Se esta é uma história de reis e rainhas, pode bem começar por um palácio e esse palácio é Buckingham, uma das principais atrações turísticas de Londres, residência oficial dos soberanos do Reino Unido desde inícios do século XIX, local onde são recebidos chefes de Estado e de governo de todo o mundo. Foi um dos lugares fundamentais na vida da rainha Vitória. Quis o acaso que aquele solar de 1703, reconstruído a partir da década de 1820 pelo arquiteto John Nash a pedido de Jorge IV, fosse finalmente inaugurado em 1838 como palácio e que nele habitasse como primeira monarca britânica a improvável Vitória, nascida há precisamente 200 anos – mulher de infância austera e infeliz, quinta na linha de sucessão e ainda assim rainha, a soberana mais rica do mundo à conta de um poderoso império colonial (onde se dizia, como de outros impérios se disse, que o sol nunca se punha, tal a extensão planetária).
Buckingham foi bem a marca de um reinado longo – o mais longo de sempre, 63 anos e sete meses, ultrapassado agora pelo de Isabel II, a caminho de 68 anos de trono. Na opinião de alguns historiadores, Vitória (1819-1901) fez do palácio o centro da vida social, cultural e política do Reino Unido e foi habitá-lo quando as obras nem estavam completas porque talvez tivesse urgência em sair de Kensington, onde nunca tinha sido feliz. Transformou o edifício em residência real, ali nasceram oito dos seus nove filhos, e é símbolo máximo da monarquia britânica até hoje.
Essa nova vida de Buckingham foi também a nova vida de Vitória e correspondeu a um dos períodos mais prósperos do país, com direito a nome próprio: a época vitoriana. Será por isso que o aniversário do nascimento da rainha é agora assinalado em diversos quadrantes, desde logo na área cultural. Há uma exposição biográfica no Palácio de Kensignton; outra exposição no Museu Victoria & Albert com novas peças de joalharia que pertenceram à monarca, incluindo uma coroa de safiras e diamantes; um espetáculo de dança no Northern Ballet com coreografia de Cathy Marston.
De resto, Vitória é um ícone bastante popular e por tem sido objeto de diversas obras de ficção: na literatura, no cinema, na televisão. Em 2017 ultrapassou Sherlock Holmes como personagem mais vezes retratada no grande ecrã, com 25 longas-metragens. A série televisiva “Vitória”, da PBS, com transmissão na plataforma de “streaming” Amazon Prime Video, é um dos exemplos recentes e já vai na terceira temporada (a primeira foi transmitida pela RTP).
Infância vigiada
Mas, comecemos pelo início. Vitória, que hoje podemos descrever como trisavó de Isabel II, era filha da princesa Vitória de Kent, e de Eduardo (quarto filho de Jorge III). Alexandrina Vitória, assim a batizaram, nasceu dias antes do casamento dos pais, a 24 de maio de 1819, no Palácio de Kensington, localizado no centro de Londres (junto ao famoso Hyde Park), que desde o século XVII servia de residência à família real britânica, primeiramente com Guilherme de Orange e Maria II. Kensignton é hoje morada oficial dos duques de Cambridge, William (filho de Diana) e Kate Middleton, que subirão ao trono depois do príncipe Carlos.
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À nascença, era quinta na linha de sucessão à coroa britânica, mas a morte do avô e a ausência de outros descendentes diretos fizeram-na rainha. Se a primeira infância terá sido graciosa, incluindo atividades ao ar livre, à medida que se tornou óbvio ser ela a próxima monarca confinaram-na a uma existência solitária e pouco feliz. Austera, certamente. O pequeno-almoço consistia em pão, leite e fruta, nada mais, escreveu no início do século XX a académica americana Eva March Tappan, no livro juvenil “In the Days of Queen Victoria”. As dívidas herdadas do pai não facilitaram a vida da família.
Na ausência de crianças da sua idade no palácio, exceção feita à meia-irmã Feodóra, a pequena Vitória encontrava nas bonecas de madeira o máximo divertimento. Era obrigada a dormir no quarto da mãe, a princesa Vitória de Kent, de origem germânica, outra mulher solitária, perdida entre a realeza britânica, com quem não se dava e cujo idioma nunca aprendeu. Sobretudo desde a morte do marido, em 1820, ou seja, praticamente desde que a futura monarca nascera, a mãe foi dominada pelo conselheiro John Conroy, que tinha trabalhado como assistente de Eduardo. Conroy ainda hoje aparece descrito como um homem manipulador, amante de Vitória de Kent, diziam os boatos, e foi ele quem decidiu tudo sobre a educação da rapariga – o chamado “Sistema de Kensington”. Esperava manter o ascendente um dia que Vitória fosse rainha, mas enganou-se.
Vigiada e controlada, a pequena princesa comia muito e de maneira desenfreada e começou a ganhar peso, imagem que manteria o resto da vida. Encontrou no tio Leopold uma figura de referência, mas este tornou-se rei dos belgas em 1831 e a relação tornou-se obviamente distante. A governanta Louise Lehzen foi uma aliada contra o ambiente opressivo da infância e adolescência e deu-lhe aulas de francês, alemão e italiano, de desenho, dança, canto e piano. A futura rainha, relatam hoje as biografias, era resiliente e determinada e conseguiu fazer da perversa educação que lhe deram uma arma contra amizades de circunstância.
Rainha e finalmente livre
Poucas semanas depois de ter completado 18 anos, soube que a queriam no trono. O rei Guilherme IV, tio de Vitória, morre na madrugada de 20 de junho de 1837 e às primeiras horas da manhã entram em Kensignton o Arcebispo de Cantuária e Lord Conyngham (oficial da corte). Pedem para falar com a princesa e comunicam-lhe, a sós, que é ela a rainha. “Lord Conyngham ajoelhou-se e beijou-me a mão, ao mesmo tempo que me anunciava o triste desaparecimento do rei”, escreveu a princesa num diário, hoje disponível para consulta pública na versão que deve constar. Mostrava já aí uma rara determinação. “Sou muito jovem e inexperiente em algumas coisas, mas não em todas, e tenha a certeza de que muito poucos como eu têm a genuína boa vontade e o genuíno desejo de fazer o que é certo e”, acrescentou.
Oito dias depois, a cerimónia de coroação. Rezam as crónicas que 400 mil pessoas se juntaram nas ruas da capital inglesa para assistirem à cerimónia, que decorreu na Abadia de Westminster e durou cinco horas. E reza o diário da própria rainha que a cerimónia ficou marcada pelo inusitado: o arcebispo não lhe entregou o orbe no momento certo (o globo encimado por cruz, um das insígnias reais) e colocou-lhe o anel no dedo errado. Consta que demoraram uma hora para tirarem o anel do anafado dedo da rainha.
Um mês depois, mudou-se para Buckingham, ainda que muitas salas não estivessem sequer decoradas ou mobiladas. Os ministros aconselharam-na a ficar em Kensignton, até Buckingham estar pronto, mas ela não lhes deu ouvidos, de acordo com a versão oficial. Começava a exercer a liberdade – e o poder. No que tem sido entendido como uma vingança, ordenou à mãe que ficasse a viver numa zona confinada do palácio e proibiu Conroy de ali entrar. Fez do primeiro-ministro, Lord Melbourne, o homem de confiança, ou mesmo amante.
A paixão por Alberto
Mas seria outro homem a fasciná-la e com este se casaria: o primo Alberto, escolha preferida do tio Leopoldo. No diário, escreveu Vitória em 1839: “É um homem muito elegante, extremamente bonito, largo de ombros e de cintura fina, o meu coração está tomado.” A 10 de fevereiro de 1840 deram o nó e até ao fim mantiveram-se como casal exemplar, encarnaram os valores conservadores da época, com Vitória a defender que o papel mais importante das mulheres britânicas seria o de mulheres e mães.
A paixão pelo marido terá marcado tanto a vida da rainha que apesar dos períodos depressivos que enfrentou, principalmente a seguir ao nascimento dos filhos, viu nele um apoio fundamental, até mesmo na governação, pois a certa altura Alberto também estava presente nas reuniões com os ministros. Ele foi “o principal e mais confiável conselheiro” da rainha, segundo o registo oficial da Casa Real britânica.
O casal parecia admirar a vida social e tirava partido da era de expansão industrial, económica e cultural que o Reino Undo então vivia. No Palácio de Buckingham, organizaram três famosos bailes que serviram de montra das capacidades da indústria têxtil britânica, com os convidados a exibirem elaboradas vestes. Em 1851 inauguraram a Grande Exposição de Londres, que daria origem ao hoje muito conhecido museu de design e artes decorativas Victoria & Albert. “Foi um dos melhores dias das nossas vidas”, anotou a rainha. A mostra consistia em feira de artes, design e tecnologia e teve lugar no Hyde Park, numa estrutura de ferro e vidro que ficou conhecida como Palácio de Cristal.
[filme raro da chegada da rainha Victoria a uma receção em 1898]
Moral e bons costumes
De alguma forma, aqueles eventos estariam ligados à ideia de uma certa moral vitoriana, que dominou o século XIX não só em Inglaterra, na crença de que o progresso material e espiritual da sociedade deveria ser mantido na base da veneração da disciplina, o que ajudaria a máquina industrial a manter-se, ao mesmo tempo que a repressão dos instintos se tornava norma, desde logo os instintos sexuais, por estes conduzirem à dispersão e talvez a ideias revolucionárias, como então se entendia.
“Embora conservadora em algumas áreas – opunha-se ao voto das mulheres, como muitos naquela época –, foi favorável a medidas que melhoraram a vida de muitos pobres, como a criação de uma comissão real da habitação”, lê-se no site da Casal Real. “Também apoiou muitas instituições de beneficência ligados à educação e aos hospitais.” Ao mesmo tempo, informa a Enciclopédia Britannica, Vitória gostava de ler Charles Dickens, era patrona de alguns circos e fugia ao gosto mediano da época, pois admirava, juntamente com o marido, pinturas e esculturas que representassem o nu.
Na certeza de que correm muitas versões sobre a vida da soberana, e nenhuma delas poderá ser a definitiva, historiadores têm vindo a rever algumas interpretações, nomeadamente aquela de que a rainha encarava os filhos como fardos e realmente não gostava deles, preferindo dedicar-se à relação com o marido. Em 2014, a investigadora Yvonne M. Ward concluiu (no livro “Censoring Queen Victoria: How Two Gentlemen Edited a Queen and Created an Icon”) que as cartas de Vitória publicadas em três volumes no início do século XX foram em grande medida um trabalho de ficção, sob os auspícios do rei Eduardo VII, pois suprimiram quer as visões mais determinadas da monarca em termos políticos quer as preocupações maternais que teria – inclusivamente manifestadas na correspondência com D. Maria II, a rainha portuguesa de quem foi próxima e a quem escrevia em francês.
A morte precoce de Alberto aos 42 anos, em 1861, marcaria o reinado e afetaria o equilíbrio psicológico da rainha. Deixou de aparecer em público, o que lhe valeu críticas em vários setores, e até 1867 nem marcou presença na abertura dos anos parlamentares, uma prática regular que ela própria tinha criado. Passou a vestir de negro e assim fez até ao fim dos seus dias. Morreu a 22 de janeiro de 1901, já o século do povo tinha nascido.