Quarta-feira à noite, Braço de Prata, Lisboa. O jornalista chegou 10 minutos atrasado à sala de ensaio, já receoso de apanhar o artista de mau humor. Depois de um aperto de mão, Samuel Úria desbloqueou a conversa: “Queres um moscatel num copo de plástico?”
O armazém é velho, telhado de zinco, com pouca luz a iluminar as caixas, bateria, guitarras, teclados, amplificadores, há parafernália rock’n’roll espalhada por todo o lado. Os músicos iam chegando, o ensaio iria começar daí a pouco, por isso começámos a “conversa” pela parte que mais importa.
[“É preciso que eu diminua”, um dos temas do novo álbum Carga de Ombro]
Samuel Úria, 36 anos, natural de Tondela, é um dos artistas mais talentosos da sua geração. Membro fundador da editora/movimento FlorCaveira, sempre fez questão de se assumir em nome próprio, ainda que o tenha feito sempre rodeado de amigos, quer na “banda Samuel Úria” (como ele lhe chama) quer com As Velhas Glórias. Visivelmente cansado, depois de um dia inteiro de entrevistas e sessões fotográficas, recebeu-nos para falar da carreira, das emoções do passado e do presente, sobre a violência que é fazer canções, dos amigos e do rock’n’roll.
O compositor prepara-se para apresentar o terceiro álbum de estúdio em nome próprio, dos seis que já publicou. Ou sete. Em quinze anos de carreira, já foram tantas as colaborações e projetos em que se meteu que perdeu a conta de cabeça aos discos que já gravou. Um detalhe que pouco importa, estávamos ali para falar dele e do novo Carga de Ombro, que sai dia 29, o mesmo dia em que vai ser apresentado no Teatro São Luiz em Lisboa (e no dia 5 de maio na Casa da Música, no Porto). E havia moscatel, em copos de plástico.
Há um episódio curioso que aconteceu no festival Bons Sons, em 2014. Começaste a tocar numa praça muito pequena que se encheu de repente, ao ponto de quase ninguém te conseguir ver. Tiveste noção da tua popularidade?
Sim, lembro-me disso. Acho que os festivais são um sítio onde eu apanho mais pessoas que conhecem o meu trabalho. É o tipo de sítio onde passo mais tempo a tirar fotografias com pessoas, por exemplo. Passo despercebido na rua mas o público dos festivais conhece-me. No Bons Sons foi peculiar, o que me deixou mesmo perplexo foi que havia pessoas que sabiam canções minhas que não estavam em nenhum disco…
Como assim?
Coisas que estavam em vídeos no YouTube assim muito recônditos, ou então em gravações da Flor Caveira um bocado perdidas, coisas que fiz há 16 anos, sei lá. Havia gente a cantar as letras, miúdos que se calhar eram crianças na altura. Estava perfeitamente abismado, foi um concerto especial por causa disso e também porque o Bons Sons é um festival especial.
Mas entre essas situações e os elogios que recebes, sentes-te vedeta?
Não. Aliás, não sou nada tímido ou introvertido, mas dar entrevistas é ainda uma coisa estranha. Não estou aqui a ser um personagem mas tive de me educar a falar de mim, não tenho esse hábito.
Mas isso acontece nos discos.
Mas nos discos é diferente, porque nos discos é um bocado… o que eu não digo no dia a dia acumula-se e depois tem de sair em canções.
É um escape.
É. Coisas que eu me esqueci de manifestar, ou coisas que eu não tive a oportunidade de dizer na altura certa, mensagens que eu queria globalizar mais do que para aquela ou aquelas pessoas. Acabam por ficar encafuadas e desaguam em canções, a minha inspiração às vezes tem muito que ver, não diria com recalcamento que eu não sou uma pessoa recalcada, é o desentupir de muitas ideias. E aí é natural que fale de mim, porque eu também sou a matéria, sou a pessoa que me está próxima e a que menos se ofende com o abuso da confiança que eu faço de mim próprio. Mas fora isso, não tenho trejeitos de vedetismo, mas com muita pena minha…
Porquê?
Porque acho que às vezes faz falta. Sou um provinciano mas às vezes acho que até a própria vaidade, enquanto figura de estilo, numa pessoa que faz música, assenta bem. Não tenho propriamente jeito para isso, mas gostava de ser um bocadinho mais imodesto na persona musical…
Mais vedeta?
Sim, mais vedeta, não na pessoal, gosto de ser a pessoa simples que os meus pais e os meus avós me educaram a ser, mas na persona musical gostava de ter um bocado mais, assumidamente como uma figura de estilo de comunicação.
E um exemplo de alguém que tenha esse jeito?
Não é por mimetismo, não é por referência. Mas sei lá, estou a lembrar-me do Bob Dylan. Está registado num documentário, alguém lhe pergunta um disparate qualquer e ele responde o que lhe vem à cabeça, a gozar. Tenho apetência para responder com seriedade e evitar ser condescendente quando me fazem perguntas que estão a pedir uma vedeta. Faz-me falta esse discurso de “agora eu é que vou ser importante e dizer os disparates que me apetecer”.
Dizes que usas as canções como veículo de escape. Não achas que isso te expõe demasiado?
Um amigo meu [Tiago Guillul] tinha uma frase sobre o escrever que dizia: “o ato de escrever é, em si, um exagero. O de cantar e o de fazer canções é mais que um exagero, é um absurdo”. Isso por um lado é bom, porque quando sabes que estás dentro de uma coisa que é absurda, deixas de ter qualquer tipo de pruridos ou reservas. Se estás a assumir, então que seja assim. Por isso é que a linguagem poética acaba por ser muito mais propícia a fazer desaguar aquilo que te apetece, porque as pessoas já estão à espera que haja ali exageros palavrosos, rítmicos, exageros estilísticos também… as pessoas estão a contar com isso. E eu aproveito porque é rara a oportunidade na vida em que tu tens gente predisposta a ouvir os exageros de outra.
Tu fazes música há mais de 10 anos, pelo menos de forma profissional. Quando olhas para trás, consegues rever-te no que fizeste?
Sim, consigo. Há aquele fenómeno em que torcermos o nariz a tudo o que nos parece fruto da nossa adolescência, do género “o que é que eu fui dizer!”. Por um lado, estou a chegar a uma idade em que já começo a olhar para as coisas que fazia há 10 ou 15 anos, não só com nostalgia, mais dos locais ou circunstâncias em que as músicas foram gravadas ou escritas, mas por outro lado também com alguma saudade da pureza com que algumas coisas eram feitas, sem qualquer tipo de expectativas, manifestamente a contar que só um núcleo de amigos restrito é que ia ouvir aquilo, não era feito para mais ninguém. Tenho saudades desses tempos em que havia simplicidade, também porque havia alguma inexperiência, sei lá…
Mas isso perdeu-se? Hoje és menos simples?
Eu tento ser simples, mas não consigo ignorar que hoje vou ter muito mais gente a ouvir-me e que há mais expectativas em relação àquilo que faço. E eu vivo disto, ou seja, não posso encarar a música da mesma forma que encarava quando era um passatempo, uma coisa que eu sabia que ia ficar restrita, comparando com o agora, que é o que me paga a renda e me põe comida na mesa. Não é sequer saudável que eu encare a música da mesma maneira. Mas é verdade que quando me sento para escrever há uma preocupação quase de me predispor mentalmente a voltar ao passado, a estar na minha terra, na minha Tondela, simples e onde o tempo corre mais devagar, porque, como isso resultou, quase que tento transportar-me para essa altura para fazer questão que resulte de novo. Mas depois de haver esse momento de inspiração onde me refugio no que me é familiar, o trabalho intelectual revela-se completamente diferente do que era antes. A maneira como eu agora penso como é que uma música vai ser gravada, como é que ela vai ser produzida, arranjada, que dicas é que vou dar a quem vai estar a tocar comigo, isso é muito diferente da altura em que estava sozinho com uma guitarra e fazia canções de uma maneira muito mais “descomplexa”. A criação continua a ser muito semelhante, mas o trabalho sobre a criação, o desenvolvimento, é muito diferente, hoje.
No meio desse processo, em que fazes a música, as letras, os arranjos, como é a tua relação com os músicos que tocam contigo? És “patrão” ou…
(Risos. Ali ao lado, o guitarrista e teclista Miguel Sousa quase soletra a palavra “déspota”). Tenho a felicidade de trabalhar com músicos, pelo menos aqueles que integram as bandas que se chamam Samuel Úria (risos), que conheço desde esse tempo simples e descomprometido. Eles eram os tais espetadores restritos da música que eu fazia há mais tempo. Por isso é extremamente fácil trabalhar com eles porque, de alguma maneira, cresci com eles musicalmente.
Além disso, temos uma relação que não se extingue na música, é quase familiar, somos irmãos em muitas coisas, nomeadamente na fé que professamos [Igreja Batista], há uma simbiose muito grande quando tens um background que é muito maior que a música. As coisas brotam de uma maneira muito simples, já sabemos com o que é que contamos uns dos outros.
Este novo disco, Carga de Ombro, fala de quê?
Isso é complexo… deixa-me explicar porquê. Há muita coisa que é propositadamente encriptada nos discos. Não há nenhuma palavra que seja jogada de balde, ou seja, há intencionalidade em tudo o que é escrito, mas muitas vezes é escrito propositadamente de uma forma codificada para que o disco não fique demasiado refém da própria personalidade de quem o escreve.
Por exemplo, no meu disco anterior, passei-o ao Pedro Mexia para ele fazer um primeiro press release, uma primeira apreciação ao disco. E porque “interpretar” é a vida dele, ele identificou ali tudo, foi ao pormenor, identificou as passagens, as referências literárias, ainda arranjou outras para explicar aquilo que eu estava a dizer…
Sentiste-te desarmado?
Fiquei contente por saber que havia pessoas que conseguiam identificar mesmo as coisas que estão mais escondidas, mas por outro lado, “descodificar” não é o que eu quero que as pessoas façam das minhas canções, porque assim continuam centradas em mim. Muitas vezes quando escreves coisas que são ou parecem ambíguas, há uma apropriação que as pessoas podem fazer daquilo que tu sentiste. Tenho tido esse benefício da dúvida. As pessoas acreditam que eu estou a escrever as coisas com sinceridade e com propósito e com objetivo. Basta haver essa identificação para que os outros encontrem objetivos e sinceridades que não eram os originais que eu coloquei nas canções, e isso é bom.
Ainda noutro dia alguém me perguntou se uma canção minha queria dizer isto e aquilo. Originalmente não, mas se é isso que vocês entendem ainda bem, porque extraíram da minha sinceridade uma sinceridade vossa, reconheceram que havia expressão e encontraram reflexo nela. E é muito bom quando os meus discos deixam de ser espelhos de quem o escreveu e passam a ser espelhos de quem os ouve.
Ou seja, quando não levam ninguém a perguntar “o que é carregas nos ombros?”, por exemplo. Já agora…
Menos coisas do que devia. O disco fala também da graça, que é o favor imerecido, são as coisas que eu, se calhar, devia carregar nos ombros e me foram retiradas e eu não mereço que me tenham sido retiradas.
Por exemplo.
Eh pá… por muitas dificuldades que eu tenha na vida, por muito que as coisas não sejam fáceis, eu não sou um gajo suficientemente bom para a vida me correr desta forma, não sou assim tão bom para ser tão privilegiado, ter amigos, irmãos, família, não me faltar comida… eu não fiz nada para merecer isso. Por muito que eu trabalhe, não sou suficientemente bom para ter esse tipo de coisas. Viver da música, uma coisa que me dá este prazer?
Sentes-te um sortudo.
Sim, eu não vivo com sentimento de culpa, mas vivo com o sentimento de gratidão por a carga que eu devia ter nos ombros ter-me sido retirada, isso tenho. E “carga de ombro”, que é uma expressão futebolística, é provavelmente a coisa mais dura que é permitida num jogo de futebol, ombro com ombro, está nas regras. E viver nesse extremo, de haver cenas que exigem violência da minha parte, mas que por outro lado promovem o contacto entre pessoas, que o meu ombro roce no ombro de outra pessoa, às vezes para abanar, outras para aproximar, é também outra coisa que eu não carrego nos ombros mas para a qual os meus ombros andam atrás.
És um tipo romântico?
(Risos) A minha mulher vai dizer que não… [“mas os amigos vão dizer que sim”, atira o Miguel, ali ao lado, enquanto se prepara para o ensaio]. Não sou um romântico no sentido clássico, o tipo que compra flores e escreve a poesia mais florida, isso não sou. Mas sou um romântico no sentido de ter paixões e de investir nelas, não só com o coração mas também com a cabeça. Às vezes aquilo que devia puxar mais pelo sangue é também o que me puxa mais pela bílis e pelos neurónios. Sou mais uma pessoa apaixonada que uma pessoa romântica, nesse sentido.
És visto um bocado como um herói do rock’n’roll, uma espécie de salvador do género. O rock está mesmo em extinção?
O rock é uma espécie em vias de extinção desde os anos 1960. O rock’n’roll está sempre a viver nesse limite, o de achar que pode ser suplantado. Mas depois é engraçado que muitas das bandas que anunciaram o fim do género eram precisamente bandas de rock. As bandas punk, por exemplo, aquilo é um rock extremado, eles estavam a revitalizar o género com a negação do próprio rock.
Isso de eu ser considerado um herói do rock tem a sua piada. Antes de ser um cantautor com alguns trejeitos lamechas, eu era um gajo que tinha bandas barulhentas e que passei a adolescência toda com o maxilar deslocado ou com o osso da bacia rachado porque andava na molhada. Isso é fixe, que haja pessoas que reconheçam, mesmo quando eu não faço coisas que são propriamente rock ou quando eu faço uma balada, que haja ali uma espécie de violência ou uma necessidade de ser “barulhento” a dizer coisas suaves, e que me reconheçam como uma pessoa do rock, fico contente, porque de facto eu sinto-me uma pessoa do rock mesmo quando não o estou a fazer.
E o rock português, como é que está de saúde?
É um caso raro… acho que o rock português está bom até pelo excesso, pelas coisas boas que estão a aparecer. Estamos a viver um momento ímpar de quantidade e qualidade a surgirem para a par, ombro a ombro.
Sentes que tens um papel inspirador nisso? Pela tua história, pelo teu percurso.
O meu papel naquilo que se pode chamar o panorama da música portuguesa é muito reduzido, mas no contexto da nova música que canta em português, sem qualquer tipo de falsa modéstia, acho que estou na proa, numa espécie de reviravolta que houve de malta a cantar em português e a interessar-se em falar em português sem ser com aquela fórmula antiga, da rima do beijar com o olhar ou o do beijo com o desejo. Nesse aspeto, nessa nova música portuguesa que não está refém de facilitismos, acho que estou lado a lado com outra malta que apareceu na mesma altura que eu e que, de alguma maneira, inspirou alguns miúdos que hoje em dia continuam esse percurso.
Costumas ir a Tondela?
Muito pouco. Quando vou até é mais para tocar, do que para visitar e estar.
E quando lá vais, és uma “estrela” ou és um “puto da terra”?
Exatamente o contrário de “estrela”. O que acontece é que muita gente me vem falar como se fossemos amigos, mesmo malta que só conhecia de vista, e obviamente que essa abertura aconteceu por eu ser uma espécie de celebridade local, mas a maneira como isso se reflete não é com distanciamento, pelo contrário, é aproximação. Depois acontecem coisas curiosas, por exemplo, a última vez que fui tocar a Tondela houve uma senhora que veio ter comigo a insistir que tinha sido minha professora, e não foi (risos), eu tenho boa memória. Mas ela insistia, “ah eu lembro-me tão bem de ti, estavas sempre com aquela mochila” — ela disse uma cor qualquer mas eu nunca tive uma mochila daquela cor… mas é isso, o estatuto lá é o contrário do estatuto, aproxima as pessoas. Porque me têm visto noutros meios, aproximam-se de mim num passado que imaginaram, o que é fixe. E eu não contrariei a senhora, aceito (risos).
Carga de Ombro vai ser apresentado no dia 29 de abril no Teatro São Luiz em Lisboa (21h), e no dia 5 de maio na Casa da Música no Porto (21h30). Os bilhetes custam 13€ e incluem um CD.