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"Nós temos o poder de transformar pessoas e isso faz-me mesmo sentir bem", diz-nos Raquel André
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"Nós temos o poder de transformar pessoas e isso faz-me mesmo sentir bem", diz-nos Raquel André

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

"Nós temos o poder de transformar pessoas e isso faz-me mesmo sentir bem", diz-nos Raquel André

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Raquel André não sabe se é atriz: sabe que está no teatro "para criar o impossível"

Estreia-se no Teatro Nacional D. Maria II a "Coleção de Espetador_s", o mais recente capítulo de uma artista que parte do colecionismo como método criativo para decobrir a vida de novas pessoas.

Um dia, na Escola Superior de Teatro e Cinema, encontrou, com Tiago Cadete, uma caixa de papelão que continha 350 cartas de correspondência familiar. Epifania: isto é arte. Nova epifania: como é que isto é arte? Foi aí que Raquel André, embora talvez ainda não soubesse, se tornou colecionadora. Em 2014, com Coleção de Amantes, quis pensar o que é a intimidade, o que é uma casa, numa altura em que vivia no Brasil, sentia no corpo o que era ser emigrante — durante alguns períodos ilegal — a saltar de morada em morada como quem muda de calças. Depois, em 2016, quis fazer uma Coleção de Colecionadores, conhecer aqueles que como ela tinham esta coisa de guardar objectos, memórias, sensações.

Dois anos mais tarde, decidiu que era tempo de gravar no seu corpo gestos de outro grupo de pessoas que também são seus pares e fez a Coleção de Artistas. Agora, esta sexta-feira, 16 de julho, no Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII), estreia Coleção de Espectador_s, última coleção, onde junta em palco gente que por norma habita a plateia. Fez uma open call para convocar espectadores a participar numa série de oficinas que gerariam o grupo que agora consta da ficha artística. Antes disso, já tinha criado um site, um outro projeto que contaminou este novo espectáculo, onde sugeria que as pessoas respondessem a uma série de desafios/instruções [“Coleciona Alguém”; “Deixa-me guardar-te”; “Diz-me o que é urgente”] e se revelassem enquanto espectadores.

Raquel André, que chega a dizer “eu não sei se sou atriz”, sabe muito bem que é criadora e sabe perfeitamente onde mora o seu discurso. Quer encontrar o outro, o desconhecido, quer estar como já não se está. Já em criança a mãe lhe dizia que havia de ser socióloga, mas o teatro amador, iniciado por volta dos 9 anos, gritava demasiado alto. Chocou-se com o ensino artístico em Portugal, ao ponto de se sentir deslocada, “não me identificava com aquela coisa das personagens e não tinha jeito nenhum”, afirma. Terminada a licenciatura, fez de vampira numa telenovela e pouco depois partiu então para o Brasil, onde, apesar de ter vivido momentos complicados, havia de se encontrar, fazer um mestrado e descobrir a sua voz artística, que não deixa de ser uma voz política, sempre de flecha apontada ao mundo racista, homofóbico, machista. É uma das artistas portuguesas com uma assinatura mais distinta e que devemos, também nós, colecionar na nossa caderneta.

"Coleção de Espectador_s" está em cena no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, de 16 a 18 de julho, sexta, sábado (19h) a domingo (16h)

Antes de ser colecionadora e artista já havia uma Raquel André, certo?
Quando se estreia a Coleção de Amantes estava no Brasil e esse é um ponto de viragem na minha vida como artista, como mulher. Fui para o Brasil fazer uma residência artística de cinco meses e acabei por ficar sete anos.

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O que aconteceu?
Em 2011, quando fui para o Brasil, Portugal estava numa grande crise económica e social e de repente não tinha perspetivas nenhumas de trabalho cá. Fui com o INOV-ART [antigo programa de estágios internacionais para jovens, no domínio cultural e artístico], mas não durou um ano porque o Governo caiu. O meu objetivo era voltar, mas o Brasil estava a viver um período de ascensão, quando cheguei o Lula ainda estava no poder, depois acompanhei as eleições da Dilma, os jogos olímpicos, o campeonato do mundo de futebol, muitos editais artísticos, comecei a ter muito trabalho,

Ainda que a vida de emigrante não tenha sido sempre fácil…
E a verdade é que não trabalhei muito como criadora no Brasil, fiz muitas assistências de encenação, trabalhei com uma diretora da Cia. dos Atores que conheci quando eles vieram ao CCB, a Bel Garcia. Fiz sete espectáculos com a Bel e depois outro ator da companhia, o César Augusto, estava a começar um projeto na Gamboa, um bairro nos arredores do Rio de Janeiro que tem quatro favelas à volta. Era um projeto de filantropia do Marco Nanini, um ator muito importante no Brasil. Ele comprou um espaço e criou uma ONG. O César Augusto foi convidado para gerir e convidou-me para ser assistente dele. Fiz curadoria durante quatro anos nesse espaço, o que me fez aprender muito sobre produção, programação, fiz um pouco de tudo e lidei com quase todas as companhias do Rio de Janeiro. O objetivo ali era trazer espectáculos do centro do Rio de Janeiro, mais mainstream…

"Às vezes as pessoas dizem 'ah, tu és atriz', eu não sei se sou atriz. Não me identificava com aquela coisa das personagens e não tenho jeito nenhum. Depois sou disléxica, coisa que só descobri mais tarde, aos 30. Era muito violenta a forma como o ensino acontecia, aquela coisa do 'ter de fazer bem', ter de 'interpretar bem'."

Levá-los até à periferia.
Sim. As pessoas da comunidade tinham preços muito reduzidos para ver espectáculos, fazíamos ali um cruzamento de públicos, pessoas que não conseguiam fazer espectáculos durante a temporada nos grandes teatros do Rio iam de repente para a Gamboa. Aquilo virou um espaço de encontro incrível, transformámos completamente o Galpão Gamboa que ainda hoje existe com um projeto social muito forte, basicamente a criar cabazes de comida para oferecer às famílias durante a pandemia. Eles foram os meus pilares no Brasil. Depois passaram-se várias coisas, fiquei ilegal, porque a bolsa do INOV-ART dava-me visto, mas passado cinco meses fiquei sem visto… Enfim, tive assim várias peripécias, estive ilegal um ou dois anos e depois lá conseguia um visto num esquema qualquer, até que não consegui mais vistos. E um dos esquemas era inscrever-me numa escola e ter visto de estudante. Mas eu vinha traumatizada da Escola Superior de Teatro e Cinema…

Porquê?
Correu muito mal. Hoje acho que consigo perceber… Às vezes as pessoas dizem “ah, tu és atriz”, eu não sei se sou atriz. Muitos criadores passam por aquele lugar, mas a formação daquela escola é para atores, não dá formação para criadora.

Talvez só no mestrado…
Sim e naquela altura nem existia. Eu acabei em 2009.

Ouça aqui a entrevista de Raquel André na Rádio Observador.

Colecionar espectadores “dentro do próprio corpo”

Lidou mal com essa imposição de uma formação para intérpretes e não para criadores.
Não me identificava com aquela coisa das personagens e não tenho jeito nenhum. Depois sou disléxica, coisa que só descobri mais tarde, aos 30. Era muito violenta a forma como o ensino acontecia, aquela coisa do “ter de fazer bem”, ter de “interpretar bem”.

Contracenar com o lápis, coisas assim.
Ouvi o “tu nunca vais ser atriz, não vais conseguir”. A educação artística para mim foi sempre um lugar de resistência. Ainda assim, foi na ESTC que comecei a criar. Dentro da escola, via o potencial, tínhamos imensas salas, juntava-me com o Tiago Cadete, que era da minha turma, a nossa primeira criação foi em 2009, precisamente nesse contexto, mas com outros, a Catarina Bernardo, o Bernardo Zabalaga, experimentar, no fundo. Entrei para a Associação de Estudantes, ou seja, envolvi-me, mas supostamente não era para ser atriz. A verdade é que quando acabou a escola em 2009 e não havia trabalho nem perspetivas nenhumas para trabalhar como atriz, o convite que tive foi para fazer novelas. E isso deixou-me… Não, eu não quero fazer novelas, quero resistir, um preconceito ridículo, e também com medo de ser uma miúda e de começar a fazer novelas e não vou fazer mais teatro, como se as novelas me fossem estragar o futuro. A questão é que não tinha dinheiro, nem trabalho, então durante um ano acabei mesmo a fazer novelas, acho que em 2010.

"Em 2009, na escola, encontrámos uma caixa de papelão com cartas escritas, a correspondência de uma família, umas 350 cartas. Começou aí a minha relação com o arquivo"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Como é que foi?
Foi uma aprendizagem brutal, fiz de vampira [“Vânia”, em “Lua Vermelha”]. Conheci pessoas maravilhosas, percebi como é que a máquina funciona e de repente já tinha outros convites, a coisa estava a rolar. Mas surgiu a oportunidade de ir para o Brasil e acho que foi uma boa mudança de rumo.

Dizia há pouco que o esquema para tentar salvaguardar o visto no Brasil foi entrar numa universidade brasileira.
Falaram-me de um novo mestrado artístico, ia ser o primeiro ano e só com a inscrição já conseguia o visto. O meu esquema foi inscrever-me, sabendo que não queria estudar, só queria fugir da academia. Mas para isso tinha de fazer umas provas e nas provas quando conheci as professoras e assim foi incrível, entusiasmei-me, estudei muito, fiz as provas e entrei. E quem entrasse em primeiro lugar ganhava a bolsa e eu entrei em primeiro lugar.

De ilegal a bolseira.
De repente tinha a vida feita, ou seja, estava assim com tudo organizado. Tinha uma professora que era a Eleonora Fabião, que já admirava pelos trabalhos e pelo pensamento artístico e político, pedi-lhe para ser a minha orientadora. E depois ainda concorri à bolsa da Gulbenkian, ganhei e deixei a bolsa de lá para outro aluno. Basicamente, foi o mestrado no Brasil que me deu esta coisa de ser uma criadora e querer pensar na criação, deu-me essas ferramentas.

O mestrado é também, julgo, a primeira pedra nesta coisa do colecionismo.
Aconteceu antes, com o Tiago Cadete. Em 2009, na escola, encontrámos uma caixa de papelão com cartas escritas, a correspondência de uma família, umas 350 cartas. Começou aí a minha relação com o arquivo, foi aí que comecei a pensar no colecionismo integrado nas artes performativas. Não estava propriamente interessada na coleção, mas a pensar como é que aquilo se poderia transformar num espectáculo. E ia ver outros artistas que o faziam. A Mala Voadora tinha na altura alguns trabalhos sobre colecionismo. Quem vem de um teatro de texto, de repertório, de repente aquilo podia ser teatro. Eu e o Tiago fizemos assim três trabalhos a partir da ideia de coleção. Percebi que o importante era a questão do efémero, uma coleção não é só o objeto, é sobre a história que o objeto carrega. Foi isso que me motivou e acabou por ser o tema da minha tese de mestrado.

"Comecei com a 'Coleção de Amantes'. É a primeira coleção. O que significa 'casa', o que significa 'intimidade'? Acho que isso vem do meu movimento como emigrante. No Brasil vivi em 14 casas diferentes porque estava ilegal e não conseguia fazer contratos, situações que os emigrantes vivem em todos os países."

E pensar que tudo começou como um esquema…
Sim… Mas toda a experiência de estar a viver num outro continente, num país que fala a mesma língua, ainda que me tenha sentido sempre bilingue, fez com que me tivesse sentido europeia pela primeira vez. Ganhei outra perspetiva sobre a História. E ao mesmo tempo o Brasil a viver um empoderamento político enorme. Dentro da Academia havia um engajamento maior, tudo isso me transformou. Tornei-me melhor pessoa, mudei a forma como me relaciono com o facto de ser mulher, artista, branca. Mudou até a forma como me relaciono como o meu corpo. Tudo isso aconteceu nessa altura. As manifestações dos “20 Centavos”… Fomos todos para a rua, tive de fugir do gás lacrimogéneo, houve manifestações super violentas. Nessa altura, ainda estava ilegal e comecei a ter algum medo, tive duas colegas deportadas. Enfim, era tudo na pele.

E estava a transformar-se porque ninguém ficou igual depois de viver momentos sociais dessa dimensão.
Exatamente. E todo o conhecimento académico na UFR [Universidade Federal do Rio de Janeiro] com aquelas professoras, com aquela turma e com aquela vivência pessoal fez-me chegar à Coleção de Amantes. É a primeira coleção. O que significa “casa”, o que significa “intimidade”? Acho que isso vem do meu movimento como emigrante. No Brasil vivi em 14 casas diferentes porque estava ilegal e não conseguia fazer contratos, situações que os emigrantes vivem em todos os países.

E a origem está de facto aquela caixa que encontrou com o Tiago Cadete na ESTC ou na sua juventude já existia indícios desse colecionismo?
Nada, nunca acumulei muita coisa, acho que as coleções são uma desculpa, porque o que já havia era um interesse sobre histórias de pessoas, conhecer pessoas. A minha mãe dizia sempre que eu tinha de ir para socióloga, ajudar as pessoas. Primeiro tentei entrar na ESTC nas provas e entrei em Sociologia. Um desespero, porque já sabia que queria ir para o teatro. mas comecei a fazer teatro muito cedo, com 9 ou 10 anos entrei para um grupo de teatro amador, em Famões, de onde sou, na zona de Odivelas.

Voltando a esta espécie de trajeto de que estávamos a fazer: acaba por regressar a Portugal.
Em 2014 vim passar uns dias a Portugal.

"É impossível conhecer alguém na sua totalidade. É maravilhoso, ao mesmo tempo que me irrita, porque gostava mesmo às vezes de perceber o que se passa dentro das pessoas"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Tinha mil euros na conta.
Sim. Cheguei a ficar quase dois anos sem vir cá, fazer mil euros em reais não era fácil, eu ganhava… sei lá, mil reais por mês, portanto não era mesmo fácil. Vim a Portugal num Natal, acho, e fui ver o “By Heart” do Tiago Rodrigues e outros espectáculos em Viseu. Já conhecia o trabalho do Tiago, já tínhamos uma relação. Até porque já andava a colecionar encontros com amantes, mas nunca tinha pensado naquilo como um espectáculo, para mim os encontros com amantes já eram um ato performativo, já me satisfaziam. Tinha uma amiga que trabalhava com o Mundo Perfeito e tinha um festival que era o Festival Condomínio, que acontecia dentro de casas de pessoas. Ela perguntou se eu não queria colecionar amantes lá no festival. Estava num apartamento e as pessoas vinham ter comigo. Um dia abri a porta e um dos amantes era o Tiago Rodrigues. A seguir, abri a porta e era a Magda [Bizarro, parceira de vida e de trabalho do futuro diretor do Festival d’Avignon]. Eles foram meus amantes, um ano depois é quando eu vou lá a Viseu ver o espectáculo. Fiquei super emocionada e o Tiago, no fim do “By Heart”, diz-me que precisa de falar comigo, já sabia que ia para o Teatro Nacional e queria que eu abrisse a temporada na Sala Estúdio com a Coleção de Amantes. Disse-lhe que não era um espectáculo e ele disse: “Ah, mas vai ser”. Eu ainda morava no Brasil, vim para cá em julho e agosto de 2015 e estreei em setembro. Correu muito bem. Estava a acabar o mestrado, o meu último capítulo do mestrado já é sobre a Coleção de Amantes e nisto surge a Coleção de Colecionadores. Pensei: agora tornei-me uma colecionadora, tenho de conhecer estas pessoas.

Fixa-se em Portugal em 2017.
Sim, e o Teatro Nacional concorreu para uma rede europeia, a APAP [Advancing Performing Arts Project], da qual fazem parte 11 teatros da Europa. Convidaram-me para ser a artista associada e isso foi um grande suporte. Foi a primeira vez que tive um convite, que não era diretamente um convite financeiro. Ou seja, eles não me estavam a dar dinheiro, mas ter uma rede que nos próximos quatro anos me poderia apoiar, consoante as minhas necessidades, mudou muita coisa. Foi quando consegui pensar em trabalho a longo prazo e isso nunca tinha acontecido.

Começa a existir uma perspetiva.
Sem dúvida. Em 2017 desenho as restantes coleções: Amantes, Colecionadores, Artistas e Espectadores.

Então não foi um processo gradual de descoberta, foi muito mais planificado, pelo menos nas últimas duas.
Foi um misto. Na Coleção de Amantes, na primeira estreia, juntei logo espectadores nessa noite, porque lhes pedia para se fotografarem. Já estava a pensar que teria de fazer depois qualquer coisa com aquilo. Mas, ao mesmo tempo, estava a conhecer-me enquanto criadora. Não sou atriz, sou artista, o que é que aconteceu?

"Lembro-me de um técnico, num dia em que tudo estava a ser difícil de montar, dizer a um colega: “Pá, isto é impossível”. E o outro respondeu: “Mas o que nós fazemos é sempre impossível”. Ou seja, o teatro é impossível, o que fazemos é tornar possível coisas completamente artificiais, tornar possível o impossível."

Há pouco dizia que esta coisa do colecionismo como metodologia artística se relaciona com a curiosidade, com a vontade de conhecer pessoas. Nesse sentido, colecionar amantes, colecionadores, artistas e espectadores, é a mesma coisa?
É, mas por portas diferentes. E é impossível conhecer alguém na sua totalidade. É maravilhoso, ao mesmo tempo que me irrita, porque gostava mesmo às vezes de perceber o que se passa dentro das pessoas. Às vezes está tudo muito cruzado, tive muitos momentos de intimidade com os colecionadores. Então, mas porque é que eles não são artistas se são colecionadores? O que é que faz de mim artista? Por exemplo, um colecionador que tem uma fábrica cheia de objetos, ele coleciona objetos repetidos, num espaço que parece um museu. E disse: “Não sou artista, não exponho para mostrar aos outros, exponho para mim, isto é para mim, para eu me organizar”.

Para esta mais recente coleção, a Coleção de Espetador_s, que agora se estreia, se assumirmos que uma das suas casas é o teatro, a Raquel está a fazer o oposto do que fez na Coleção de Amantes, porque aí procurava a sua casa em espaços íntimos. Agora, em jeito de conclusão, diz qualquer coisa como: venham aqui que eu mostro-vos como é a minha casa.
Numa das versões do final fui por aí, como é que me sinto em casa no teatro, às vezes como espectadora. Já me aconteceu estar angustiada, seja por que razão for, mas depois durante aquela hora e meia está tudo bem. Sempre que estou no teatro adoro assistir a montagens, a parte deste espectáculo em que faço essa viagem pelos trabalhadores do TNDMII é precisamente pelo que já aprendi em momentos de montagem. Lembro-me de um técnico, num dia em que tudo estava a ser difícil de montar, dizer a um colega: “Pá, isto é impossível”. E o outro respondeu: “Mas o que nós fazemos é sempre impossível”. Ou seja, o teatro é impossível, o que fazemos é tornar possível coisas completamente artificiais, tornar possível o impossível. Aquilo marcou-me imenso. O nosso trabalho é criar coisas que são impossíveis, que distraem as pessoas, que alimentam o conhecimento. Nós temos o poder de transformar pessoas e isso faz-me mesmo sentir bem. E, portanto, sim, venham a esta casa, esta casa também é vossa, é um movimento político de proporcionar a aproximação entre as pessoas e estas instituições que parecem e são, claro, algumas mais do que outras, engessadas, que separam o artista do espectador e para mim era mesmo o contrário. A casa é a mesma.

"Enquanto criadores temos de fazer o exercício de perceber quem somos, mas enquanto espectadores também temos de ter essa consciência"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Antes dos ensaios, a Raquel fez oficinas que serviram para encontrar os espectadores que vão estar consigo em palco. O que esperava encontrar? Como foi o modo de seleção?
Fizemos três oficinas: no Centro Cultural Malaposta, na Casa da Cultura de Setúbal e depois no TNDMII. As duas primeiras tiveram um formato muito específico, foram online. Quero continuar a fazê-las, vão ser parte do trabalho em cada cidade onde for apresentado o espectáculo. Foi a partir das duas primeiras que desenhámos a base, criámos mapas de ideias daquilo que as pessoas estão a dizer. No TNDMII já tinha esse objetivo de convidar pessoas para estarem no espectáculo, aí foram eles que divulgaram essa open call e recebemos 64 inscrições. Escolher é muito difícil, mas é um desafio. Pessoas que não têm experiência de representação e que se colocam como espectadoras. A ideia de diversidade, idades diferentes, histórias de vida diferentes, esse foi o objetivo. E lidei com um problema grande em relação a essa ideia de diversidade: só recebi inscrições de pessoas cisgéneras, brancas.

A luta pela igualdade e o discurso político nesse sentido está sempre muito presente na sua obra. Chegamos aqui e temos um conjunto de espectadores em que todos são brancos e por isso a diversidade não é conquistada. E como falamos de inscrições é algo contra o qual dificilmente se pode lutar, pelo menos sem desvirtuar o propósito inicial da coisa.
Ainda ponderei, ainda pensei nisso, só que nesse movimento percebi que estaria a obrigar pessoas a serem espectadoras, estaria talvez a manipular.

Talvez seja até sintomático do meio artístico em Portugal.
E foi aí que eu pensei: então o trabalho tem de falar sobre isto. Enquanto criadores temos de fazer o exercício de perceber quem somos, mas enquanto espectadores também temos de ter essa consciência e isso foi fundamental para o espectáculo. Não estou completamente resolvida com isso, tenho muitas questões. Como é que falo sobre isto e depois tenho 12 pessoas, incluindo-me, brancas, cisgéneras e num lugar de fala muito privilegiado? É um grande desafio. Se a proposta foi esta, então tenho de a levar até ao fim, caso contrário teria de ter sido feita de outra forma, através de convites diretos. Não podia ser.

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