Ana Cristina Chéu, mulher do secretário de Estado das Infraestruturas, foi contratada para consultora jurídica do Conselho de Administração da Autoridade de Mobilidade e Transportes, uma das entidades reguladoras do setor tutelado pelo marido. Um mês e meio antes da contratação, o ministro Pedro Nuno Santos delegou todas as competências que lhe estavam “legalmente atribuídas” relativamente à Autoridade de Mobilidade e Transportes em Hugo Mendes. Apesar disso, a reguladora e o Ministério das Infraestruturas e Habitação, questionadas pelo Observador, não veem qualquer incompatibilidade nesta ligação.

A Autoridade de Mobilidade e Transportes é responsável pela regulação do setor ferroviário e também rodoviário, em atribuições que vão desde a avaliação de prioridades em matéria de infraestruturas até fiscalizar, por exemplo, os contratos de concessão. Ou seja: em algum momento, a Autoridade de Mobilidade e Transportes pode ter de criticar, fazer exigências ou dirimir conflitos que envolvam o próprio Estado, incluindo empresas tuteladas pelo Ministério (como a CP ou a Infraestruturas de Portugal). Caso exista um conflito entre a reguladora e o Estado poderá ocorrer uma situação em que o Conselho de Administração da Autoridade de Mobilidade e Transportes terá de recorrer à sua consultora jurídica (Cristina Chéu) para o assessorar num caso contra o Governo (representado pelo marido Hugo Mendes).

O Ministério das Infraestruturas e Habitação começa por negar a incompatibilidade legal, ao responder ao Observador que “não existe qualquer incompatibilidade à luz do regime jurídico do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, de acordo com a Lei n.º 52/2019, de 31 de julho.” Já no domínio ético, a mesma resposta oficial justifica que “desde o início do XXIII Governo Constitucional, o ministro das Infraestruturas e da Habitação [Pedro Nuno Santos] mantém a tutela direta da CP – Comboios de Portugal, E.P.E., e da Infraestruturas de Portugal, S.A.”.

Acrescenta ainda, na mesma resposta, que é Pedro Nuno Santos que concentra “as competências para a definição de orientações estratégicas e fixação de objetivos relativamente às políticas de infraestruturas e do transporte ferroviário, não tendo delegado essas competências em nenhum dos secretários de Estado”.

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O despacho de delegação de competências, de 20 de julho de 2022 — que pode ser aqui consultado em Diário da República — é, no entanto, bastante claro: o ministro delegou aquelas que eram as suas competências relativamente à Autoridade de Mobilidade e Transportes no seu secretário de Estado das Infraestruturas, Hugo Mendes.

O ministro delibera então o seguinte no despacho 8871/2022, de 20 de Julho:

Delego no Secretário de Estado das Infraestruturas, Hugo Santos Mendes, no âmbito das orientações e aspetos estratégicos por mim definidos, as seguintes competências:

(…)

c) As competências que me estão legalmente atribuídas relativamente às entidades administrativas independentes com funções de regulação da atividade económica dos setores privado, público e cooperativo nas áreas da aviação civil, das comunicações, dos transportes rodoviários e ferroviários nos termos da legislação aplicável e, designadamente, no respeitante às entidades a seguir assinaladas:

i) Autoridade Nacional da Aviação Civil;

ii) ANACOM – Autoridade Nacional de Comunicações;

iii) AMT – Autoridade da Mobilidade e dos Transportes;

(…)

12 de julho de 2022. — O Ministro das Infraestruturas e da Habitação, Pedro Nuno de Oliveira Santos.

Excerto do despacho de 12 de julho de 2022, publicado em Diário da República

Já a Autoridade de Mobilidade e Transportes, questionada pelo Observador, destaca que é uma “autoridade reguladora independente no exercício das suas funções e não se encontra sujeita a superintendência ou tutela governamental“. Sobre a contratação da mulher do secretário de Estado das Infraestruturas, a Autoridade de Mobilidade e Transportes enquadra a contratação numa “reestruturação interna” que visou o “reforço da capacitação técnica dos seus quadros, nomeadamente através do lançamento de concursos para a contratação de recursos humanos qualificados”.

Houve então contratações para três áreas (gestão, direito e assessoria técnico-jurídica), para as quais concorreram 41 pessoas. Dessas, foram admitidas 19 que “cumpriam os requisitos de admissibilidade”. O júri do concurso propôs então ao Conselho de Administração dois critérios de avaliação: primeiro lugar no respetivo concurso (das várias áreas abertas) e classificação final maior ou igual a 16 valores. Ora, explica a Autoridade de Mobilidade e Transportes, Ana Cristina Chéu conseguiu ambos: “Obteve a classificação final de 16,6 valores, tendo sido a primeira classificada no respetivo concurso.”

Depois disto, explica a Autoridade de Mobilidade e Transportes, a 25 de agosto e “por deliberação do Conselho de Administração, foi determinada a celebração de contrato individual de trabalho com a candidata referida, o que ocorreu no dia 1 de outubro”.

Ana Cristina Chéu foi chefe de gabinete da presidente do júri

A mulher do secretário de Estado começou então a trabalhar na Autoridade de Mobilidade e Transportes, no dia 1 de outubro, integrando a “categoria de consultora principal nível 3, CP-A03 [corresponde a 3.800,00 euros de remuneração base], exercendo o seu trabalho técnico especializado de jurista no apoio ao Conselho de Administração”.

Mas para isso teve de se submeter a um concurso que tinha critérios como 12 anos de experiência profissional, dez anos de coordenação e outros, como “ter uma “visão” prospetiva e pessoal para a função a que se candidata”.

A presidente do júri — que tinha ainda mais dois quadros da Autoridade de Mobilidade e Transportes e dois membros externos à entidade — era a própria presidente do regulador, Ana Paula Vitorino, que, portanto, avaliou neste concurso a sua antiga chefe de gabinete. Ana Cristina Chéu foi chefe de gabinete da então ministra do Mar em 2015 e 2016.

A candidata teve 15,9 na avaliação curricular, para o qual contribuiu também essa experiência no gabinete da ministra, mas obteve 17 na entrevista presencial (onde foi entrevistada, entre outros membros, por Ana Paula Vitorino). A entrevista elevou para 16,6 valores a nota final de Ana Cristina Chéu, já que este critério vale 60% na nota final, enquanto a avaliação curricular se fica pelos 40%. A candidata, como destaca a Autoridade de Mobilidade e Transportes, é “licenciada em Direito, advogada e pós-graduada em Contabilidade e Gestão Pública”.

Para enaltecer as mais-valias profissionais de Ana Cristina Chéu, a Autoridade de Mobilidade e Transportes destaca também, na resposta enviada ao Observador, que, “à data do procedimento de recrutamento, [Ana Cristina Chéu] exercia as funções de subdiretora-geral, em comissão de serviço após procedimento concursal da CRESAP, no Gabinete de Planeamento, Políticas e Administração Geral.”

A Autoridade de Mobilidade e Transportes, presidida por Ana Paula Vitorino, destaca o procedimento da CRESAP para demonstrar a independência do processo, mas há um historial neste caso. Ana Cristina Chéu foi inicialmente nomeada subdiretora-geral desse cargo antes de se submeter a concurso da CRESAP, em regime de substituição. Até então chefe de gabinete da ministra do Mar, Ana Cristina Chéu foi nomeada, em despacho conjunto da própria Ana Paula Vitorino e do ministro da Agricultura, Luís Capoulas Santos, a 7 de julho de 2016.

Só a 29 de março de 2019, quando Ana Cristina Chéu já estava no cargo há quase 3 anos, é que foi aberto o concurso (que Capoulas tinha desencadeado apenas em setembro de 2018) pela CRESAP (Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública). Ana Cristina Chéu, que já tinha a experiência do cargo por o ocupar há quase três anos, foi escolhida pela CRESAP na shortlist de três nomes feita por aquela entidade.

Assim, depois dessa deliberação da CRESAP a 2 de julho de 2019, Ana Cristina Chéu seria nomeada a 25 de julho desse ano, em despacho conjunto novamente de Capoulas Santos e da própria Ana Paula Vitorino. Os governantes preferiram Ana Cristina Chéu, que já estava no cargo, a Ana Maria Carneiro e a Paula Santos Ferreira — igualmente selecionadas pela CRESAP.

O homem que assinou o despacho que quase demitiu Pedro Nuno Santos

Ana Cristina Chéu e Hugo Mendes são, segundo o registo de interesses entregue pelo próprio governante, casados em comunhão de adquiridos. Licenciado em Sociologia, Hugo Mendes tem passado a sua carreira profissional nos últimos 16 anos em gabinetes governamentais ou no grupo parlamentar do PS (quando o PSD e o CDS estiveram no poder).

O governante foi assessor da ministra da Educação, entre 2006 e 2009, e adjunto do secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro entre 2009 e 2011. Entre 2011 e 2015, com o PS fora do poder, foi assessor do Grupo Parlamentar do PS, na Comissão de Orçamento, Finanças e Administração Pública na Assembleia da República. Entre 2015 e 2019, o PS volta ao poder e Hugo Mendes passa a adjunto do secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Pedro Nuno Santos. Em 2019, com a passagem de Pedro Nuno Santos a ministro das Infraestruturas e da Habitação, Hugo Mendes torna-se adjunto do ministro e, nesse ano, passa a chefe de gabinete, onde fica até 2020. A 17 de setembro de 2020 chega a secretário de Estado das Comunicações.

Como secretário de Estado das Comunicações, Hugo Santos Mendes tinha a pasta de uma reguladora (a ANACOM), mas não a da Autoridade de Mobilidade e Transportes, funções que Pedro Nuno Santos tinha delegado no então secretário de Estado das Infraestruturas, Jorge Moreno Delgado.

A 30 de março, Hugo Mendes foi nomeado secretário de Estado das Infraestruturas, mas também não foi logo aí que ficou com a pasta da Autoridade de Mobilidade e Transportes. Isso só aconteceria quase três meses depois: a 20 de julho, quando o ministro Pedro Nuno Santos deixou claro num despacho que as competências que lhe eram legalmente atribuídas relativamente à Autoridade de Mobilidade e Transportes passavam para o secretário de Estado das Infraestruturas.

Antes disso, Hugo Mendes já tinha sido notícia no final do mês de junho por ser o autor do polémico despacho em que o Governo definia a localização do novo aeroporto de Lisboa, em vésperas de um Congresso do PSD que entronizava um novo líder da oposição.

O primeiro-ministro tinha dito que ia esperar por Luís Montenegro para definir a localização do novo aeroporto de Lisboa, mas Hugo Mendes, instruído por Pedro Nuno Santos (que assumiria a “inteira responsabilidade” pelo ato), emitiu um despacho que definia o início da construção do novo aeroporto. O documento, que acabaria revogado, provocou uma mini-crise governamental. O ministro foi chamado a São Bento e, minutos depois, apareceu em frente às câmaras a pedir desculpa ao primeiro-ministro, aos colegas de Governo e aos portugueses. Fintou a demissão.

Pedro Nuno Santos fica no Governo, “obviamente”, e assume todas as culpas por “erros de comunicação”

Pedro Nuno Santos acabaria por ficar no Governo, mas vários dirigentes do PS, incluindo pedronunistas, não deixaram de mostrar perplexidade com todo o processo.

O Observador enviou questões a Cristina Chéu, através da AMT, mas a consultora jurídica optou por não responder a título individual. A reguladora respondeu apenas às questões dirigidas ao Conselho de Administração.