Índice
Índice
Quadros que fazem parte da história da arte portuguesa, obras resgatadas para que não se perdessem no tempo, as muitas tertúlias entre personalidades da vida cultural e política – antes e depois do 25 de Abril –, um acervo que contém uma das mais relevantes coleções privadas de arte moderna e contemporânea do país e ainda obras dos 20 artistas atualmente representados. São muitas as histórias que cabem nas seis décadas de vida da Galeria 111, em Lisboa, que agora se celebram. Trata-se de uma “casa sentimental”, diz-nos quem a gere; uma espécie de monumento erguido ao património artístico nacional e não só, que ao longo de 60 anos marcou diferentes gerações de artistas. Pela ocasião, duas exposições celebram a efeméride: uma na galeria dedicada a Lourdes de Castro e Paulo Rego, duas madrinhas deste espaço, e ainda uma mostra comemorativa com mais de duas centenas de obras de quase todos os artistas que expuseram na galeria ao longo dos anos, que estará patente no Centro de Arte Manuel de Brito (CAMB), espaço dedicado à memória do fundador. Mais do que nunca, celebra-se a importância de um espaço que mudou a cidade de Lisboa na sua relação com as artes. Regressamos à sua história.
Estamos no acervo da galeria (agora localizada na Rua Dr. João Soares 5B, a poucos metros da morada original onde tudo começou). Vislumbram-se obras de várias gerações. Há Paula Rego e Joana Vasconcelos, Álvaro Lapa e João Hogan, assim como obras de Adriana Molder e de Samuel Rama. É aqui que está o célebre quadro de Júlio Pomar, O Almoço do Trolha, umas das pinturas mais significativas da arte portuguesa do século XX, entre tantas outras que assumem um papel determinante para se entender a evolução de uma história da arte nacional. “Há obras mais antigas, que fazem parte da coleção, e outras mais recentes, porque se trata de um acervo que continua em construção permanente”, explica ao Observador Rui Brito, diretor da Galeria 111. Muita da história desta galeria que se mantêm “viva”, diga-se, mistura-se com a do seu fundador, Manuel de Brito (pai de Rui), que morreu em 2005, uma das figuras mais marcantes e influentes da arte portuguesa na segunda metade do século XX. “O meu pai foi um self made man e o seu legado está vivo através deste acervo e da coleção”, sustenta Rui.
Atualmente, no espaço onde a 111 funcionou ao longo de anos (no número 113 do Campo Grande), está o CAMB, que depois de um período fixado em Oeiras, assume aqui um papel determinante na interligação que se faz entre a galeria e a sua história. Gerida por Arlete Alves da Silva, mulher do fundador, dispõe de uma vasta coleção de obras, quase três mil, que realçam o percurso daquele que foi um dos grandes marchand d’art em Portugal. “As mãos e os olhos, conjuntamente hábeis, que o instinto de Manuel de Brito soube usar, foram a alavanca do êxito”, assim escreveu Júlio Pomar, em 2014, a propósito da vida deste galerista, nascido no Rio de Janeiro, em 1928. A história da 111 começa no seu ímpeto agitador, numa época em que o país, em pleno Estado Novo, ansiava por uma certa aura de liberdade. “Ele tem uma história complicada. Nasceu no Brasil, o pai prometeu que vinha mais tarde para Lisboa ter com a mãe e nada disso sucedeu. Certo é que começou a trabalhar muito jovem e acabou por se ligar aos livros. Rapidamente abriu a livraria aqui no número 111, onde tudo começou”, conta Arlete.
A história que se conta pelos livros
“Naquela época, o Campo Grande era uma espécie de lugar exótico”, explica o pintor Eduardo Batarda, num depoimento escrito ao Observador, sobre a sua relação com a galeria. A criação da Cidade Universitária era um bom motivo para uma livraria, de índole mais académica e técnica. A Escolar Editora (que funcionou primeiro na Rua da Escola Politécnica), como se chamava, tornou-se, no entanto, um lugar de resistência face à ditadura. “Era um espaço paradigmático no panorama cultural lisboeta, onde não faltavam livros proibidos”, conta Arlete Alves da Silva. Influenciado pelo desenhador Alfredo Betâmio de Almeida e o crítico de arte Rui Mário Gonçalves, sendo igualmente próximo de Eduardo Viana e Almada Negreiros, o “carácter intuitivo” leva-o a criar na livraria um espaço dedicado a mostras de arte. “Ele foi cativado por um conjunto de artistas e pessoas ligadas às artes e vem daí o desejo de criar uma galeria”, acrescente Arlete.
Assim nasceu a 111, a 3 de fevereiro de 1964, e realidade no panorama das galerias lisboetas mudou. “Tínhamos os quadros da Brasileira com um patine de 50 anos de fumo. Ainda tínhamos de esperar pela Gulbenkian. Foi então que o Manuel subiu a escada, saiu da cave e nos pôs a ver arte a sério nas paredes de estopa de uma pequena sala da livraria”, recorda o testemunho de José Pinto Carmona, num livro publicado a propósito do 50.º aniversário da galeria. Foi também ali que começou a trabalhar Arlete, que mais tarde se tornaria mulher de Manuel. “Tudo levava o seu tempo naquela época, mas já havia uma afinidade. O meu pai conhecia o Manuel de Brito, rapaz empreendedor, com mais 16 anos que eu, mas que na altura era casado e isto foi tudo complicado. A verdade é que o destino lá se cruzou”, recorda Arlete. Com o mercado da arte então votado à categoria de excentricidade remota, numa das salas da livraria passaram a expor-se trabalhos de pintura. “Foi também nessa altura que o Vespeira lhe chamou de Galeria 111 e fez o logótipo que ainda hoje se mantém”, conta Rui Brito.
Depois vieram os quadros…
Coube a Joaquim Bravo a honra da primeira exposição na galeria. O balanço da mostra, em fevereiro de 64, saldou-se na compra, por parte de um médico, de um único quadro do pintor. Seguiram-se António Palolo, então com 17 anos, Álvaro Lapa, Santa Bárbara, António Sena e muitos outros nomes então desconhecidos que conquistaram paredes e seguidores. “Aquilo que eu nem por nada esquecia, era do que via na 111, as garatujas do António Sena, as cores lisas do Lapa, um rabisco ao meio, (…) um reenquadramento, a frontalidade do Bravo, e depois, anos depois, já a livraria alargara”, lê-se num texto de Jorge Silva Melo. O encenador português, nessa altura jovem estudante da Faculdade de Letras, recorda como rapidamente o sucesso das mostra (não em vendas, mas no convívio que geravam), levou a 111 a mudar-se para o lugar onde atualmente existe o CAMB.
“A princípio não havia bem esse intuito de continuar com a ideia da galeria, mas foi essencial a presença do Fernando Conduto, que começou a dinamizar uma espécie de programação”, conta Arlete. A lufada de ar fresco na “Lisboa cinzenta, onde havia sempre um agente da PIDE à espreita”, diz Arlete, através das exposições e as tertúlias que se formavam em volta das mesmas deram voz a uma geração. “Mesmo para estes artistas que expuseram, para a maioria era a primeira vez que o faziam”, completa. Em 1970, a galeria muda-se para o número 113, depois de adquirirem o imóvel de uma antiga pastelaria que ali existia. A inauguração do novo espaço acontece no dia da morte de Salazar, a 27 de julho desse ano, e os motivos foram de celebração. “Toda a Lisboa acabou aqui a festejar, até que um vizinho fez queixa à polícia”, recorda Arlete.
A partir dessa altura, a Galeria 111 estava estabelecida. As suas inaugurações eram momentos de grande partilha e toda a gente queria expor ali. Nessa altura, Eduardo Batarda estava em Londres, mas sabia que tinha um espaço onde expor quando regressasse. “Tinha crescido em capacidade, reputação e sucesso durante os meus anos de estudante.” Havia, como sublinha, “esperanças de um futuro exuberante para as artes, e por isso esperanças também no tal triunfo desejado”, que se iria cimentar com a Revolução dos Cravos, em 1974. Ainda assim foram anos maus para o negócio, sublinha Arlete Silva. “Muita coisa não aguentou os anos que se seguiram. Muitos perderam as suas fortunas e não foi um período bom para quem vendia arte”, sustenta. “As coisas correram muito mal para todas as galerias desde finais de 1974, atravessando um 1975 dramático e chegando exaustas a 1976”, acrescenta Eduardo Batarda. Nessa altura, já a 111 tinha apostado na abertura de um espaço no Porto, a Galeria Zen. Foi, no entanto, juntamente com outros nomes, entre os quais Batarda, mas também Bartolomeu Cid dos Santos, Júlio Pomar, Menez, Paula Rego e Gonçalo Duarte que se começou a constituir uma coleção. “Sempre que havia nova exposição, o meu pai ficava com dois ou três quadros de cada artista”, salienta Rui.
No passado, já tinha tentado comprar o Retrato de Fernando Pessoa, de Almada Negreiros, que foi comprado pelo amigo Jorge de Brito, tinha ajudado a salvar os baixos-relevos do artista modernista provenientes do Cine San Carlos de Madrid, entre tantas outras aventuras que o estabeleceram como um homem profundamente conectado com a sua época. Além da relação próxima com os artistas, Manuel de Brito distingue-se por ter estabelecido uma cotação standard de valores dos artistas que representava, num momento em que o mercado primário se encontrava em grande especulação, garantindo uma certa estabilidade junto dos colecionadores, e promovendo várias ações de dinamização cultural. A Galeria 111 cria até o chamado Clube dos Cem Cem, como uma tentativa de dinamizar a aquisição das obras de arte novas, com um conjunto de colecionadores amigos da casa. Todas estas ações ajudaram a consolidar o emergente mercado da arte português, incutindo o gosto da compra de obras de arte contemporânea num público português que ainda era bastante conservador.
Além da coleção que deu força à abertura do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, em 1983, a coleção de Manuel de Brito era, sem dúvida, a mais significativa que já existia, no entender da historiadora de Raquel Henriques da Silva. “A sua construção não decorreu à porta fechada como se sabe, antes em articulação profunda desde a abertura da galeria, em 1964. Na verdade, ao mesmo tempo que ia resgatando o passado, a coleção foi crescendo com aquisições criteriosas realizadas nas exposições que a própria galeria organizava, sendo que, quase sem exceção, os principais pintores portugueses das décadas de 1950, 1960 e, com menos extensividade, 1970, foram artistas da 111”, sintetiza ao Observador.
Num texto do próprio Manuel de Brito, o galerista explicava como procurou aliar a intuição à melhor informação teórica, que advém do contacto com professores, críticos e artistas na construção dessa mesma coleção. “Acredito que quem a visitar não se sentirá defraudado no tempo disponibilizado para ver ou rever algumas das melhores obras de arte portuguesa deste último meio século”. Um ano depois da sua morte, em 2006, o Centro de Arte Manuel de Brito foi inaugurado no Palácio dos Anjos, em Algés. Depois de um período aí fixado, voltou ao Campo Grande, na morada da galeria. “Cumpriu-se, por fim, o seu sonho”, sublinha Arlete.
Um livro de autógrafos para a história da arte portuguesa
Rodeado pelos muitos artistas que foram passando na 111, Rui Brito foi colecionando num pequeno livro, autógrafos – entre desenhos e outro tipo de expressões artísticas mais livres – de quase todos eles. Lourdes de Castro era a “tia Lourdes” e Paula Rego fazia questão de lhe despertar a imaginação com os desenhos que lhe deixava. Não é por acaso que, a certa altura e já depois de ter estudado outras áreas, quis enveredar pelo caminho dos pais. Foi ali, conta Rui, que começou a trabalhar aos 16 anos. “O primeiro quadro que vendi foi da Paula Rego”, recorda. Fez de tudo – entre transporte de obras e catalogação – e herdou as lições de Manuel de Brito. “O meu pai era um homem muito dinâmico e com ideias, mas não foi uma figura paterna muito presente. Também por isso deu-me gozo e ajudou-me a ficar bem resolvido a cumplicidade que criámos quando começámos nesta relação profissional e aprendi bastante.”
Quando não estava na Faculdade de Letras, onde acabaria por estudar História, com especialização em História da Arte, estava numa secretária a trabalhar ao lado do pai. Sem o saber ainda, estava a trazer novas ideias para a galeria, num período de grande mudança com o aparecimento de muitos espaços ligados à arte contemporânea em Lisboa. Ao recordar-se um estudo de 1999, o docente e crítico de arte Alexandre Melo sustentava como a 111 tinha sido a “única galeria lisboeta a atravessar três fases de recessão económica sem encerrar as portas, não se limitando a existir durante as fases de grande entusiasmo comercial e de especulação bolsista”. Atualmente, explica Rui, o carácter independente da galeria, com uma visão própria, espelha-se na contínua ligação a jovens artistas que têm ajudado a lançar.
“Houve momentos em que achei que podia ter feito mais coisas, mas a dinâmica das galerias mudou muito, e acredito que fomos e continuamos a ser um veículo muito importante”, salienta o atual diretor. Com o passar dos anos, sustenta, as galerias tendem a ser mais orientadas pelo lado comercial. “Especula-se muito e há artistas que são considerados estrelas, anda sem uma consistência na obra que produzem e vê-se mais a arte como ativo financeiro”, explica. No entanto, para a Galeria 111 interessa manter o legado e criar boas exposições, apoiar artistas e dar-lhes ferramentas para espantarem o púbico. “Queremos artistas que fervilhem contemporaneidade e dar-lhes esse palco”, acrescenta Rui Brito.
Adriana Molder, uma das artistas representadas pela galeria, salienta que quando pensa na 111, surgem desde logo Paula Rego, Lourdes de Castro e Vieira da Silva como nomes que a entusiasmam e que fazem parte da história. “A 111 é uma galeria histórica e é também uma espécie de galeria-museu. (…) Aos 60 anos, segue o seu caminho com novos artistas, num novo e ótimo espaço e (muito importante) com o seu fiel e assíduo público”, sublinha. Neste momento pejado de memórias, Raquel Henriques da Silva realça que, como apanágio dos grandes galeristas europeus, Arlete e Manuel de Brito nunca foram meros marchands. “Não só porque estavam ao mesmo tempo a criar uma coleção (e assim a gerar novas fontes de rendimento aos artistas que representavam) mas porque serviram de repto e modelo para os não muitos colecionadores de arte contemporânea em Portugal”, conclui.
Nos 60 anos da Galeria 111, Rui Brito continua cativado pela experiência de poder levar aos diferentes públicos uma experiência de fruição e de aproximação ao real. “Esta efeméride é um enorme orgulho. Olhando para o panorama nacional é uma coisa única, manter um projeto com tantas gerações, sem nunca ter fechado a porta. E sentir que mesmo as pessoas que aqui vêm há décadas, veem que houve evolução e que a 111 não é só mais uma galeria.” Se aos 35 anos, Manuel de Brito concretizou o sonho de ter uma galeria que fosse também um lugar de tertúlia onde os visitantes pudessem ver obras de arte, consultar livros ou ouvir música, seis décadas depois, é esse legado que se dá a ver, uma vez mais. “Como é costume dizer, foi uma vida”, remata Eduardo Batarda. A Galeria 111 abriu caminho para a criação de um panorama, mas, acima de tudo, deixou uma história de memórias que ainda se dá a conhecer.