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DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

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Roberto Leal. Entrevista de vida ao "ruço de mau pêlo" de Vale da Porca que saltou do carro de bois para o mundo

O cantor Roberto Leal, que morreu este domingo, deu uma entrevista de vida ao Observador em janeiro. Falou sobre a infância, a música, a entrada falhada na política, o cancro e a fé.

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[Entrevista publicada originalmente a 12 de janeiro de 2019 e republicada depois da notícia da morte de Roberto Leal.]

São três da tarde e a cidade de Lisboa está a meio gás. Lá fora faz frio, mas o sol vai disfarçando. “O senhor é jornalista?”, pergunta um motorista de táxi. Face à resposta afirmativa, e sabendo que tinha apanhado o seu cliente à porta do Observador, a associação foi imediata. “O hotel para onde vamos costuma ter celebridades e médicos em congresso. Vai falar com algum famoso? Pode dizer quem é?” — pergunta, meio tímido, o chauffeur. “Roberto Leal”, foi a resposta. Ao ouvir esse nome, a cara do homem que conduzia o carro muda completamente: “Ah! O senhor Roberto! Conheço-o muito bem! Sabe que eu andei pelo mundo da música durante vários anos, aqui em Portugal, e um dia conheci-o através do filho, o Rodrigo. Na altura eu trabalhava com um grande artista português, era o motorista dele, e cruzámo-nos no estúdio. É um senhor impecável, boa gente, mesmo.”

Este episódio aconteceu minutos antes do Observador sentar-se à mesa para falar com António Joaquim Fernandes, o transmontano que hoje tem 67 anos e que se mudou com a família para o Brasil quando tinha apenas 11. Por entre uma vida difícil, cheia de desafios, acabou por conquistar o seu lugar ao sol (literalmente, não vivesse desde então na soalheira cidade de São Paulo) graças à música. A história que abre este texto é apenas um dos vários exemplos ouvidos nos dias que precederam a entrevista. Uma mão cheia de pessoas, das mais variadíssimas áreas e idades, já tinham contado a sua “história Roberto Leal”. Toda a gente o conhece, toda a gente já teve (ou conhece alguém que teve) uma história relacionada com o cantor luso-brasileiro que durante anos serviu de embaixador de Portugal no Brasil — e vice-versa.

É normal que alguém tão conhecido apareça com frequência nas notícias, na televisão, ao olhar do público. Roberto sempre soube bem o que isso era mas nos últimos dois anos atravessou uma fase de mudança, um momento de relativa reclusão. Aquilo que inicialmente parecia uma simples crise de ciática acabou por revelar um mal maior, um cancro que “graças a Deus”, disse o próprio Roberto, foi “atacado” cedo. Hoje afirma estar bem, “melhor que nunca”, mas a doença deixou marcas: o cantor perdeu a visão no olho direito por causa dos tratamentos a que se submeteu. Contudo, a força e energia que demonstrou mostraram que está pronto para voltar ao ativo, “renascido”, como o próprio diz, e dar seguimento à sua vida. Dizem que com sustos destes a vida desfila toda à frente dos olhos — e Roberto concorda. Agora que o “mal” está curado, vale a pena rever todos esses anos de aventura e luta — dos concertos em carros de boi à estreia louca no Brasil, passando por Marcelo e terminando com as polémicas da entrada falhada na política (que comemorou) e dos desmentidos de apoio a Jair Bolsonaro e ligações à IURD. Houve de tudo nesta hora e meia de conversa. Como pode ler nas linhas abaixo.

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Desde que começaram os problemas no olho direito, Roberto está sempre a usar óculos. Diz que o protegem e o fazem sentir mais confortável.

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Há quanto tempo não vinha a Portugal?
Ainda não fez dois anos, mas está próximo. Nunca fiquei tanto tempo sem vir a Portugal. Você sabe que depois de 45 anos de carreira a vida vai-nos ensinando muita coisa e é lógico que ainda há muito mais por aprender, estamos aqui para isso. A forma de eu estar e de pensar foi sempre assim: melhorar o que você faz porque o que passou é difícil de mudar. Costumo dizer que você não pode mudar seu início, mas pode mudar o seu fim, a sua continuidade. É isto que tenho vindo a fazer. Já há muito tempo que não vinha cá e foi bom. Toda a vez que desço do avião, em Portugal, há uma espécie de regresso a casa. Mas uma casa que me serve de inspiração, em qualquer parte do mundo, e que me faz falar da forma que eu gosto, mostrando o bonito que há em Portugal, a sua história…

É como se fosse uma âncora, então…
Isso mesmo. É como quando precisamos de nos afastar de alguma coisa porque à distância podemos vê-la e senti-la de outra forma. A vida tem-me proporcionado essa alegria de fazer televisão, imprensa, shows, sempre com o mesmo carinho, como se fosse pela primeira vez.

Que parte de Portugal lhe faz mais falta quando está no Brasil?
Gosto muito da expressão “saberes e sabores”. Engloba tudo. Por ter sido uma pessoa que nasceu numa aldeia chamada Vale da Porca, em Trás-os-Montes, onde 75% das pessoas tiveram de emigrar porque vivíamos da agricultura e aquele lugar era muito árido, consegui aprender aí, com essa experiência, algumas coisas que você não encontra em mais lugar nenhum. Havia uma música para cada fase do ano — uma para a apanha da azeitona, outra para a vindima, outra para a época em que semeavam os campos… Estas coisas são muito importantes para mim. Um dos maiores sucessos da minha vida chama-se “Como é Linda a Minha Aldeia”, porque foi ali que sonhei tudo. Quando somos meninos projetamos a vida da melhor forma. Aliás, todos nós, adultos, cometemos o grave erro de praticar o politicamente correto e vamos esquecendo a realidade. Mas não podemos matar a criança que há dentro de nós. É ela que nos dá o sonho, a inocência… Quando estou ausente, para ser objetivo com a minha resposta, é exatamente este contacto, o cheiro do lume, o velho pai que me adormecia ao toque do seu bandolim para colmatar a falta de possibilidades.

Como eram os seus pais?
Eram profundamente amorosos e criaram-nos com muito, muito carinho. Eles sempre nos ensinaram coisas importantes como o ato de dividir sem ter. Quando dividimos o que não temos ganhamos uma riqueza interior imensa. Aquilo que antigamente via como tendo sido a minha pobreza, hoje valorizo como a minha maior riqueza. Estas coisas levamos sempre connosco, estejamos onde estivermos. Tenho saudades disso quando estou em São Paulo, em Paris, na Inglaterra… Em todas essas grandes metrópoles por esse mundo fora. Os meus pais costumavam fazer as fornadas de pão, para 15 dias, e deixavam sempre a porta da arca onde as guardávamos aberta — muitos outros fechavam-na. E o meu pai dizia sempre: “Quanto mais depressa acabares, mais depressa ficas sem ele”.

A ida para o Brasil

A vossa mudança para o Brasil deu-se quando ainda era muito novo, tinha 11 anos. Lembra-se do que os fez querer sair de Portugal?
Não me lembro de quase nada do que aconteceu nos anos 50, mas a partir dos 60 sim. A Guerra Colonial ceifou muitas vidas, por isso todos os pais travaram uma luta incrível para proteger os seus filhos, para lhes dar outras oportunidades. Qual é o primeiro país que nos vem à cabeça quando decidimos mudar de rumo? Aquele sítio onde quase toda a gente tem um parente ou um filho de alguém? O Brasil. O motivo pelo qual 75% das pessoas da minha aldeia foram para fora foi precisamente porque era um sítio árido, super isolado, só havia uma estrada e ainda por cima era bem difícil de percorrer. Vivíamos em isolamento quase total! Se eu não tivesse sido criado com o amor paterno como grande sustentação, a minha vida podia ter sido algo completamente diferente. Isso ajudou-me muito, foi preponderante, mesmo. Quando tive a oportunidade de ir para o Brasil fui com a minha mãe e com os meus irmãos mais novos — nós fomos em cinco etapas porque não tínhamos dinheiro para ir todos de uma vez, tivemos de nos refazer financeiramente, de tempo em tempo. Os meus irmãos mais velhos e o meu pai já lá estavam. Quando o navio onde íamos se começou a afastar do cais de Lisboa senti o que a maioria das pessoas sentem quando imigram. A viagem de quando você imigra é diferente daquela que se faz em turismo. Quando fazes essa sabes quando vais e quando vens. Quando vais como imigrante nunca sabes se haverá um regresso, daí ser uma etapa da tua vida muito emocional, cheia de tristeza porque vais abandonar o teu mundo, tudo aquilo que sempre conheceste, por algo completamente desconhecido. Tudo isto remeteu-me a grandes pensamentos e projeções.

Que recorda?
A última cena que guardo desse dia, no cais de Lisboa, é a imagem de um tio (o irmão da minha mãe), não conseguia tirar os olhos dele. Pensava: “Como é que este homem, que na sua vida toda praticamente só tinha ido a Vila Real, foi a Lisboa para se despedir de nós? Como é que ele vai voltar à sua casa? Aquilo intrigou-me durante muito tempo. Naquela altura, nas cidades grandes, havia o hábito elegante de se cumprimentar as pessoas tirando o chapéu. Lembro do chapelinho dele ali, acenando… [Roberto emociona-se]. Eu estava lá, a olhar para ele, até deixar de o ver por causa do barco a afastar-se. Essa imagem ajudou-me muito, fez nascer a convicção de que um dia iria regressar. Regressar cumprindo a missão que me leva ao Brasil: divulgar a música portuguesa. Isso foi uma coisa sempre muito viva dentro de mim.

"O meu primeiro palco foi um carro de bois, lá em Vale da Porca. Nós tínhamos uma festa por ano mas eu achava sempre que isso era muito pouco, de tal forma que cheguei a dar muito trabalho aos meus irmãos mais velhos porque durante todos os domingos de junho a agosto ia sozinho às festas que aconteciam nas aldeias à nossa volta"

Quando é que começou a sua ligação à música?
O meu primeiro palco foi um carro de bois, lá em Vale da Porca. Nós tínhamos uma festa por ano mas eu achava sempre que isso era muito pouco, de tal forma que cheguei a dar muito trabalho aos meus irmãos mais velhos porque durante todos os domingos de junho a agosto ia sozinho às festas que aconteciam nas aldeias à nossa volta, eles depois é que me iam buscar. Não ia cantar, gostava só de ouvir o barulho dos altifalantes e ver as bandas a tocar ao vivo. Comia umas amoras pelo caminho e vamos embora. Trocava tudo só para ver um concerto. O meu pai ia-me ajudando ao não castigar-me por fazer aquilo. Ele comentava sempre “Tu também… não te chegam duas ou três festas? Tens de ir a todas?” [risos]. Eles já sabiam as que eu tinha feito e as que estavam por acontecer. Mas muitas vezes ia sem avisar ninguém, os meus irmãos mais velhos chegaram a avisar-me várias vezes para não fazer aquilo — mas eu fazia à mesma. Ia sempre sozinho mas nunca cantei. Quem era eu, um miúdo ali do Vale da Porca que tinha uns oito ou nove anos? Queria só o prazer de ver tudo à minha volta. Cheguei a fazer amigos nessas aldeias e muitas vezes, quando me viam, davam-me qualquer coisa para comer, apesar de eu nem sentir a fome, tal era o meu entusiasmo. Quando tinha de ir a sítios mais longe, por causa das histórias dos lobos e tudo isso, fazia por regressar mais cedo, para jogar pelo seguro.

Mas alguém da sua família já tocava ou cantava?
O meu pai…

Foi ele que introduziu a música na sua vida?
Sim, mas quem foi definitivo foi o meu irmão mais velho, já no Brasil, quando entrei no conservatório e comecei a fazer tudo direitinho. Ele foi para lá quando eu tinha uns cinco ou seis anos (sete no máximo) e não chegou a conhecer em Portugal a minha afeição à música. Em Portugal, contudo, foi o meu pai que teve maior impacto porque ele tocava muito bem bandolim, aquelas músicas mais populares. Algumas coisas em castelhano, até. Foi ao vê-lo tocar que percebi que era aquilo que eu queria, o que mais gostava. Voltando ao meu irmão mais velho: depois de estar já no Brasil, certo dia, eu estava a tomar banho e a cantar quando ele me ouviu pela primeira vez. Lembro-me da cara dele de espanto a olhar para mim, como se fosse um desconhecido. “Mas você canta muito bem, tem uma voz muito bonita. Aqui há muitas academias de música, vou levar-te a algumas.” Foi ele que me apresentou ao professor Manuel Marques, um português do Porto. Fiquei com ele durante cinco anos, a estudar música. É por causa disto que digo que o meu irmão mais velho também foi determinante. Ele começou a conhecer-me melhor, a ouvir-me cantar, sempre com um humor muito para cima — sempre tive um sentido de humor muito espontâneo — e viu logo que este António Joaquim Fernandes tinha qualquer coisa de diferente. Tem piada porque eles lá no Brasil chamavam-me “O Ruço de Mau Pêlo” porque era muito loirinho [risos]. E decidi deixar crescer o cabelo porque todo o artistas nos anos 70 tinham o cabelo comprido. Os Beatles, os Rolling Stones… Tentava arranjar a roupa mais parecida com a deles, dentro das nossas poucas possibilidades. Queria que olhassem para mim, queria falar mais alto que os outros e sempre sobre Portugal.

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Porquê?
Eu te explico porquê: na minha inocência achava que Portugal era muito presente no Brasil. Socialmente, culturalmente, musicalmente… Mas não, não havia nada. Tínhamos só um programa ou dois de pessoas que foram muito importantes para a comunidade que se foi formando, mas vivíamos em guetos. Comecei a reparar que até as próprias associações de portugueses, por ser um país onde se falava a mesma língua e por já haver crianças nascidas lá, cantavam as coisas do Brasil. Era preciso dar um murro na mesa — no bom sentido. Era preciso fazer alguma coisa pela música portuguesa. Debatia-me muito ao ver esta realidade e a sentir, ao mesmo tempo, que queria fazer alguma coisa com a minha juventude, a minha vontade de me mexer e de fazer algo de diferente com a música do meu país.

Tive a necessidade de usar a voz com ajuda das técnicas aprendidas com o tal professor Manuel Marques. Ele era um grande professor, tinha 80 ou 90 alunos de uma vez — uns tocavam acordeão, outros violão, outros guitarra portuguesa… Devo muitas homenagens a essa pessoa. Era um homem de muito boa educação, bons hábitos e determinante no meu percurso. De tal forma que depois de quatro ou cinco anos de aulas com ele, chamou-me para dizer que tudo em mim era espontâneo e que ele sentia que eu ia ser um grande sucesso. Contudo, fez-me um pedido: queria baptizar-me com um nome artístico. Escolheu o “Leal” porque sempre que ia com a turma cantar fora, noutras cidades do Brasil, era sempre o primeiro a chegar… Uma hora mais cedo do que era suposto! [risos] A vontade de ir era tanta! Ele nunca precisou de esperar por mim. Finalmente o “Roberto” porque ele dizia que ia ser o Roberto Carlos dos portugueses. Ele perguntou-me se aceitava essa sugestão e eu disse logo que sim. Ficou feito. Sendo ele uma pessoa que admirava muito e a quem eu reconhecia muita dedicação e amor, aceitei sem hesitar. A partir desse momento passei a ser o Roberto Leal.

"Tem piada porque eles lá no Brasil chamavam-me "O Ruço de Mau Pêlo" porque era muito loirinho [risos]. Decidi deixar crescer o cabelo porque todos os artistas nos anos 70 tinham o cabelo comprido. Os Beatles, os Rolling Stones..." 

Só para esclarecer um pormenor, quando a sua família decidiu ir para o Brasil já lá tinham conhecidos?
O irmão do meu pai, o tio Chico, já lá estava. Naquele tempo, em Vale da Porca, havia o comboio das seis da tarde, que trazia o correio. Havia uma senhora que todos os dias ia à estação de propósito para ir buscar uma sacola cheia de cartas. Ela depois reunia toda a gente na praça central e depois começava: “Uma carta do Brasil para o fulano X do beltrano Y!” Quando víamos os envelopes com selos do estrangeiro, já sabíamos de cor os que eram do Brasil — sabíamos logo que era para nós. Íamos recebendo uma carta por mês, mas com o tempo passaram a ser mais porque mais familiares foram-se mudando para lá. Primeiro foi a irmã mais velha do meu pai, a Maria Alice, depois o Manuel Luís, a Zulmira e a Teresa, e finalmente fomos nós.

Como foram os seus primeiros tempos no Brasil?
Logo assim que cheguei apanhei um susto enorme. O barco atracou no Cais de Santos, a 80 quilómetros de São Paulo, em plena hora de ponta. O meu irmão mais velho foi-nos buscar e levou-nos de carro. Lembro-me de ele dizer: “Repara no tamanho desta cidade!” Levávamos horas a chegar a casa, nunca menos de cinco. Aquilo para mim parecia um ano de espera, ainda para mais porque estava habituado à realidade de Vale da Porca, bem diferente, como podes imaginar [risos]. No meu silêncio, falando comigo mesmo, questionei-me: “Quem é que vai conseguir ouvir o grito de um português numa cidade deste tamanho?” Mas isso só me alimentava o espírito. Nos primeiros cinco dias desde a saída do barco, chorei copiosamente. Ao sexto mudei de chip e só sonhava com aquilo que me esperava, não tinha outra alternativa. Ainda hoje sou assim, muito determinado. Gosto de me focar numa coisa e de trabalhar, daí pensar muito no que quero fazer e nunca dar um passo em falso. Foi assim que comecei a projetar aquilo que o Brasil me poderia dar. A nossa casa ficava numa espécie de bairro chamado Vila Maria, onde moravam quase todos os portugueses que tinham vindo de Trás-os-Montes. As casas tinham sempre um azulejo, uma Nossa Senhora de Fátima… E era assim nos outros dois bairros de portugueses que ficavam à nossa volta, a Vila Guilherme e o Parque Novo Mundo. Aos domingos juntavam-se todos para afogar as saudades que tínhamos ao som de uma guitarra, no convívio.

E sentiu muita discriminação por ser português?
Muita, muita mesmo. Foi uma deceção muito grande porque, na minha inocência, achava que o Brasil era uma extensão natural do meu país. Depois comecei a ver televisão, por exemplo, e não encontrava notícias de Portugal em lado nenhum. Nem se pensava sequer em ouvir música portuguesa em programas brasileiros — só nalguns programas muito de nicho. Foi muito difícil para mim. Há uma história muito gira que acho que também se enquadra aqui. Nós levámos no barco um barril de azeite, ele fez a viagem toda connosco. Durante os primeiros nove, dez meses, a minha mãe utilizava-o sempre na comida que preparava para nós. Um dia, sem avisar nada, serviu-nos o jantar sem o nosso azeite. Eu comentei com ela que a comida nesse dia parecia estar sem gosto e ela só respondeu: “É verdade, vai-te acostumando porque a partir de agora vai ser sempre assim, acabou-se o nosso azeite!” [risos]. Brincadeiras à parte, tudo isto foram coisas que foram deixando marcas cá dentro, iam-me dando mais vontade de dar Portugal ao Brasil. Foram assim os nossos primeiros tempos. Meio de repente explode no Brasil uma pessoa chamada Roberto Carlos. Só se viam auditórios cheíssimos de alegria, com imensos jovens a celebrar e eu só me questionava: “Como é que vou levar a música portuguesa para ali?” Nesta altura explodiram musicalmente outros dois países europeus, a Itália e a França (com o Johnny Hallyday, por exemplo). Eu perguntava-me por Portugal. Onde estávamos nós? Isso tudo foi fervendo dentro de mim, mas percebi que me tinha de adaptar — por isso é que no início fui criticado por mudar muito a estrutura tradicional de algumas canções típicas portuguesas — mas se não não ia conseguir entrar nos auditórios onde estava o Roberto Carlos, com um público muito jovem. Se me limitasse a meter as mãos no bolso e a cantar fado, não tinha nenhuma chance.

Mas chegou a cantar fados, também, não foi?
Opá… Então não? Como qualquer bom português! Aliás, poucas pessoas sabem, mas na viagem de barco levava comigo um single do Fernando Farinha, um dos meu ídolos. Ele cantava o “Miúdo da Bica”, essas coisas todas. Outro ídolo que vale a pena citar — talvez o maior nome da música romântica nacional é o de Francisco José. Ele fazia muito sucesso, entrava em alguns programas no Brasil e conseguiu levantar o público. Era uma pessoa que estudou muito, fez vários cursos de dicção e falava de forma perfeita. Acabou por se mudar para o Brasil em condições muito complicadas. Um dia, no tempo da Ditadura em Portugal, queixou-se na televisão que era uma vergonha pagar-se tanto por concertos de músicos estrangeiros e o os portugueses recebiam uma esmola. Disse que isso não podia continuar, que não era justo. Acabou por ter de viajar na madrugada seguinte porque se não era preso. É uma grande referência para mim.

Roberto leal (à esq.) com o irmão Joaquim, no estúdio, algures na década de 70.

O atraso que o tornou conhecido

E quando é que sentiu pela primeira vez que tinha conseguido dar o salto?
Tentei adaptar a guitarra portuguesa a outras construções musicais mas fui-me apercebendo que ela era um desconhecimento total para a juventude do Brasil, como eu, que também era um ilustre desconhecido. O que decidi fazer, para dar uma revirada no texto, foi chamar uns músicos e, com a ajuda de um disc jockey de São Paulo chamado Barros de Alencar, que tinha muito sucesso, consegui gravar o meu primeiro disquinho. Só ele é que o tocava em São Paulo, mais ninguém. E nada ia acontecendo. Esse rapaz é que tinha uma visão muito mais além e entendia o que eu queria fazer. Disse-lhe que queria uns bombos de Trás-os-Montes, aquelas gaitas de foles… Ele disse-me que não conhecia nada disso mas eu tratei de tudo. Foi a partir daí que começou a ser feito o “Arrebita”. Essa música deu-me alguma visibilidade extra mas nada por aí além. Um dia tive uma intuição que até hoje não sei explicar: meti na cabeça que queria ir para o Rio [de Janeiro], que era uma cidade muito alegre, participativa e mais portuguesa. E lá fui com o “Arrebita”. Passei lá uma semana inteira a bater em várias portas mas ninguém pegava em mim. Um tipo com cara de alemão, com o cabelo pelas costas quase, que não tinha ar nenhum de português. Ainda por cima eu parecia uma árvore de Natal porque queria chamar a atenção [risos]. Acontece que antes de ir tinha lido um artigo sobre um homem chamado Chacrinha, todos os grandes artistas tinham passado por ele, era um visionário. Decidi virar-me para a pessoa que tinha vindo comigo, o Nélson Moreira, meu agente, e disse-lhe que queria ir falar com ele. Ele disse-me logo que ia ser quase impossível, o Chacrinha era demasiado famoso. Na sexta-feira, quando o meu dinheiro já tinha acabado, ia apanhar o autocarro para regressar a São Paulo. Antes de ir, por obra do acaso, acabei por passar à frente do edifício da Globo e disse-lhe que queria lá entrar. Acho que ele ficou com dó de mim e lá fomos. Se não tivesse com ele não teria tido nenhuma hipótese de atravessar aquelas portas.

E o que encontrou?
Quando chegámos lá, eram umas quatro da tarde, vejo o Chacrinha de t-shirt, num dia de calor, a tomar uma água de coco e a preparar a programação dessas semanas no pátio do edifício. Fiquei com ele fisgado, sabia que ele gostava de artistas diferentes, que acreditava em coisas novas. Ele olhou para o Nélson, reconheceu-o, e perguntou quem eu era. “Ele é artista, um português”, respondeu. O Chacrinha ficou muito admirado: “Português?! Com esse aspeto?”. Logo a seguir perguntou se eu era ‘veado’ [homossexual] e o respondi logo que não [risos]. Ele perguntou-me o que é que cantava e, em vez de pôr a rodar o meu disquinho, comecei [começa a cantar, de braços no ar] “Ai cachopa se tu queres ser bonita/arrebita/arrebita/ arrebita!”. Ele ouviu e pediu à sua secretária, a Ana Lígia, para ouvir o disco. Pediu para repetir e a meio da canção perguntou-me se tocava com cachopas atrás de mim. Disse logo que sim —mas não tinha nada, claro. “Então no domingo que vem você estará no programa.” Voltei nesse dia para São Paulo completamente maluco. Ia cantar no maior programa de domingo à noite, aquele que encerrava o fim-de-semana, sempre das oito às dez. No domingo seguinte, aquele onde ia tocar, era a final do Festival Internacional da Canção, o maior que a Globo fez.

Então e como correu essa estreia?
Fui para o Rio dois dias antes, aproveitei para apanhar um sol na praia e, como sou clarinho, fiquei vermelho como um pimento, ninguém podia tocar em mim (talvez por isso é que depois vim a ter os problemas que tive). No dia certo vesti a minha melhor roupa e às oito lá estava. O programa começou e as horas foram passando: oito, nove, nove e meia, quase dez horas e todos tinham cantado menos eu. A certa altura oiço-o anunciar, na sua voz muito própria, algo deste género [começa a imitar uma voz mais grossa, quase de desenho animado]: “Agora vou apresentar para vocês o português mais bonito do Brasil, que custou 50 mil dólares à rede Globo!” Assustei-me com isso! [risos] Alguém depois pôs a mão no meu braço e disse: “És tu!” Entrei e decidi começar a fazer o máximo de gestos possível, para chamar a atenção das pessoas. Começou a soar a nossa chula, uma coisa muito simples, mas aquelas pessoas não percebiam nada do que estava a acontecer. Não entendiam se era samba, pagode ou funk. No finalzinho, já terminando, comecei a ver que ia havendo alguma reação do público, as pessoas começaram a tentar imitar alguns gestos meus. Mal isto começou a acontecer a minha música acaba.

O Chacrinha recebe um comunicado do Maracanãzinho, o pavilhão ao lado do Maracanã, para onde a emissão ia passar, por causa do tal Festival Internacional da Canção, a dizer que havia um atraso e que ele tinha mais três minutos. "Vocês querem mais Roberto Leal?", perguntou logo o Chacrinha — não havia mais nada programado, ele não tinha outra hipótese.

Acontece que no meio disso tudo, o Chacrinha recebe um comunicado do Maracanãzinho, o pavilhão ao lado do Maracanã, para onde a emissão ia passar, por causa do tal Festival Internacional da Canção, a dizer que havia um atraso e que ele tinha mais três minutos. “Vocês querem mais Roberto Leal?”, perguntou logo o Chacrinha — não havia mais nada programado, ele não tinha outra hipótese. E lá fui eu de novo. Quando todo o Brasil estava sintonizado, à espera do grande Festival com artistas como o Demis Roussos, só dava o cara de Trás-os-Montes, de Vale da Porca, a cantar o Arrebita. Foi o timing perfeito. É por coisas destas que tantas vezes me refiro aos sinais que a vida nos dá. Tinha tido uma espécie de ensaio onde forcei a barra porque ninguém sabia o que eu cantava e depois tive oportunidade de repetir, já com o público mais familiarizado. No dia seguinte não pude sair à rua — aquela figura que nunca ninguém tinha visto na televisão passou a ser conhecida de todos, até hoje.

Roberto Leal com oito anos, ainda em Vale da Porca, num dos seus primeiros concertos.

O cancro que o deixou cego de um olho

Voltando aos dias de hoje, nos últimos tempos a sua saúde tem sido tema. O Roberto anunciou que foi diagnosticado com cancro, que passou quase dois anos a tratar-se e que até está cego de um olho. Como é que isto tudo começou?
O primeiro sintoma fez-me crer que estava com uma crise de ciática, uma associação normal quando começamos a sentir uns formigueiros nas pernas, dores nas costas, etc. Decidi procurar apoio médico e uns diziam-me uma coisa, outros diziam outra e os sintomas continuavam. Acabei por conhecer um doutor filho de portugueses, o José Renan, um santo homem. Ele foi espetacular, olhou para mim e disse logo para tirar a roupa. Ele começou a marcar na minha pele, com uma caneta azul, os sinais que ele achava serem mais suspeitos. Recolheu amostras de uns sete e mandou para analisar. Os resultados confirmaram que o sinal que tinha na minha pantorrilha [barriga da perna] direita tinha um melanoma. Seguiram-se uma série de análises e fui logo operado, uma cirurgia complexa e profunda para retirar todo o mal que lá estava. Tudo se resolveu mas deixou um estrago grande, tive de levar uns 40 ou 50 pontos…

Isto aconteceu em que altura?
Há quase dois anos. Depois de recuperar da operação comecei um tratamento de Nivolumab, um medicamento que o Dr. Renan garantiu que não me ia fazer perder nem uma pestana. Não foi quimioterapia, foi imunoterapia, uma coisa mais leve que me ia deixar bom. Ele olhou para mim de forma diferente, era fã, toda a gente da sua família era fã do Roberto Leal. Isso ajudou muito, acho eu. O Hospital Samaritano, onde me tratei, também fez um serviço notável. Comecei a fazer o tratamento mas já tinha uma digressão marcada para Portugal. Vim na mesma, já num momento em que estava sob tratamento, e foi então que tive uma hérnia fulminante. Não quis dizer nada porque tinha muita esperança em dar a volta. No Brasil já tinha feito três aplicações do tal medicamento, através de um cateter aqui no peito, mas a quarta já foi em Portugal. E não foi fácil fazer esse quarto tratamento. Era suposto tê-lo recebido antes de começarem os espetáculos, cá, mas a burocracia fez com que se passasse uma semana e o IPO não conseguia dar com o medicamento. Isto foi num sábado e coincidiu com uma fase em que estava cheio de dores, nem me conseguia mexer. Tive de ir ao Hospital da Luz e aproveitei para dizer ao médico que precisava de receber esse tal medicamento, caso não o fizesse teria de regressar ao Brasil e cancelar os shows. Ele saiu, voltou dez minutos depois e disse-me que eu estava com sorte. “A Dra. Isabel Breyner garante que você vai ter tudo o que precisar já na segunda-feira”, foi mesmo a tempo, mais um dia e tinha de regressar.

Correu bem.
Tudo acabou por correr bem. Eles trataram-me com o maior carinho, entrava sempre pela porta de trás para não me reconhecerem… Os espetáculos que dei depois disso tudo foram a maior experiência de vida que alguma vez imaginei ter. As pessoas que trabalham comigo, o meu staff em Portugal, disseram que era melhor cancelar, que toda a gente ia entender e que eu não estava em condições para atuar. Foi aí, então, que começou a loucura: o meu primeiro show, no Porto, foi o Concerto das Avós, seis mil avós. Estava tudo na dúvida sobre como íamos fazer, como iria entrar em palco, e o meu filho mais velho, o Rodrigo, até disse que ia ao palco avisar as pessoas que eu não ia cantar porque estava doente. Mas recusei. Disse que não iria fazer bailaricos e que só depois, a seu tempo, iria falar da minha saúde. Dei o concerto sentado mas à segunda música já estava toda a gente a gritar pelo meu nome. Foi nesta altura que percebi também que se ficasse em casa ia entregar todo o meu tempo à dor. Preferi apostar no amor e no carinho numa posição onde nunca tinha estado, toda a gente de pé a dançar e eu sentado. Percebi que era um caminho que ia ter de percorrer, não havia volta a dar. Senti que ia ser um percurso duro mas que me iria fazer crescer. Sempre fui um homem de fé, já tinha sido um milagre ter vindo de Vale da Porca, ter vendido quase trinta milhões de discos… Isso só por si já era um milagre. Foi tudo espontâneo e fui sempre travando várias lutas, mas esta seria a mais difícil de todas. Se sou um homem de fé tinha de o provar agora. Isso foi determinante. Nunca me entreguei. Quando cheguei ao Brasil, depois de terminada a digressão, fui ter com o Dr. Renan novamente e estava um caco e ele não me quis operar, por causa dos riscos colaterais…

Sempre fui um homem de fé, já tinha sido um milagre ter vindo de Vale da Porca, ter vendido quase trinta milhões de discos... Isso só por si já era um milagre. Foi tudo espontâneo e fui sempre travando várias lutas, mas esta seria a mais difícil de todas. Se sou um homem de fé tinha de o provar agora. Isso foi determinante. Nunca me entreguei.

Essa operação seria ao quê?
Ao final da coluna, por trás da hérnia. No meio dos testes que me fizeram antes da operação perceberam que atrás dela havia outro tumor. Ele acabou por operar na mesma e foi de novo um sucesso. Um cara que não conseguia pegar num telefone, depois da operação, no dia seguinte, tinha as pernas que pareciam um elástico! Tudo voltou a mexer, tinha desprendido. Fiz muita fisioterapia e cheguei a um ponto em que senti que já tinha ultrapassado os maiores desafios. Isso deu-me ainda mais confiança para seguir em frente. Fui recuperando lentamente mas emagreci muito, estava muito fraco, e sentimos que era melhor desmarcar as digressões do ano passado que já tinha marcadas em Portugal e no Brasil. Não conseguia estar de pé, qualquer preocupação fazia com que me doesse logo o corpo todo.

Nessa altura a sua visão já estava afetada?
Já tinha ido ao oculista antes de ir para Portugal, parecia que tinha de ajustar a graduação dos meus óculos. Passado um mês a visão do olho direito foi baixando, baixando até que apagou. Apagou por que tive de fazer uma terceira operação. Tive de fazer radioterapia ao melanoma que depois apareceu na vista e isso causou um deslocamento na retina. Tudo apareceu sempre do lado direito do meu corpo. O Dr. Renan me disse que no meio disto tudo ainda tive muita sorte porque não foram afetados orgãos nobres (fígado, coração, estômago), que são mais difíceis de tratar.

Também deve ter sido diagnosticado atempadamente, não?
Exatamente, foi isso mesmo que ele falou. Agora estou num tratamento único, já a terminá-lo. Costumo dizer que o bate chapas já terminou o seu serviço agora falta só remendar o farol. É assim que me encontro e uso os óculos para proteção, para não ferir a vista. Não tenho dores, mas às vezes há um ligeiro incómodo, parece que tenho areia no olho, quando descanso pouco. Só recentemente voltei a remarcar os shows do Brasil que tinha cancelado, foi uma comoção nacional. E tentei silenciar tudo, até agora.

Foi no programa da Record, o Domingo Show, que se abriu sobre esse assunto pela primeira vez, certo?
Sim. O Geraldo Luís [o apresentador do programa] tinha-me telefonado várias vezes para combinar uma entrevista. Dizia-lhe sempre para ter calma, para esperar, e ele respeitou. Quando senti que estava na altura de falar foi quando surgiu esse especial de três horas. Aí revelei tudo. Toda a gente sabe que sou um homem de fé, mas quero deixar uma mensagem muito importante. Em problemas deste género não se fiquem só pela força da fé e da mente, não façam isso. É preciso ter um diagnóstico completo, um bom médico e um bom hospital também. São coisas que funcionam em conjunto. Agora se tivermos uma predisposição boa — porque as células recebem ordens do cérebro — isso ajuda muito.

E esse primeiro show depois da recuperação como correu?
Foi em Campinas, numa cidade a 80 quilómetros de São Paulo. Ainda tinha alguma fragilidade mas já arrisquei uns primeiros passos de dança. Ao quarto show já estava lançado de novo. Foi muito rápido.

A entrada na política falhada e comemorada

Nestas últimas eleições o Brasil o Roberto concorreu ao lugar de Deputado Estadual de São Paulo…
… E graças a Deus não deu certo, não tinha que dar. Aquilo nasceu muito da Márcia, a minha esposa. A política atravessou um período político muito complicado, cheio de preso e corrupção. Por causa disso ela me desafiou a concorrer. Ela já queria que fosse candidato a vereador, em 2016. Recusei, mas essa ideia permaneceu comigo. Fiquei a pensar nisso apesar de saber o tempo todo que não ia dar certo. No dia de abrir as urnas todo o mundo foi para o comité e eu fui para casa sozinho. E comemorei a derrota! Não me vejo nessa posição. O Brasil atravessa um momento político muito complicado, muito sensível. Estamos com um ex-presidente preso e este que entrou também faz lembrar a época da ditadura, que me mete um pouco de medo.

O Roberto chegou a apoiá-lo [Jair Bolsonaro]?
Não, não, não. Em tudo o que faço na vida dou sempre o meu melhor, para que depois o desfecho não me pese. Isto para que no final, se não der era porque não era para ser. Um dos maiores sofrimentos do ser humano é o deixar algo por fazer. A Márcia dizia-me sempre que eu era alguém tão querido, tão amado nesse país e que devia tentar. Acontece que as pessoas, para me poupar, não votaram em mim. A minha família não votou em mim. Isso foi a melhor coisa que me aconteceu. Mas serviu para esquecer o que estava a passar.

O Brasil atravessa um momento político muito complicado, muito sensível. Estamos com um ex-presidente preso e este que entrou também faz lembrar a época da ditadura, que me mete um pouco de medo. O Roberto chegou a apoiá-lo [Jair Bolsonaro]? Não, não, não.

Era isso que lhe queria perguntar: A fase de campanha eleitoral não coincidiu com o período em que estava muito debilitado?
Fogo! O desgaste que tive! Até fiz carreata [uma espécie de desfile em carros]!

Imagino que tenha sido uma das coisas mais desafiantes que fez. Para uma pessoa que nem conseguia segurar num telefone durante uma chamada, estar constantemente em ações de campanha deve ter sido quase impossível de fazer.
Claro. Se bem que nessa altura já estava melhor. As eleições foram há muito pouco tempo. Dentro de mim, alguma coisa me dizia que não ia correr bem. Ainda bem. Agora voltando ao Domingo Show, quando ele terminou senti que estava na hora de voltar ao meu Portugal. Sempre fiz uma prestação de contas ao meu país e decidi vir. Com uma fé tremenda posso dizer que estou numa fase final de tratamento, está tudo controlado e muito bem. Acho que isto serviu para melhorar, houve um renascimento. Tenho muito mais cuidado com as decisões, fiquei muito mais humanizado, hoje dou abraços perdidos. Quais são os abraços perdidos? São aqueles que são devidos às pessoas que passam despercebidos. É ir a uma academia e olhar para aqueles que só lavam o chão. Ainda no Natal fui dar bolos a essas pessoas. Sinto que estou a ganhar. Há uma frase que queria aproveitar para deixar: “Quando o amor vence a dor”. O título do próximo disco que vou lançar vai ser uma de duas opções: ou essa frase ou “Vida que te Quero Viva”, o nome de uma música muito forte que escrevi sobre esta fase. Acho que este será o título.

Um novo disco

E o disco sairá quando?
Final de abril, começo de maio. Virei com um show muito especial, um homem renascido. Quando lhe disse que vinha o meu filho Rodrigo parecia um vulcão em erupção — “O pai não vai a Portugal assim!” Ao que lhe respondi que nunca tinha estado tão bem. O cuidado que a imprensa portuguesa teve comigo foi ótimo, todo o mundo, foi uma coisa maravilhosa. Não houve um programa que não tivesse o cuidado de falar comigo. É importante ressalvar que quando tudo estourou e dei os tais concertos sentado aqui em Portugal, tomava uma injeção logo de manhã e outra antes dos shows, uma hora antes de entrar no palco para aguentar a dor, mesmo sentado. Não desmarquei nenhum dos programas que já tinha acertado e eles foram de uma dignidade enorme. Puseram-me a entrar nos intervalos e a sair nos intervalos. Sentava a banda para não ser só eu que estava assim, tipo um acústico. Isso fez-me muito bem, regressei ao Brasil a sentir que o meu país me respeitava. Desta vez até o Presidente [Marcelo Rebelo de Sousa, que enviou uma mensagem de apoio via RTP] teve esse cuidado comigo. Ele sabe tudo o que se passa por causa do Nuno, o filho dele que está lá no Brasil. Sabe da importância das lutas que temos para desfazer nós e da carga missionária que carrego e que me diz que se eu não fizer tudo pelo meu país não vou feliz para casa. Sou um cara em paz e acho que isso se nota. Estou feliz, não deixei de fazer nada.

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Pegando na mensagem de Marcelo Rebelo de Sousa e na ideia que ele passou de que Portugal quase que tem uma dívida para consigo por causa de tudo o que fez pelo país ao longo do tempo. Tendo isso em conta, pergunto-lhe se alguma vez sentiu que Portugal não tratou de uma forma justa?
Só no início. Quando vinha cá…

Falou-se muito, no início dos anos 90, daquele problema com a IURD e do negócio da compra de rádios que teoricamente o teria envolvido…
Isso foi uma sacanagem que fizeram comigo. Esse negócio foi uma sacanagem, não tem nada a ver com nada. Calhou de vir morar em Sintra e nós temos a mania de nos despedirmos com um “Deus te abençoe”, uma coisa natural do brasileiro. Como a IURD tem essa linguagem eles uniram isso. Foi alguém que começou e não tem nada ver uma coisa com a outra. Não tem nada disso. Nunca fui privilegiado, nunca tive nenhum programa. Apareci na televisão como todo o artista português que vai a algum programa.

"Acho que o professor Marcelo Rebelo de Sousa está para a política como o Papa Francisco está para a religiosidade. Eles estão pondo cá para fora a sujeira toda que existe e é preciso limpar. A minha neta chegou a ter uns trabalhos corrigidos por ele quando ainda nem era Presidente."

Então, tirando esse exemplo, sente que Portugal foi alguma vez ingrato consigo?
No início não tinha a preparação que tenho hoje. Vim para cá com uma vaidade mais acentuada, já tinha ganho muitos prémios, todos os que existiam no Brasil. E é claro que eu notava que aqui não era visto com os mesmos olhos. Mas também acho que Portugal não sabia do trabalho pedagógico que estava fazendo lá. Pessoas que depois foram lá, como o Artur Agostinho, o Herman José, o António Sala, é que viram o que eu era e regressaram dizendo: “Espera lá, o homem lá é importante!”. Um dia, há uns vinte anos, levei o melhor que havia da música portuguesa e fiz um festival em São Paulo e Rio de Janeiro chamado “Nau de Paz”. O grande encontro, tudo por minha conta, sem patrocínio nenhum. Levei Xutos e Pontapés, Lena d’Água, Adelaide Ferreira, Marco Paulo, José Cid, Galarza… Nós parámos o Brasil, senti que era uma dívida que tinha porque não queria que os brasileiros achassem que Portugal era só Roberto Leal. Eu sou português mas há outras coisas. Depois fiz o inverso, um grande encontro de música brasileira no Casino do Estoril. Lá tinha sido Nau de Paz e cá foi De Jorge Amado a Pessoa. Sempre tive essa necessidade de ligar.

Quando o professor Rebelo de Sousa falou na televisão… Caíram umas lágrimas atrás dos óculos. Ele disse tudo aquilo que achei que tinha passado despercebido. Ele sabia de tudo, alguém o informou. Claro que eu já tinha estado com ele no Brasil, tivemos uma conversa muito boa e depois outra grande aqui em Portugal. Acho que o professor Marcelo Rebelo de Sousa está para a política como o Papa Francisco está para a religiosidade. Eles estão pondo cá para fora a sujeira toda que existe e é preciso limpar. A minha neta chegou a ter uns trabalhos corrigidos por ele quando ainda nem era Presidente, fazia só aquele programa de comentário na TVI. Eu não sabia de nada, quando a mensagem dele apareceu. Vou dizer uma coisa que não é minha, é da Amália e foi dita por causa dos miminhos que o Dr. Mário Soares lhe deu: “Eu não sei se fico mais rica ou mais pobre, mas sabe bem!” É mais ou menos isso [risos].

Artigo atualizado pelas 1h11 de 13 de janeiro. 

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