O carro pega e segue sem destino. Ao volante, uma compositora a vaguear em círculos, uma mesma nota de piano, uma melodia que não anda nem desanda, a frustração de estar preso numa rotunda sentimental: ele prometeu que era para sempre, mas acabou com ela. E nunca o verbo foi tão adequado: a protagonista de drivers license está absolutamente acabada, destruída, estendida no chão. Em 2021, este canto angustiado de uma miúda de 18 anos rompeu o ruído da pandemia: Olivia Rodrigo liderou o streaming mundialmente, quebrou recordes que se mantêm, venceu um Grammy e foi à Casa Branca salvaguardar o programa de vacinação norte-americano — enfim, tudo isto e a escolaridade obrigatória ainda por fazer.
O primeiro single de Olivia Rodrigo, drivers license, é uma balada contemporânea exemplar. A descrição exata é power ballad, e se recordam este termo da década de oitenta, a lógica não é muito diferente, ora vejamos: introduz-se melosa, repleta de incertezas e súplicas, até que decide, a meio da canção, que não senhor, tragam a bateria, guitarra e baixo, e aqui vou eu — isto é literalmente Here I Go Again, a power ballad dos Whitesnake. Contudo, as baladas de hoje contêm, pelo menos, três particularidades: são maioritariamente compostas por/para mulheres, comentam a quente o final abrupto de uma relação, e sobretudo, copiam descaradamente Lorde.
A cantautora neozelandesa, que esteve na edição deste ano do Festival Paredes de Coura, definiu a balada do século XXI: pianadas em crescendo, à flor da pele, que pregam eternas e insolúveis mágoas adolescentes. O mais recente êxito de Olivia Rodrigo, vampire, segue a lição de Lorde à risca, um esplêndido queixume de quatro minutos emocionalmente instáveis, a prova que drivers license não foi um acaso e que o brilho desta voz é particularmente reluzente. A power ballad é o cartão de visita para Guts, o esperado segundo álbum lançado neste mês de setembro, com uma respetiva digressão mundial de arenas que inclui Portugal — dia 22 de junho na Altice Arena.
[o vídeo de “Vampire”:]
Se Olivia era uma adolescente anónima devastada, agora é uma adolescente célebre devastada. Em suma, Guts alega que a celebridade é mais tortuosa que glamourosa, o argumento está logo em “vampire”, onde uma figura vampiresca e maquiavélica é amante da pop star para sugar-lhe a fama: “Bloodsucker, fame fucker/ Bleedin’ me dry like a goddamn vampire”. No álbum de estreia, Sour, já havia um ex-namorado omnipresente, um mentiroso compulsivo que fatalmente a desaponta, destroça o coração e induz uma balada. Mas em 2023 não nos faltam canções lacrimosas, o que distingue Olivia Rodrigo das restantes pop stars é outro estado de alma: o rock ‘n’ roll.
O segundo single de Guts, bad idea right?, bate forte e feio, as guitarras ora rasgam em direções diferentes ora convergem num refrão inescapável, a certa altura distorcem num solo à Jack White, e não esqueçamos o maravilhoso baixo borbulhante — és tu Kim Deal? A letra é uma galhofa: ela entra em casa do ex-namorado — “Hey” — congela mal lhe vê a fronha — “My brain goes, Ah” — e acaba na cama — “I just tripped and fell into his bed”. get him back! é a outra malha de Guts que apregoa um ex-namorado irresistível — esperemos que seja o mesmo — naquele flow de branco desajeitado cunhado por Beck, até estalar um refrão pop-punk, a especialidade desta jovem nascida na Califórnia, terra de Blink-182, The Offspring e Green Day.
Os vinte anos enganam. Além da invulgar aptidão de entregar canções orelhudas, o engano está nesta linguagem pop-punk, uma língua-morta que não era proferida nos píncaros das tabelas de vendas desde Avril Lavigne. A primeira canção de Guts, all-american bitch, é clássico pop-punk, a intimidade acústica procede os gritos e guitarrada, a montanha russa emocional da adolescência, da calmaria à excitação, à laia de Good Riddance (Time of Your Life). Este dualismo rítmico, um jogo de contrastes, estende-se às letras: as contradições de uma jovem que se quer bonita, sexy e íntegra, mas ainda, emotiva, acessível e agradecida.
“All the time
I’m grateful all the time
I’m sexy, and I’m kind
I’m pretty when I cry
Oh, all the time”
“all-american bitch” é uma expressão de Joan Didion e o desenlace da canção, quando a narradora promete continuar bonita enquanto chora, é uma citação direta de Lana del Rey — se me permitem, a Joan Didion da pop. A par de Lorde, Lana del Rey é outro pilar da canção pop atual, incorporou uma personagem romanceada que vive num universo próprio, com tiradas trágicas e mordazes que influenciaram profundamente a geração seguinte. E Olivia descobriu que este lirismo corrosivo e melodramático ajusta-se perfeitamente ao rock’n’roll.
Neste momento devemos pausar o texto e deixar um alerta aos órfãos do rock, aquela malta que só se comove com guitarras e ofende-se pessoalmente com um playback: Olivia Rodrigo não é O Desejado que retorna do nevoeiro — segundo as profecias, de quando em quando surge uma entidade que recoloca o rock na boca do mundo. A californiana não está aqui para salvar ninguém, muito menos inventar modas, ouçam a melodia de pretty isn’t pretty, é praticamente 1979, e há poucas coisas mais fora de moda do que os Smashing Pumpkins. A reciclagem é assumida, menos pastiche que o soft rock de Harry Styles, mas declaradamente retrógrado — se procuram um novo rock, e têm estômago para malabarismo musicais, apontem para a miscelânea dos 100 gecs.
Olivia Rodrigo ao vivo na Altice Arena a 22 de junho de 2024
Na presença de um caldeirão imenso musical, com qualquer género à distância de um clique, esta geração seleciona a época predileta a gosto. Não existe qualquer diferença entre uma canção de Billy Joel de 1977 ou dos Paramore em 2007. Os dois são referências de Olivia Rodrigo e vêm exatamente do mesmo lugar: um clique. Neste segundo álbum, a cantora aumentou o leque de habilidades rockeiras, à boleia das Wet Leg, adotou o canto conversacional, um despretensioso sprechgesang. Em ballad of a homeschooled girl, garage rock pegajoso, recorda uma sucessão de faux pas — roupas desajustadas, tropeções, engates falhados — que nesta idade se assemelham a um arrependimento ao nível de Oppenheimer, afinal tudo está em jogo aos vinte anos:
“One phone call from you and my entire world was changed”
A linguagem é tão espontânea como um áudio de WhatsApp, a música não tem particular pretensão, é despojada, provavelmente composta em três tempos antes de entrar em estúdio. Esta abordagem difere da pop grandiloquente de hoje, com estratégias de promoção e decifrações intrincadas; Olivia Rodrigo é aficionada do rock alternativo da década de 90, das Breeders e dos Sonic Youth, e assimilou uma lição importante dessa malta: mais vale a intenção, o imediatismo e o swag, que uma produção pomposa.
O apreço pelo frugal aproxima-a de outra adolescente californiana que correu o mundo: Billie Eilish. Assim como Olivia Rodrigo, estourou inesperadamente nos streamings e teve que lidar com a pressão de um segundo álbum. E as duas fogem da lógica de dezenas de compositores e produtores, qual reunião de negócios, a engendrar milimetricamente a ponte que vai interligar dois refrões. Billie Eilish só precisa dos recursos do irmão, Finneas O’Connell, e Olivia Rodrigo do amigo Dan Nigro, reconhecido pelas parcerias com Sky Ferreira e Caroline Polachek. No entanto, no segundo álbum, Billie Eilish deixou cair o pano do submundo gótico de horrores, as batidas lo-fi apocalípticas, e tornou-se numa tradicionalista, uma Adele, uma cantora de baladas chave na mão, prontas a vender — basta ouvir a canção do filme Barbie. E Olivia Rodrigo não se mexeu um milímetro.
[ouça o álbum “Guts” na íntegra através do Spotify:]
Guts é mais e melhor do mesmo. A compositora de drivers license continua em círculos, tanto segue em frente pela sua nova vida exuberante de festas e celebridades — “I got the things I wanted, it’s just not what I imagined” — como faz marcha atrás e evoca os falsos amigos que a dececionaram, uma imbecilidade constrangedora ou o amante ultrapassado — “Just watch as I crucify myself/ For some weird second string/ Loser who’s not worth mentioning/ My God, love’s embarrassing as hell”. No geral, a crítica considerou Guts um disco exasperado com a celebridade e zangado com a vida. Mas esta análise do conteúdo não teve em conta a forma: a entrega de Olivia Rodrigo é performática, hilariante, sorumbática e extremamente dramática, por vezes numa única canção. É tudo teatro.
Aos 12 anos, a filha de uma professora primária e um terapeuta, de ascendência filipina, tornou-se numa atriz a tempo inteiro. Olivia Rodrigo foi contratada pela Disney como pau-para-toda-a-obra em séries de televisão. Desde então, nunca mais meteu um pé numa sala de aula. Os amores liceais que cantou, no limite, aconteceram em encenações de sala de aula, nos bastidores da Disney. Esta é a mesma escola pop que formou Demi Lovato, Selena Gomez, Jonas Brothers, Miley Cyrus, e claro, os veteranos Britney Spears, Christina Aguilera e Justin Timberlake. Antes de lançar qualquer canção, a atriz foi contratada pela gigante Interscope/Geffen Records, numa trajetória similar a tantos outros ex-Disney. A principal diferença, sobretudo com a geração de Britney Spears, é a autoridade sobre a carreira — Olivia detém os próprios masters — e a ausência de sangue, bate-bocas ou bizarrias para preencher os tabloides.
A ausência de controvérsias não satisfaz a insaciável internet, os fóruns dedicados a escalpelizar a pop chegaram à conclusão que Guts, em particular canções como “vampire”, são uma indireta a Taylor Swift. A origem da alegada inimizade é a canção deja vu, uma espécie de sequência narrativa de drivers license, que Swift e os seus advogados exigiram, há dois anos, uma parcela dos créditos. Independentemente da questão legal, é inegável que Olivia é uma swiftie, isto é, uma devota do universo Taylor Swift; a norte-americana praticamente inventou a persona contemporânea de uma cantautora pop, a espirituosidade lírica, os trejeitos da entrega vocal, o marketing sensacionalista e o livre-arbítrio sobre a carreira profissional.
A influência de Taylor Swift é evidente em lacy — fechem os olhos, coloquem Aaron Dessner dos The National na produção, e estamos a ouvir o álbum “acústico” Folklore. Curiosamente, lacy descreve uma mulher elegante que a narradora idolatra, de pele doce como massa folhada (funciona melhor em inglês, é suposto ser um elogio), que motiva uma cegueira ciumenta e uma competição constante.
“I just loathe you lately
and i despise my jealous eyes and how hard they fell for you
yeah, I despise my rotten mind and how much it worships you”
A identidade de lacy é secundária, Olivia está a remoer uma panóplia de relações falhadas, sejam amantes, amigos ou colegas. Em certa medida, este ressentimento emocional é um isco irresistível para o mercado que a indústria discográfica persegue desde a década de 50. Um artista que entra no coração de uma adolescente, sejam os Beatles ou a Madonna, promete nadar em dinheiro todos os envolvidos e estar um passo mais próximo da eternidade — invariavelmente, os miúdos vão querer ouvir esta música para poder falar com as miúdas, e todos chegam à maioridade com a mesma banda sonora.
No fim da corrida, entre baladas e rockalhadas, Olivia tem mais dúvidas que certezas: “When am i gonna stop/ being wise beyond my years and just start being wise/ when am i gonna stop being a pretty young thing to guys”. Quando é que vou deixar de ser um prodígio, uma “coisa bonita”, para uma artista adulta em pleno direito? Ou será que é agora, aos vinte anos, que estou no pináculo da existência? Vou passar o resto da minha vida a correr atrás destes dias? Em teenage dream, ainda questiona se esta constante incerteza, a verdadeira origem deste admirável segundo álbum, é suposto melhorar com a idade — desconfiamos que Olivia Rodrigo sabe a resposta: não melhora e ainda bem, que venham mais canções lamuriosas.