O cinema de John Ford é “uma questão pessoal” para Tag Gallagher. A “obsessão” começou na década de 60, enquanto estudante de filosofia na Universidade de Georgetown, na capital dos EUA. “Em criança e quando estava no liceu, via os filmes que davam na televisão a toda hora, mas não prestava atenção aos créditos, não fazia nenhuma ideia sobre realizadores, nem os nomes dos atores sabia. Quando cheguei à faculdade, tinha um amigo que era apaixonado por crítica e conhecia os nomes e as principais teorias da época. E andávamos e conversávamos, e eu ia-lhe dizendo os meus filmes preferidos. E qual não é o meu espanto quando descubro que eram quase todos do mesmo homem”.
O homem e os seus filmes – Cavalgada Heroica (1939), A Grande Esperança (1939), O Homem Tranquilo (1952) ou A Desaparecida (1956), para citar alguns – tornaram-se uma espécie de propósito de vida para Gallagher, que nas décadas seguintes tornou-se uma autoridade na área do pensamento académico sobre cinema. Fez crítica, escreveu livros, deu aulas e produziu dezenas de ensaios visuais, quase sempre com Ford como a sua Estrela Polar.
Pelo meio, escreveu ainda aquela que é talvez a mais compreensiva biografia do cineasta norte-americano. Em John Ford: The Man and His Films (1986), propôs uma “reinterpretação radical” da vida e obra do realizador que imortalizou a figura de John Wayne. “Na altura, a coisa óbvia a fazer era enfrentar os críticos de Ford, as pessoas que diziam mal dele”, começa por explicar ao Observador. “Mas depois pensei, que se lixe, vou simplesmente apresentar uma alternativa, baseada na forma como eu o vejo.” Uma alternativa cujo eco ainda hoje ressoa em muitas das discussões em torno de Ford.
A sua devoção pelo cineasta levou-o também em “peregrinação” pelo resto do mundo, dos Estados Unidos à Alemanha e também a Portugal onde, de 23 a 27 de setembro, a Cinemateca Portuguesa exibe um ciclo de palestras e filmes dedicados a John Ford, com Tag Gallagher como convidado de honra. A visita serve para dar a conhecer o estilo e a linguagem visual de um dos mais celebrados autores da “Era Dourada” de Hollywood. E também, como o crítico e ensaísta, hoje com 81 anos, tem procurado fazer há décadas, desmistificar algumas ideias pré-concebidas e “narrativas fáceis” em torno dos seus ideais políticos e sociais.
“Quando chegamos ao décimo filme, estão todos em lágrimas”
Parte do problema, diz, é o facto de haver pouca gente que ainda vê os filmes de John Ford – fenómeno que, aliás, está longe de ser único. “As pessoas raramente veem filmes antigos, e por antigos quero dizer com mais de 10 anos. Não estão habituadas ao estilo e ao ritmo, leva tempo”, começa por dizer Gallagher ao telefone, a partir de Nova Iorque. Um problema que o próprio confrontou diretamente nas aulas de cinema que lecionou ao longo dos anos.
“Digamos que ao longo de um semestre, mostro dez filmes do Ford. O primeiro filme, não importa qual é, a maioria dos alunos odeia-o, chegam mesmo a desistir do curso, indignados.” O efeito pode ser chocante para quem está acostumado à cadência rápida, aos efeitos e à linguagem do cinema contemporâneo. “As pessoas têm de se habituar a um filme com 50, ou 100 anos de idade.”
No entanto, continua, as reações realmente interessantes acontecem depois. “Ao segundo filme, talvez um quarto da turma goste. Depois veem o terceiro e metade gostam. Ao quarto, todos gostam. Quando chegamos ao décimo filme, estão todos em lágrimas. E isto acontece onde quer que mostre os filmes de Ford”.
O segredo está na sensibilidade única do cineasta para a composição visual de um plano, na habilidade de caracterização das personagens (em particular dos seus protagonistas, geralmente encarnados por John Wayne ou Henry Fonda) e para o humanismo latente em muita da obra de um homem que, por dentro do exterior áspero e combativo, mantinha convicções sociais profundas. “Se pegássemos nos dez melhores filmes de Ford e os eliminássemos da existência, ele continuaria a ser o maior realizador da história do cinema.”
Os quatro filmes que serão exibidos na Cinemateca (o primeiro dia do ciclo serve para apresentar o documentário John Ford: An Introduction¸ realizado por Tag Gallagher em 2014) oferecem exemplos dessa profundidade de obra. Cavalgada Heroica (1939), O Vale era Verde (1941), O Homem que Matou Liberty Valance (1962) e o menos celebrado (mas não por isso inferior) Uma Vida Inteira (1955) constituem na opinião de Gallagher um bom ponto de partida para explorar o engenho criativo do cineasta.
“À exceção do Cavalgada Heroica, que foi adicionado pela Cinemateca, os outros três filmes foram escolhidos por mim porque têm muita coisa em comum, nomeadamente o facto de serem muito subjetivos. Cada um deles consiste basicamente num longo flashback como enquadramento narrativo da história, e o flashback em si é subjetivo, ou seja, é contado do ponto de vista da pessoa que o está a narrar.” Um motivo recorrente na filmografia de um homem a quem Orson Welles, cujo seu próprio “filme-flashback” O Mundo a Seus Pés (1941) se tornou no mais aclamado da história, disse “dever tudo”.
Serve também para ilustrar que, muito embora hoje se associe o nome de Ford a imagens de John Wayne nos desertos áridos e caminhos-de-ferro da Fronteira Americana, este era muito mais do que um realizador de westerns. “Estamos sempre a falar deles, mas a maioria dos filmes de Ford não são westerns. O Denunciante [1935], O Vale era Verde [1941], A Taberna do Irlandês [1963], Sete Mulheres [1965]… ele fez muita coisa. E antes do John Wayne, havia o Harry Carey e o Henry Fonda”, declara Tag Gallagher. É verdade: ao longo da carreira Ford realizou mais de 100 filmes, muitos deles que nada tinham a ver com cowboys e índios. Aliás, dos 4 Óscares de Melhor Realizador que ganhou (um recorde na categoria), nenhum foi com um western.
Orgulho, preconceito e a relação com a bandeira
Por outro lado, é justamente a filmografia de Ford no western que tem desde há muito motivado um coro de questões e críticas ao papel social e político da sua obra. Décadas antes de termos como “guerras culturais” ou “woke” entrarem no léxico, já havia quem apontasse os elementos problemáticos a alguns estereótipos e motivos recorrentes de uma obra que, há quem diga, glorificava a expansão americana ao mesmo tempo que ignorava a violência e o genocídio contra os povos nativos.
Tag Gallagher não tem dúvidas. “É ridícula essa ideia de que ele era um reacionário ou de que não gostava dos índios. […] Na altura em que escrevi o meu livro, havia alguma imprensa contra ele por isso. E eu via exatamente o oposto, achava as políticas dele bastante radicais e progressistas para aquela época.” E dá exemplos. “Basta olhar para o Forte Apache [1948] – os índios ganham no fim, eles estão certos e o exército está errado. E o mesmo acontece em Os Dominadores [1949], nenhum índio morre no filme. A Desaparecida é frontalmente sobre frontalmente racismo, os brancos são mais cruéis que os índios.”
Gallagher vai mais longe e garante que o próprio Ford, filho de imigrantes irlandeses, conheceu de perto o racismo e a discriminação. Uma experiência que, crê, explica em parte o olhar simpatético para com os nativos. “Ele cresceu em Portland, Maine, numa cidade e numa época em que os irlandeses eram vistos como cidadãos de segunda classe. Por isso sempre sentiu uma aliança com os afro-americanos ou os judeus, porque também ele se sentia perseguido. Chegou mesmo a dizer que só se sentiu um cidadão americano de pleno direito quando John F. Kennedy foi eleito Presidente dos EUA.”
Apesar de tudo, Gallagher reconhece que nem sempre os ideais do cineasta e os seus estão perfeitamente alinhados. Um admirador confesso do exército norte-americano, os filmes de Ford não raras vezes glorificavam o exército e o serviço militar. Durante a II Guerra Mundial, chegou mesmo a servir como conselheiro dos serviços de inteligência norte-americanos e a participar no teatro de operações como líder unidade de fotografia do governo, sendo responsável pela criação de vários filmes e documentários de propaganda neste período (consta até que terá documentado a cores e de forma vívida o desembarque nas praias da Normandia no Dia D, num filme que hoje se presume perdido).
Estes elementos da sua obra causam ao autor e ensaísta algum desconforto. “É uma péssima época para se ser americano e mostrar estes filmes. Odeio o que os Estados Unidos estão a fazer no mundo e odeio ver a bandeira americana, é desagradável. Mas enfim, acho que toda a gente que tivesse servido no exército naquela altura teria gostado do filme”.
Gallagher observa ainda que certas tendências do cinema de Ford parecem intuir uma relação mais complicada com a instituição militar do que às vezes se presume. “Em Uma Vida Inteira, cuja ação decorre na Academia Militar de West Point, há uma personagem de um imigrante irlandês que chega, olha em redor, vê os cadetes alinhados na rua e diz: ‘O que é isto? Uma prisão? Um manicómio?’ E o guarda responde: ‘É a Academia Militar dos Estados Unidos’. Há três abordagens diferentes, e todas elas estão corretas.”
Com o passar dos anos, o estatuto do cineasta foi diminuindo, fruto de uma nova geração que olhava para os seus filmes como antiquados e preferia a irreverência da Nova Hollywood de Bonnie e Clyde (1967) ou Easy Rider (1969). “Os tempos e as opiniões mudam, é assim com todos os realizadores”, resume Gallagher. Curiosamente, essa vanguarda e esses novos autores tinham em Ford uma fonte inesgotável de inspiração, exemplificada em muito do cinema da década de 70.
“A Guerra das Estrelas [1977] foi um grande ponto de viragem”, diz. “Os westerns, como as comédias, eram considerados filmes pouco importantes, havia uma certa influência de Nova Iorque e da Costa Leste, um certo elitismo. Mas em A Guerra das Estrelas há uma cena levantada diretamente de A Desaparecida [quando Luke Skywalker regressa a casa, no deserto, descobrindo-a dizimada e os tios mortos pelo Império]. E de repente, A Desaparecida tornou-se uma coisa muito importante, voltou a ser aceitável gostar do John Wayne”.
E quanto ao próprio Tag Gallagher, décadas de pesquisa e trabalho sobre as complexidades da vida e obra de John Ford mudaram em alguma coisa a sua opinião? “Não, a única coisa que mudou foi que gosto cada vez mais dos filmes. Na faculdade, na altura em que ‘descobri’ o Ford, se calhar tinha visto O Vale era Verde umas 10 vezes até aí. De lá para cá vi-o talvez mais 50 vezes. E fica cada vez melhor, há sempre algo mais a descobrir.”
Mas informações sobre o ciclo História do Cinema: John Ford/Tag Gallagher no site da Cinemateca Portuguesa