. Ver pessoas a serem fotografadas que não sabiam que o estavam a ser enquanto andavam na rua… E também o facto de serem jovens, de serem estéticos e de fazerem parte de um grupo, de partilharem uma sensibilidade e um conjunto de esperanças. A Sadie não tem simpatia por estas pessoas. Já eu tenho demasiada simpatia por elas. Por isso, para escrever um livro sobre isto, a única forma de o fazer foi quase adotando a perspetiva deste “diabo”, esta mulher que é totalmente hostil em relação a eles, porque através dela pude ver como é que eu e o meu sistema de crenças podemos suportar esta mulher de lança-chamas em riste. Como se ela estivesse a tentar apontar as contradições de cada pessoa, não a partir de um lugar de retidão moral, mas de uma espécie de niilismo. Ela está sempre a citar o Eclesiastes, que é a voz mais crítica, descrente e pessimista do Antigo Testamento. Por isso, não sei, aconteceu por acaso, mas acho que parte disso se deveu ao facto de ter tido esta história, de ter visto estes infiltrados que são agentes provocadores. Ouvimos falar disto, das pessoas que conduziam operações psicológicas, como a CIA fez durante o Movimento dos Direitos Civis dos negros nos Estados Unidos no início dos anos 60, e pensamos [sussurra] “eles fizeram mesmo isso!” E ainda o fazem hoje em dia! Eu coloco no livro uma versão fictícia do agente britânico, sendo que a pessoa na vida real tinha desaparecido para o setor privado, tendo sido contratada por uma empresa militar privada que se chamava Blackwater. Eles estiveram envolvidos no Iraque, não sei como se chamam agora [Constellis], mas isso deu-me informação suficiente para ter a estrutura da possibilidade de uma pessoa como ela, como a Sadie. Porque eu sabia que, quando se é um agente caído em desgraça, tem-se ainda muitas oportunidades profissionais. E é nesse ponto que a encontramos. E quando percebi tudo isso, foi quando o livro fez clique, e foi tão divertido para mim escrevê-lo.
O que está a dizer, de certa forma, é que a criação da Sadie foi para si uma forma de criar distanciamento quanto a temas que lhe interessam?
Se calhar, sim, para me afastar e também para testar-me… [Pausa] Há uma espécie de simbiose ou de complemento no livro entre dois opostos, que são a Sadie e o Bruno. Porque o Bruno, diria eu, é o coração do livro, é muito mais próximo de um tipo de voz em que eu gostaria de acreditar. Se Deus existe, pode ser um homem como Bruno ou uma pessoa como ele, porque mesmo que algumas das suas teorias sejam um pouco lunáticas, como se estivesse a criar mitos, ele pergunta: como podemos sair do carro sem condutor que está a aproximar-nos da extinção? Acho que é uma pergunta justa. E colocá-la abertamente é demasiado óbvio, mas fazê-lo através de uma personagem que está a produzir este tipo de correspondência semelhante a um sermão foi um pouco catártico para mim, porque como é que se responde a essa pergunta? Ele está a tentar fazê-lo com a sua própria filosofia caseira e eu achei isso muito curativo. É uma espécie de inconsciência enquanto se está a construir o romance e, só depois, quando se é forçado a produzir esta linguagem suplementar para os jornalistas, depois de se ter escrito o livro, é que se começa a perceber o que se estava a fazer. Mas acho que, obrigando-a a ser interlocutora dele, está a transpor o seu texto, pelo que é inevitável que ele tenha um efeito sobre ela.
Descreveu a Sadie como uma espécie de “demónio”, mas, ao mesmo tempo, penso que ela não é apenas uma marioneta colocada ali para fazer avançar o enredo, tem a sua própria capacidade de reflexão. Como foi concebê-la?
É uma pessoa em crise, mas há momentos que me sugerem que ela própria é uma pessoa bastante explorada. Transformou o seu corpo num instrumento, anda com uma faca de lâmina fixa, uma lanterna e algumas armas. Isto é um aparte, mas a verdade — e ainda não tinha dito isto a nenhum jornalista —é que conheço algumas pessoas desde a infância que têm políticas muito reacionárias. Não é que gostem de Trump — quero dizer, tenho a certeza que se votaram, votaram nele — mas são mais do género apocalíptico isolacionista, gostam de armas, são uma espécie de sobrevivencialistas. Há um tipo — na verdade, foi a primeira pessoa que beijei quando era adolescente! —, que vive no Nevada e que publica nas redes sociais fotografias dele e dos filhos a disparar armas enormes no deserto. Então perguntei-lhe o que é que uma pessoa que trabalhe neste tipo de área levaria consigo em missão. E ele respondeu-me. Eu não só queria que isto fosse realmente exato, mas também estava interessada numa espécie de mudança tonal para um registo jocoso de Sadie a falar especificamente sobre as marcas das lanternas que transporta consigo.
Além disso, o corpo dela também é mais uma ferramenta no seu arsenal. Não há qualquer juízo de valor da minha parte, mas as pessoas que conheci quando era mais nova e que puseram implantes, é como se o peito já não fosse delas e estivessem num bar, a abrir a camisa, do género “o que é que vocês acham das minhas mamas?” Porque, nessas alturas, o corpo é partilhado, é um serviço que é prestado a outras pessoas em vez de ser apenas algo privado, para elas próprias. Nem sempre é o caso, mas para a Sadie é, creio eu. Ela encara-o como uma ferramenta. E há aquela sequência em que ela se lembra de ver um documentário, que mostra uma entrevista com uma trabalhadora do sexo que trabalha numa estação de comboios. É um filme real de Silvano Agosti, chamado D’Amore Si Vive, e apresenta uma conversa totalmente devastadora com esta mulher. E no final da entrevista, aparece um texto que diz que ela se suicidou no dia seguinte. Por isso, fui buscar isso à realidade, é o que se pode fazer com a ficção: colocar lá questões sobre as quais nos interrogamos na vida real. Adoro a oportunidade de pegar num filme, comprimi-lo e transformá-lo numa mini-cena em que damos ao leitor pormenores suficientes para que ele possa ver por si próprio. Quando mobilo o meu universo paralelo, também peço emprestado mobiliário artístico. E o filme é um meio que me interessa muito, a ideia de como é se faz essa transição. Então Sadie pergunta a outra personagem, Vito — porque foi ele que recomendou este documentário italiano — se acha que o realizador se sente responsável pelo suicídio desta mulher e ele responde “não sei, mas garanto-te que ele nunca a esqueceu”. Porque penso sempre nisso, no pobre Silvano Agosti, porque ele faz a esta mulher estas perguntas muito pessoais como “o que pensa da morte”, “o que pensa dos homens”, “como considera a sua vida”, e é muito pesado. Mas, no final da sequência em que ela recorda o documentário, pergunta-se “será que me estão a pagar o suficiente por este trabalho?” É que depois querem que ela essencialmente aniquile este político francês…
O vice-ministro ligado aos projetos agrícolas.
Sim, ele é basicamente inspirado num político francês real. Não sei até que ponto é ou seria evidente para um leitor português, mas é uma espécie de Manuel Valls, que foi primeiro-ministro de França. Achei que não era capaz de derrubar um primeiro-ministro, por isso, despromovi-o severamente a vice-ministro do Ministério da Coesão Rural, que é um ministério fictício mas que podia muito bem ser real. Muitos dos projetos rurais que o Estado francês está a levar a cabo têm a ver com essa “coesão”, no sentido de tornar a prática agrícola mais fácil para as grandes empresas agrícolas de estilo industrial, porque de outra forma é muito difícil competir no mercado aberto da UE.
Voltando um pouco atrás, mencionou a Sadie como uma “pessoa em crise”. Existe a ideia de que a maioria das pessoas, senão todas, pode ser suscetível de ser influenciada nas circunstâncias certas — isto aplica-se a cultos, mas também ao pensamento de grupo político e social. Olhando para ela, temos a sensação de que, sob o seu exterior cínico, anseia por significado, por alguém que a ajude — e é por isso que começa a ruminar cada vez mais sobre os ensinamentos de Bruno. O que pensa sobre isso?
Acho que ela é suscetível aos ensinamentos dele, em parte devido ao isolamento em que se encontra. É quase como se ele fosse o seu único companheiro na realidade que partilham, porque ela não se apresenta como uma pessoa real às outras pessoas. E assim, por consequência, talvez ela não se sinta tão real para si própria, apesar de ter impulsos reais. Todas as pessoas as têm, e ela diz que podemos satisfazer necessidades reais mesmo sob o artifício da nossa persona. É por isso que ela acaba a foder com este tipo, o René, porque é como se pudesse satisfazer as suas necessidades reais através dele. E depois, quando tem de dormir com o Lucien, sente uma verdadeira repulsa porque não se sente atraída por ele. E ele está apaixonado por, como ela diz, “uma mulher que não existe”. Mais tarde, no livro, ela diz ao leitor, quanto a Pascal, “vocês não são reais para mim, ninguém é”. Mas penso que mover-se pelo mundo como alguém sem responsabilidade é uma forma muito frágil de viver.
De viver e de descarregar nos outros, parece-me.
De descarregar, talvez, sim. Talvez seja arrogante dizer isto, mas parte da razão pela qual penso que sou uma pessoa feliz é porque, nesta altura da minha vida, sei limpar a minha porcaria, tento ser gentil com as outras pessoas, compreendo ser apenas uma pequena parte de um universo enorme e que o meu significado deriva dessa humildade; não de pensar que o meu mundo é o mundo real, porque o solipsismo é uma receita para a infelicidade. Mas ela está a ler os comunicados dele e, logo no início do livro, ele descreve o local onde estão, aquilo a que o romance chama a “Guyenne” — é fictício, é o nome antigo de uma grande parte da Baixa França que existiu até 1790, penso eu, mas inclui lugares reais em que estou a basear esta região que conheço muito bem. À medida que Sadie se desloca pela paisagem, ela lê as descrições de Bruno sobre as nozes, as uvas, as grutas e a história dos agotes, e isso torna-se para ela a sua única companhia na realidade. E o que ela está a ver, a informação que está a receber visualmente, é reconfirmada pelo que leu dele. Por isso, é quase como se ele lhe estivesse a mostrar como incorporar a realidade, como estar nela. Assim, mais tarde no livro, ela parece quase surpreendida e escandalizada quando compreende que os próprios Moulinard consideram Bruno um excêntrico.
Era suposto ele ser o guia deles.
Sim, mas, em vez disso, agarraram-se a outra personagem, a Jean, e à sua ideia de que o mais importante é conseguir um preço marginalmente melhor para o leite, que este é o caminho a seguir. E o Bruno está a dizer “não, essa é apenas uma peça ligeiramente maior do puzzle”… Criei os dois caminhos, foi uma espécie de piada comigo própria, porque adoro Proust e [na obra Em Busca do Tempo Perdido] há O Caminho de Swann e O Caminho de Guermantes — e isto é como se houvesse o caminho de Bruno e o caminho de Jean. Mas ela torna-se, penso eu, na sua única verdadeira discípula. Talvez se veja a si própria como a sua filha espiritual. Por isso, acabo por vê-la como alguém mais compreensivo, mas ela tem também esta indagação no livro sobre a relação das pessoas com a política, e parte da tua pergunta parece apontar para isso. Como diz a Sadie, “não há política dentro das pessoas”. Tal como muito do modo como nos definimos e diferenciamos socialmente num grupo e reconfirmamos a nossa própria identidade, a formação do nosso ego, muito disso desaparece quando enfrentamos o nosso “eu das 4 da manhã”.
Ela chama-lhe o “sal” que todos nós temos. Ia perguntar-lhe o que queria dizer com isso.
O “eu das 4 da manhã”, tal como o entendo, é literalmente quando nos enfrentamos a nós próprios a essa hora da noite, quando estamos muito vulneráveis, porque muitos dos ruídos mais reconfortantes que amortecem e cobrem a forma como pensamos em nós próprios, como atuamos, como funcionamos para nós próprios — em termos do nosso superego e da formação da identidade — e para com as outras pessoas, muito disso é despojado nesse momento. E Sadie diz que as pessoas podem ter, nesse momento, nessa versão de si próprias, alguma noção de como a vida deve ser vivida, alguma noção de certo e errado. Mas isto vai mais fundo, não é o tipo de micro-divisão das nossas política, como “sou um anarquista anti-marxista”, ou “sou um bordiguista”, ou “sou um Democrata centrista”. Há um substrato mais duro na pessoa.
É quase como se carregássemos uma essência que, de certa forma, resiste a doutrinações?
Talvez, sim. Quero dizer, sinto que não estou a conseguir articular isto. É mais ou menos por isso que se escreve um livro de 400 páginas, porque é difícil resumir estas coisas! Mas há algo que ela diz que eu partilho. E não se trata, a meu ver, de uma visão cínica ou pessimista das pessoas e das suas possibilidades. As pessoas são sujeitos políticos, vivem num Estado, estão sujeitas às incursões do Estado. Há pessoas exploradas na nossa realidade, o capitalismo tem vencedores e vencidos. Não vivemos numa realidade ideal, mas as soluções para isto não são claras para mim. O que tenho é o anseio e a noção mais profunda de que pode haver harmonia humana e de que o projeto humano é um projeto sagrado, isso ainda está lá, no sal, no substrato. Mas o caminho exato para o conseguir é, até certo ponto, um desempenho intelectual, um mito e uma história que as pessoas contam a si próprias. Não sou contra o objetivo e a função dessas histórias, mas elas não deixam de ser histórias. Penso que Bruno, por outro lado, está mais enraizado neste substrato. A sua política não é de certo modo grosseira, mas é mais simples. No livro, ele diz que as pessoas tratadas com delicadeza e com amor podem vir a demonstrar estas facetas no seu caráter. Penso que isto pode ser verdade, mas é necessário alguém que possua esse tipo de gentileza para mostrar o caminho. Já testemunhei isso na minha vida, mas eu própria não possuo essa caraterística, de todo. E acho que é por isso que é tão interessante para mim. Fascinam-me as pessoas que têm este tipo de natureza profunda, calma e gentil.
O Lago da Criação tem sido descrito como uma espécie de romance noir ou de espionagem. O que a levou a enveredar por este género de ficção?
Embora não considere o meu romance um noir puro, porque não se enquadra nas regras do género, quis aproveitar um pouco do seu poder, ao construir uma narrativa, um enredo que é na verdade o enredo da protagonista, em vez do autor, dado que a protagonista é uma manipuladora, uma agente provocadora, que pensa que pode “manipular” a realidade e dobrá-la à sua vontade. Existe uma história de espiões que se infiltram em comunas de esquerda e em meios sociais, e a escolha dela como narradora deve-se em grande parte a essa história, a pessoas como Mark Kennedy e a uma agente do FBI na Califórnia que aliciou um jovem ativista ecológico, que esteve 9 anos na prisão federal antes de o seu advogado conseguir provar que ela o tinha aliciado. Estava sempre a perguntar-me qual seria a mentalidade de alguém que finge ser quem não é, para aproximar-se de pessoas que quer prejudicar, e Sadie foi a minha resposta.
Em termos de influências noir, li os romances de Jean-Patrick Manchette antes de escrever O Lago da Criação e, em muitos aspetos, os elementos noir do meu livro são a minha homenagem a ele, escritos, diria eu, num espírito semelhante ao de Manchette, ou a minha versão de tal. Os meus livros preferidos dele são Le Petit Bleu de la Côte Oeste, Nada e Fatale. Por fim, o romance policial de esquerda em França foi parte integrante da história do Maio de 1968. Uns, na sequência do encerramento da possibilidade revolucionária, tornaram-se burgueses. Outros tornaram-se maoístas e mudaram-se para o campo para se organizarem entre os camponeses. E outros, entretanto, tornaram-se… escritores de romances policiais. Com este livro, quis apenas experimentar, tentar algo novo, e divertir-me muito.
Já o mencionou na nossa conversa e está escrito nas primeiras páginas do livro, a ideia do “carro reluzente sem condutor” onde estamos a acelerar rumo à extinção. Este livro partilha muitas das ansiedades que temos neste momento, não apenas aquelas relacionadas com o clima. Parecem ser sobre o nosso futuro e o nosso propósito. Será?
Totalmente, não se trata apenas do clima. Quer dizer, também tem a ver, mas apenas porque essa é a nossa realidade atual. Acho que queria escrever um livro que se sentisse com as texturas do agora. Situei-o em 2013 porque precisava de se passar num ano, no tempo histórico. OK, o presente também é uma realidade histórica, mas escolhi esse ano porque queria que fosse contíguo à época em que vi a polícia francesa fazer uma rusga a um grupo de jovens anarquistas que viviam na zona rural de França, havia bebés a chorar, era de madrugada, eles estavam a usar equipamento militar e levaram todos os livros da biblioteca como “prova” contra essas pessoas. Alguns daqueles que constituíram essa comuna, as suas políticas foram formadas pelo movimento antiglobalização gerado por volta de 2001, por isso quis ambientar o livro num tempo que fosse contínuo com esse tempo. E escolhi 2013 também por uma razão tonta, porque estava a escrever as cenas com a Sadie quando ela vai para Marselha com o Lucien. Eu estive em Marselha no verão de 2013 e, onde quer que se fosse, a Get Lucky [canção dos Daft Punk] estava a tocar. Pensei “nem todos os verões têm uma canção, mas 2013 teve-a”, era tão omnipresente. Por isso, julguei que seria assim que eu diria ao leitor quando é que isto se passa.
Além disso, quando estava a escrever o livro, escolhi este pormenor das megabacias, porque queria que os Moulinard tivessem algo de forte que estivessem a trabalhar com os agricultores para tentar evitar em termos de um projeto industrial agrícola, porque foram essas as pessoas que contrataram a Sadie, obviamente. E inventei tudo isso e construí todo o imaginário porque tenho uma noção da importância da água. Nesta zona que costumo frequentar em França, recentemente, não havia água nos rios, foi sugada por estes interesses agrícolas corporativos. Por isso, fui pegando em bocados e construindo esta realidade. Quando terminei o livro, as megabacias tinham-se tornado de facto num grande problema em França — não na região onde situei a história, mas no noroeste — e foi criado um movimento ecológico chamado Les Soulevements de la Terre [As Revoltas da Terra]. E podemos ir à Internet e ver batalhas campais entre agricultores e a polícia, com ativistas do tipo black bloc a aumentar a parada. São confrontos muito violentos, que se resumem a questões essenciais sobre a forma como a vida pode ser vivida nas zonas rurais francesas. O que é que é sustentável? Quem está a cultivar alimentos? E em que circunstâncias? E depois Emmanuel Macron tentou ir à feira agrícola em Paris e os agricultores colocaram blocos de fardos de palha e incendiaram-nos na autoestrada, bloquearam-na com tratores. Foi como o meu livro, só que era a realidade! O que quer dizer que eu situo o livro em 2013, mas ele é realmente sobre este momento atual e, por isso, queria que o livro tivesse uma textura de realidade contemporânea. Sinto que estamos numa era de tanta descartabilidade, é como se esta estivesse a chover sobre nós a toda a hora. E esta ideia de que a digitalização, de que a Internet é a vida real, mas não podemos fazer upload a nós próprios, não estamos a viver online.
A ação de O Lago da Criação decorre em 2013, uma época em que ainda era possível alguma forma de tecno-positivismo, antes de as redes sociais começarem a ser vistas como um mal social e dos seus magnatas serem encarados como invadindo a Internet para os seus próprios fins. No entanto, um dos temas do livro aponta já para a pulsão pela desconexão deste mundo baseado no digital. Estes temas passaram-lhe pela cabeça quando escreveu o livro?
Não especificamente o tecno-positivismo dessa época, mas isso está sempre presente na minha mente. Acho que o Bruno ou a Sadie dizem a certa altura, não me lembro da frase exata, mas é do tipo “não há inovação que nos livre das amarras em que nos metemos”. Também me sinto assim, mas a questão é que esse tecno-positivismo manteve-se. Agora é como se se tivesse tornado parte da nova onda reacionária global que Trump e Elon Musk representam. Não previ originalmente que o populismo tomaria a forma de tecno-utopismo, mas até certo ponto, agora tomou.
Não costumo falar disto porque me preocupo mais com arte e com os romances do que em comentar os resultados das recentes eleições presidenciais, mas quando falamos com pessoas que acreditam que Trump pode ser a solução para um mundo bastante arruinado… percebemos que muitas pessoas estão a sofrer. Eu não teria previsto que um discurso populista da classe trabalhadora fosse “Elon Musk e a inovação tecnológica podem resolver os nossos problemas, a criptomoeda pode resolver os nossos problemas”. Não sei bem quanto a mim, mas é algo que abordo através do Bruno, o facto de a teleologia do presente como sendo a forma mais avançada de vida humana poder não ser necessariamente uma realidade filosófica correta. Talvez seja um excêntrico, mas acho que o que ele está a fazer é apenas questionar a ideia de progresso. Será que o progresso é realmente progresso? Talvez haja algo de romântico nisso. O que o discurso primitivista e anti-civilizacional quer realmente dizer é que algo se perdeu no caminho. Alguns deles podem ser um pouco românticos, de pessoas como Silvia Federici.
O livro lembrou-me O Princípio de Tudo, de David Graeber, que aborda antropologicamente como nos esquecemos de formas alternativas de vida.
Esse livro saiu depois de eu ter acabado de escrever o meu, por isso não me influenciou, mas tenho a certeza de que Graeber estava a ler muitas das mesmas coisas que li. E também é uma questão que muitas pessoas da esquerda têm colocado: onde é que a humanidade tomou a saída errada? Muito disso é geralmente atribuído ao nascimento da revolução agrícola.
Quanto a isso, a minha pergunta sobre o esquecimento de formas alternativas de viver é que a nossa amnésia coletiva talvez não tenha sido propositada, mas a sua manutenção sim, alimentando esta ideia de que estamos num rumo e só há uma forma de viver, sem alternativa. Como é que resolvemos isto — se é que é algo que tenha de ou possa ser resolvido?
Bem, podemos ler romances, onde os romancistas perfuram a ilusão do progresso e usam as personagens para formar filosofias caseiras sobre realidades alternativas e caminhos perdidos! No caso de Bruno, é esta ideia de que talvez os povos anteriores, que estiveram aqui muito antes de nós, possam ter deixado mensagens para nós, que podemos aprender a interpretar. Lamento, eu sei que esta é uma resposta muito circular, mas acho que é para isso que serve o romance, é para este tipo de especulação artística. E ele tem de funcionar como um objeto artístico, por isso não deve funcionar como polémica, em que eu tenho as respostas e posso dizer às pessoas como devem pensar. Nunca me atreveria, mas posso lançar no teatro do romance uma personagem que pode ter um discurso e talvez ser uma espécie de figura sacerdotal. Se ele acabar por convencer os leitores de alguma coisa — eu nunca tentaria fazer isso! — então é uma forma de fazer o que penso que estás a perguntar, que é ter este tipo de reflexões. Penso que as pessoas têm-nas de qualquer forma. Penso que os jovens sentem atualmente essa chuva que descrevi, essa descartabilidade que cai sobre nós. Acho que não é por acaso que muitos dos músicos mais jovens que conheço querem construir amplificadores de tubo, querem equipamentos antigos. Parte do que estão a fazer é um pouco repisado, mas não faz mal. Acho que parte da razão pela qual é repisado é porque estão a olhar para o passado e a pensar no que perdemos, no que se foi, no que poderiam talvez tocar com as mãos e trazer de volta à esfera do agora, um anseio.
Estava a falar de como, em 2008, a polícia francesa invadiu essa comuna. No livro, a missão de Sadie de desorganizar a La Moulin tem intenções corporativas, mas pensei também noutro aspeto: a forma como o panorama político combativo de hoje significa que a existência de pessoas que seguem outros modos de vida é, em si mesma, uma ameaça a uma certa ordem. Isto aplica-se à vida fora da rede, às pessoas transgénero, aos imigrantes ou às pessoas deslocadas. Como é que chegámos aqui?
[Pausa] Não sei… Quem sou eu para responder a essa pergunta? Tudo o que sei é que estamos aqui… Isto está fora do tema do meu romance, mas quando se menciona a questão das pessoas transgénero, estas são as pessoas mais vulneráveis e inofensivas da nossa sociedade. Por isso, a ideia de que são uma ameaça à realidade dominante é muito estranha. Mas as pessoas sentem uma ameaça e têm de encontrar uma resposta para ela. Neste momento, nos Estados Unidos, a ameaça é a imigração, mas ninguém se apercebe de que, em termos demográficos, o mundo ocidental está a despovoar-se. Quando se olha para as previsões futuras da população em países como o Japão ou a Itália, não há mais jovens.
Sobretudo em zonas rurais como a que descreve no livro.
Especialmente aí, e alguém precisa de fazer esse trabalho. Para ter uma economia funcional, é preciso ter populações imigrantes, é preciso ter trabalhadores de fora. Por isso, há esta repressão e negação da realidade ao pensar que os imigrantes são uma ameaça, quando, de facto, estados como o Texas, o Novo México, o Arizona e a Califórnia dependem inteiramente destas populações para trabalhar. Não sei a resposta a essa pergunta, mas penso que há algo na psique humana que depende de um inimigo — e o inimigo tem um papel e uma função reais, temos que o ter. E às vezes o inimigo também está dentro da pessoa, todos temos uma pulsão de morte.
Disse que quando escreve não-ficção, não o faz a partir de um lugar dogmático ou fixo, porque quer ser transformada por essa viagem de pensamento. Algo semelhante acontece com a ficção?
Mais ainda. A ficção é como o que creio que os lacanianos querem dizer quando se referem à “travessia da fantasia”. Para ter uma boa experiência psicanalítica, são precisos anos, é preciso atravessar a fantasia. Mas eu penso que escrever um romance é isso, no sentido em que acabamos num lugar que é como uma correção, como uma reparação para nós. É um destino totalmente surpreendente, mas parece inevitável e correto. Neste caso, tive um final de livro totalmente diferente do que tinha imaginado no início. Pensei que a Sadie ia ter o que merecia e que os Moulinards teriam a última palavra. Quer dizer, de certa forma, pode dizer-se que eles têm mesmo, porque topam-na, mas pensei que a iam castigar no final. Ia ser um fim duro, brutal e sombrio — como num Edgar Allan Poe, iam fechá-la numa caverna e pronto. Mas quando lá cheguei, pensei “não, não está certo”. Tenho de a deixar respirar e aprender alguma coisa, abrir algum tipo de possibilidade cosmológica para que ela possa ser um verdadeiro sujeito dos ensinamentos de Bruno, mesmo que ele próprio não saiba qual é a resposta certa para o futuro. Por isso, o livro mudou e tudo foi muito transcendente para mim. Portanto, em termos de comparação com a não-ficção, sim, e também não sei as respostas para as coisas. Tenho dúvidas e perguntas e também a minha alegria — e tento usar essas três coisas para fazer algo.
É óbvio que este se trata de um romance que aborda questões políticas, mas o que disse agora também alimenta a ideia que defende, de que os romances não são ou não devem ser políticos. Diz que, em vez disso, eles “tornam visível o que não se vê”.
Quer dizer, à sua maneira, é um pouco político. Eu digo que não são porque não devem ser polémicas.
Ou seja, não devem ser panfletos políticos?
De todo, e o meu romance não tem apenas um ponto de vista. Agora, quanto às pessoas do meio da ultra-esquerda, eu escrevi este livro para elas, porque são as que foram formadas e moldadas pelo movimento anti-globalização que referi e depois pelo assalto dos Tarnac Nine no final de 2008 e pela entrada em cena daquele agente, Mark Kennedy — também conhecido como Mark Stone — e tudo isso. Tenho também o meu próprio marido, que traduziu o trabalho do Comité Invisível [pseudónimo de um autor ou de um coletivo de autores que defende políticas de extrema-esquerda e comunização em França] e a influência de Guy Debord na sua vida. Empregar [no romance] todos estes componentes do pensamento de esquerda ao longo do século XX é, de certa forma, político, porque quantos romances vamos ler que têm estas referências? Mas não se trata de um só argumento para um só ponto de vista. Trata-se apenas de colocar estas coisas na ordem do dia.
E não se limita a “dourar a pílula”. Há menções a comportamentos sexistas na comuna, por exemplo.
A questão é: quem esteve num espaço de organização [de esquerda] sabe quais são os desafios. Mas reparei que as pessoas mais conservadoras ou oriundas do establishment literário liberal, como as pessoas de Nova Iorque, disseram “oh, é um romance cínico”. Não, não é. Se nunca estiveram numa comuna, se nunca tentaram fazer algo assim com outras pessoas, em que partilham recursos, então não lidaram com a luta, porque, como diz Pascal — e eu concordo com ele — a divisão sexual do trabalho reafirma-se nas comunas. Alguém tem de consertar o trator, alguém tem de tomar conta dos bebés e a verdade é que tendem a ser as mulheres a tomar conta deles. Ainda ninguém descobriu como resolver estas coisas, mas incluí-las como pormenores num romance, para mim — e isto também pode ser tido como muito arrogante — mostra que passei realmente algum tempo em comunas e estive nestes espaços, ao passo que talvez alguém que não tenha uma relação com isso pense “ela é cínica, porque este devia ser um espaço muito romântico, porque estas pessoas são apenas um bando de falhados utópicos”.
E o sexismo não se afirma apenas na divisão do trabalho.
Eu vivi isso! Levantei a mesa para que os homens pudessem discutir os salários do trabalho doméstico. Quem é que está a falar do feminismo italiano? Os homens. E depois eu chego e pergunto “querem sobremesa?” E também há a ideia de que existe um inocente mitificado o qual dizemos defender, mas depois podemos ser uns idiotas nas nossas relações interpessoais com as outras pessoas. Isto é apenas parte da realidade. Não estou interessada em denegrir a ultra-esquerda de forma alguma, trata-se apenas de ser realista quanto aos desafios que se colocam às pessoas. Não é assim tão claro qual é a resposta, porque ainda não sei se as pessoas são fundamentalmente boas ou se algumas pessoas são apenas más, mas continuam a agarrar-se a um ideal. E eu não quero tirar-lhes esse ideal só porque o contradizem na sua vida pessoal. Não sei qual é a solução.
Uma caraterística fundamental da sua escrita parece ser o facto de esta se centrar na vida radical, nas pessoas à margem da sociedade e que desafiam as normas sociais. O que é que isso tem de aliciante?
Não sei se é necessariamente aliciante para mim, mas todos escrevemos sobre o que sabemos e eu sou uma criança do século XX. Nasci em 1968, os meus pais eram hippies, andei numa escola pública que foi criada por um grupo de pais e tinha como modelo uma coisa chamada Summerhill, em Inglaterra. Era uma experiência social total. Por isso, quando faço a piada no livro sobre o rapaz que engravida a professora, apercebo-me que isso não aconteceu na minha escola, mas que estou a comentar e a produzir humor gentilmente a partir de uma experiência social de que fiz parte, da qual sou um produto. E, de certa forma, foi uma coisa bela. Funcionou para mim, não funciona para toda a gente, porque algumas pessoas precisam de estrutura. Quando atingi a maioridade nos anos 80, assisti ao desenrolar das guerras morais do meu tempo na América Central — depois da revolução na Nicarágua, havia uma grande esperança para os sandinistas; a minha mãe cresceu em Cuba e também aí houve uma revolução. Depois vieram os anos 90 e a Califórnia — sendo eu californiana — empreendeu o maior projeto de construção de prisões de que há memória na história do mundo. Cresci com pessoas que foram para a prisão e perguntei-me “porque é que vão eles e eu não? É muito doloroso ver que o nosso destino é tão diferente do dos nossos amigos só porque os nossos pais nos amaram. Acho que fui moldada por pessoas com políticas mais à esquerda, e eu própria partilho essas políticas, mas cresci numa altura em que os movimentos de libertação nacional tinham moldado o nosso mundo.
Tudo isto para dizer que escrevo sobre circunstâncias históricas. Não sou uma escritora, é verdade, que se interesse sobretudo pelo tipo de drama doméstico tranquilo, como escrever sobre o casamento ou o divórcio ou sobre a minha própria vida ou sobre autoficção. Não sei, não consigo explicar bem, mas interesso-me pelo mundo. Sou uma escritora virada para o exterior e que faz relatórios desse mundo. As coisas que me perguntaste são sobre as grandes tensões em que vivemos. Penso que muitas pessoas foram excluídas dos benefícios do mundo atual e, por isso, escrevo, de certa forma, sobre essas exclusões.
Citou noutras entrevistas aspectos específicos dos romances de Cormac McCarthy e Don DeLillo como inspiração para este livro. Com que frequência recorre ao cânone — e como pensa que o seu trabalho será avaliado em relação a ele?
Não sei bem o que é o cânone, há muitos cânones. Sobre a obra de DeLillo e McCarthy, já li todos os romances de ambos, mas vou lendo de vez em quando. Escrevi prefácios para o trabalho de ambos os escritores — para uma edição de Submundo e uma edição da Trilogia da Fronteira [composta por Belos Cavalos, A Travessia e Cidades da Planície]. No caso de DeLillo, é quase estranho nesta altura ler o seu trabalho, porque ele tem sido um mentor para mim nos últimos 15 anos e, por isso, a sua influência é também pessoal. Vou vê-lo na próxima semana ao almoço. O primeiro romance de Cormac McCarthy, Filho de Deus, foi, estranhamente, uma inspiração para mim quando estava a estruturar O Lago da Criação, por causa dos seus capítulos muito curtos, a forma como cada pequena secção faz avançar o leitor tem um tipo específico de compasso e de tempo, e eu queria produzir a minha própria versão do que ele estava a fazer com essa extensão de capítulo, e essa foi provavelmente a fonte para escrever estes capítulos muito curtos, em vez de outros mais longos que têm dentro deles movimentos mais pequenos. Queria que cada capítulo curto terminasse abruptamente em algo como à beira de um penhasco, e que incentivasse ou mesmo empurrasse o leitor para a secção seguinte.
Entretanto, outras pessoas disseram-me que O Lago da Criação lhes fazia lembrar Os Nomes, de DeLillo. Talvez seja name dropping, mas foi especificamente Karl Ove Knausgard que me isso, o que foi muito lisonjeiro. Creio ter uma ideia do porquê: Os Nomes é um romance em que o antigo se intromete no contemporâneo, irrompe para perturbar o contemporâneo e, de certa forma, O Lago da Criação partilha isso. Enquanto o estava a escrever, pensei “esta é uma fase em que me encontro que é vagamente semelhante à fase em que DeLillo estava quando escreveu esse livro”. O facto de Karl Ove o ter dito em voz alta foi muito gratificante. Em termos de comparação, não faço ideia. Penso em ambos os escritores como muito especiais e como uma classe acima de todos os seus pares. McCarthy faz com que a maior parte da literatura contemporânea pareça branda em comparação. DeLillo é o escritor americano mais engraçado, o mais propenso à ironia, e antecipou o futuro. Sinceramente, acho que não faz sentido responder a tal pergunta: cabe à história determiná-lo. Mas também, estar convencido da sua própria grandeza parece-me não só indecoroso, mas também incapacitante. Apontar às estrelas exige humildade, não arrogância.
Estamos a falar apenas alguns dias depois do anúncio do vencedor do Booker Prize, do qual foi finalista. Já ganhou alguns prémios, foi shortlisted noutras ocasiões, mas já disse que tenta não prestar muita atenção à força gravitacional deste tipo de reconhecimento. Como é que se relaciona hoje em dia com este aspeto da indústria?
A arte é a minha religião e não a faço por recompensas sociais, por aquilo a que Proust chamaria os benefícios “mundanos”, que são uma espécie de vazio de estatuto. É maravilhoso ter leitores e poder escrever livros. Para alguns escritores, o prémio Booker pode ser muito importante. Mas já tenho uma carreira que me permite fazer o trabalho que quero. Todo o sucesso crítico é apenas um meio para poder fazer arte — o que, felizmente, sou capaz de fazer. Mas também não sou o tipo de pessoa que quer coisas as quais não consigo controlar. Ser assim parece-me demasiado indigno. Planeei deliberadamente a minha presença no LEFFEST para o dia a seguir ao prémio, porque queria não ganhar e vir a Lisboa, fazer parte do mundo do Paulo Branco, que é um mundo de arte e de gosto, e não de celebridade e de superficialidade.
Em que projetos está a trabalhar agora?
Acabei de escrever um ensaio de onze mil palavras para a revista Harper’s sobre a história do hot rodding e do drag racing na América, que vai sair em dezembro. Para além disso, estou a tentar sobreviver a esta digressão de promoção ao livro, que não tem fim. Eventualmente, espero escrever um romance e tenho uma ideia para ele, mas não tenho tido tempo, ou privacidade, para aprofundá-la.