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A conspiração
Em Portugal, no outono de 1917, o palco político nacional continuava dominado pela nossa intervenção no teatro europeu da Grande Guerra. No poder, mantinha-se a supremacia do triunvirato guerrista, com Afonso Costa nas rédeas do Governo, acolitado por Norton de Matos no Ministério da19 Guerra e por Augusto Soares nos Estrangeiros. Presumivelmente porque os evolucionistas de António José de Almeida estivessem ainda a digerir os remorsos pela sua responsabilidade na manutenção dos afonsistas no poder, são os unionistas ou camachistas, como se designavam os partidários de Manuel Brito Camacho, que tomam a iniciativa de preparar um golpe militar para derrubar os «democráticos». Do «comité director» inicial faziam parte os coronéis Alberto da Silveira e José Augusto Alves Roçadas, os capitães João Tamagnini Barbosa e António Vicente Ferreira e o comandante médico naval Alexandre de Vasconcelos e Sá. Reuniam-se habitualmente nas instalações do jornal A Lucta ou na Farmácia Durão, ao Chiado, propriedade do seu correligionário António Ferreira. Mas um pouco por todo o lado se remordia e conspirava, num mal disfarçado rancor ao núcleo afonsista dos «democráticos».
A gestão do governo dito, por emulação francesa, da «União Sagrada», dominada pela demagogia dos «democráticos», deixara o país à beira da bancarrota e a carestia de bens de primeira necessidade era mais que notória. Faltava um caudilho que conseguisse agregar em torno de si todos os excluídos e rejeitados pelo PRP, desde os anarco-sindicalistas até aos católicos e aos monárquicos. E ele surgiu, providencialmente, na figura de um unionista de 45 anos, antigo ministro do Fomento (Economia), no Executivo chefiado por João Chagas (de 24 de Agosto de 1911 a 3 de Novembro de 1911), e das 2 Finanças, no Governo de Augusto de Vasconcelos (de 7 de Novembro de 1911 até 16 de Junho de 1912). Chamava-se Sidónio Bernardino Cardoso da Silva Pais e nascera em Caminha, em 1872.
Antes de participar nos primeiros governos que haviam resultado da implantação da República, Sidónio, o «irmão» Carlyle da «loja» coimbrã Estrela d’Alva, fora presidente da Câmara de Coimbra e deputado à Assembleia Constituinte, em 1911. Dispensado das funções governativas, rumara à Alemanha como representante de Portugal em Berlim. Quando Sidónio lá chegara, em meados de Setembro de 1912, as exportações portuguesas para a Alemanha tinham ultrapassado as destinadas à Inglaterra, muito à custa do cacau de S. Tomé. As relações comerciais mostravam-se promissoras e ao enviado especial e ministro plenipotenciário português em Berlim cabia a tarefa de garantir a sua evolução favorável. Mas desde logo tinha tido que ultrapassar o muro de hostilidade criado pela reputação que os «donos do regime» tinham na opinião publicada alemã. O principal tema gerador de má imprensa era, como não podia deixar de ser, a aplicação da Lei da Separação do Estado das Igrejas mas também contribuíam a permanente instabilidade governativa e o clima de desordem aportado pelos recorrentes surtos grevistas, sem esquecer o papel desempenhado pelas associações secretas no regime. E só no sector dos interesses económicos encontrara alguma abertura. Quando pareciam auspiciosas as relações entre os dois países, viera a Guerra, empenhando-se então Sidónio na defesa da neutralidade portuguesa.
Sidónio Pais regressara a Portugal depois de a Alemanha nos ter declarado guerra em Março de 1916. Lente de Matemática da Universidade de Coimbra e major do Exército (embora há muito sem função castrense), um republicano de sempre, nacionalista e livre-pensador, Sidónio acabou a encabeçar a conspiração, pondo nela toda a sua energia e poder de persuasão, aliciando e recrutando camaradas do Exército bem como civis. Com ele estavam dois dos cabecilhas do 5 de Outubro, José Carlos da Maia e António Maria Machado Santos. Este último encontrava-se então preso no Fontelo, em Viseu, desde Dezembro do ano anterior e, por seu intermédio, viriam também muitos «abrilistas», protagonistas da revolução radical de 27 de Abril de 1913. Durante os preparativos da conspiração, Camacho, porventura cioso da liderança e do protagonismo de Sidónio, abandona a conjura, argumentando com o «excessivo peso dos militares» nos centros de decisão da conspiração. Mas a falta do seu apoio, sobretudo na vertente financeira, é suprida rapidamente por outro rico proprietário alentejano, António Miguel de Sousa Fernandes.
Se o 5 de Outubro fora um movimento estruturado por sargentos, a revolução pendente era agora enquadrada por tenentes e alferes, cada vez mais receptivos à inspiração cultural dos intelectuais que rejeitavam a «tirania democrática», incluindo os do grupo do Integralismo Lusitano.
A revolta
A 5 de Dezembro de 1917 estala a revolta em Lisboa; embora sem a maioria dos seus quadros superiores, várias unidades da capital avançam para a Rotunda e para o morro sobranceiro ao Parque Eduardo VII, onde Sidónio estabeleceu o seu posto de comando. No total, incluindo os soldados de Infantaria 5, 33 e 16, de Artilharia 1 e de Cavalaria 7, não atingiriam os dois mil homens já contando com os cadetes da Escola de Guerra. Note-se que dos chamados «cadetes de Sidónio», como Teófilo Duarte, Assis Gonçalves, Henrique Galvão, Eurico Cameira, Humberto Luna de Oliveira, Manuel Faria, José Mariares, Jorge Botelho Moniz ou Jorge da Costa Pereira, alguns eram já, na realidade, oficiais subalternos, alferes ou tenentes.
De Viseu, Machado Santos preparava-se para se pôr em marcha a caminho de Lisboa, revoltando as unidades da Beira. Com Costa e Soares ausentes de Lisboa, a regressar ao país depois de uma mediática «visita à guerra» e das reuniões de trabalho em França, Norton de Matos e Leote do Rego assumiram a coordenação da repressão governamental. Sabiam que contavam com forças muito superiores aos insurrectos, nomeadamente com a Marinha, a GNR, a Guarda Fiscal e os efectivos da Polícia. Nas ruas, os «formigas-brancas» e alguns sectores dos carbonários prepararam-se para defender os seus «patrões» e cabecilhas. Mas o que mais marcava a diferença eram os canhões dos navios de guerra ancorados no Tejo e fiéis à gente no poder. E foi de lá, mormente do contratorpedeiro Guadiana e do cruzador auxiliar Gil Eanes, onde o segundo comandante era irmão de Sidónio, que partiram os primeiros bombardeamentos sobre a Rotunda. De onde lhes responderam as peças de Artilharia 1, calando alguns navios.
Tolhido por uma estranha apatia, só na manhã do dia 7 o Governo tomou a iniciativa da contra-ofensiva terrestre. No fim da tarde do dia anterior, tinha declarado o estado de sítio, perante o assalto generalizado às lojas e armazéns da Baixa por parte de uma turbamulta vinda dos bairros mais pobres da capital. Resistindo serenamente, Sidónio via as suas forças civis, organizadas por Manuel Inácio Ferraz e por Manuel Pedro de Abreu, «engordarem» com o apoio da União Operária Nacional, de tendência maioritária anarco-sindicalista. O acordo fora intermediado pelo dirigente acrata Aurélio Quintanilha, antigo aluno de Sidónio em Coimbra e pai do actual deputado socialista Alexandre Quintanilha. A aparente postura anti- guerrista de Sidónio granjeara-lhe um autêntico estado de graça junto das camadas populares que odiavam os «democráticos». Mas para o movimento operário sindical seria «Sol de pouca dura». Contudo, alguns sindicalistas revolucionários como Sebastião Eugénio, o João Corticeiro e o acrata Afonso Bourbon e Meneses namoraram mesmo o sidonismo, a fazer fé no que Emídio Santana afirma em Memórias de um militante anarco-sindicalista.
E foram essencialmente essas forças populares que travaram a contra- ofensiva governamental, imobilizando, com os seus petardos e bombas artesanais, as tropas da GNR e dos marinheiros que a partir da beira-rio tentavam envolver os insurrectos. A mais valente tentativa de furar o perímetro dos sublevados protagonizou-a, no largo do Rato, um destacamento de marinheiros sob o comando de Agatão Lança que ficaria gravemente ferido no combate. Perante o impasse, Norton de Matos tenta o truque usado na revolução extremista do 14 de Maio de 1915, procurando ganhar tempo com iniciativas de parlamentação com os revoltosos. Mas Sidónio não cai na esparrela, mantendo-se firme na sua lógica de vitória; «morrer ou vencer!» era o grito que se ouvia na Rotunda.
Perante o fracasso da iniciativa táctica, Norton de Matos vê-se então obrigado, em nome do Governo, a apresentar a demissão a Bernardino Machado. Este, manhosamente, para dividir os adversários, convidou Camacho a formar Ministério, depois de ter conseguido um cessar-fogo. Contudo, Sidónio Pais não desarma e, em nome da Junta Revolucionária, constituída por ele próprio, por Machado Santos e pelo capitão José Feliciano da Costa Júnior, recusa a «solução Camacho» e procede a nomeações políticas e militares para os cargos mais críticos. A partir do seu quartel-general no Arsenal, Norton de Matos e Leote do Rego conseguem fugir, refugiando-se no navio inglês Woodnut, um vapor de passageiros armado surto no Tejo e que zarparia a 12 de Dezembro. Afonso Costa, acompanhado pelo seu cunhado e secretário José de Abreu e pelo ministro Augusto Soares, é detido no Porto e enviado, a 11, no vapor Viana sob prisão, primeiro para a Trafaria e depois, a 18, para o Forte da Graça, em Elvas, de onde só sairá a 30 de Março de 1918, com destino ao exílio em Paris. Caíra pela terceira vez; o seu último executivo durara 231 dias.
Bernardino, no seu tradicional estilo, entre cordial, trapaceiro e casmurro, fingindo-se incauto, resiste à renúncia do cargo pelo que a delegação que Sidónio lhe enviara, os oficiais Eurico Cameira, Teófilo Duarte e Sá Guimarães, se vê obrigada a dar-lhe voz de prisão em nome da Junta insurrecta. Ficará em Belém até ao dia 15, quando lhe é imposto o exílio no estrangeiro, tendo então apanhado o comboio com destino a França. Machado Santos, que conseguira sublevar as Beiras provocando um efeito de contágio noutras regiões do país, chega entretanto a Lisboa. Após a incerteza de alguns dias, depois de uma centena de mortos e de mais de quinhentos feridos, a 8 de Dezembro, a «revolução» para apear os «democráticos» do poder triunfara. O delegado militar inglês em Portugal, o general Barnardiston, apressou-se a ir cumprimentar o vitorioso chefe revolucionário que também não se fez rogado em se deixar fotografar a seu lado, procurando, com calculismo diplomático, tranquilizar os espíritos dos Aliados. E, em breve, Portugal e Inglaterra elevariam as suas representações diplomáticas à categoria de Embaixadas; o que iria deixar os derrotados próceres «democráticos» à beira de um ataque de nervos.
O governo revolucionário
Sidónio não pensara em si próprio para chefiar o Governo que sairia da revolução triunfante. Quando, depois do abandono de Camacho, se virara para o seu correligionário António Maria Bettencourt Rodrigues tinha-lhe dito: «eu ficarei de fora, garantindo a ordem, e o senhor governará», ao que o médico retorquira que «quem sai vencedor de uma revolução é quem ganha prestígio diante das multidões; nele confiam, a ele se entregam…» Tentou ainda convencer o independente José Relvas mas igualmente sem sucesso. De facto, era o próprio Sidónio que surgia aos olhos do povo como o «messias redentor» capaz de varrer do Poder a «corja de facciosos radicais, demagogos e malabaristas» parlamentares, que haviam dividido e atirado o país para o plano inclinado da bancarrota. O Major praticava a antítese do comportamento dos «democráticos» que tinham tiranizado o país, fracturando-o, lançando uns contra outros. A sua ascensão fora um típico fenómeno que se aproximava do que hoje se designaria por bonapartismo. Sidónio possuía um «não sei quê», uma «graça», que inspirava nas massas, e não só, uma atracção que raiava a veneração. À frequente adulação respondia que «Sidónio Pais não existe; é, se quiserem, o símbolo das aspirações da Pátria». E era o «herói» que prometia para um horizonte temporal quase imediato o «fim da desordem» gerada pela «demagogia», e a afirmação do «império da lei».
Superando as convicções individuais sobre o regime, ou mesmo sobre o «sistema», gerou-se em torno dele um apelo congregante de personalidades que ficariam conhecidas como «dezembristas». Quase todas elas intuíam ser mais importante, naquele momento, o interesse nacional que a afirmação das expressões políticas particulares. Os dezembristas e Sidónio sempre afirmaram que o golpe tinha como intuito «acabar com os ódios que dividem a família portuguesa» e que era preciso «implantar um regime novo em que monárquicos e republicanos pudessem viver». E neste pressuposto nasceu a 11 de Dezembro o primeiro executivo dezembrista. O chefe do Governo tutelava, em acumulação, as pastas dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Machado Santos ficava com o Interior e José Feliciano da Costa com o Trabalho; os unionistas António dos Santos Viegas, Alberto de Moura Pinto e António Aresta Branco, com as Finanças, a Justiça e a Marinha, respectivamente; dois «centristas», Alfredo de Magalhães e João Tamagnini Barbosa (ex-unionista), assumiam a Instrução Pública e as Colónias e Francisco Xavier Esteves o Comércio.
Enquanto o Congresso não elegesse um novo Presidente da República seria também Sidónio o Chefe de Estado interino. E, uma vez confirmado o triunfo da revolução, antes mesmo de o novo Executivo ter tomado posse formal, já a 9 de Dezembro a Junta Revolucionária mandara suspender o Parlamento, anular as sanções impostas aos bispos e sacerdotes, libertar os implicados na intentona de 13 de Dezembro de 1916 e reintegrar os saneados políticos. Procurando tirar partido da sua «participação à ilharga» na vitória revolucionária, a União Operária Nacional manifesta-se publicamente, apresentando à Junta Revolucionária um conjunto de reivindicações de onde sobressaía a «utilização imediata dos terrenos baldios». E a «formiga-branca», fenómeno emblemático dos executivos «democráticos», seria agora parcialmente imitada pelos «lacraus» sidonistas.
A reacção
Ainda não tinha decorrido um mês sobre a eclosão da revolta dezembrista quando a 8 de Janeiro de 1918, os vencidos e humilhados marinheiros se revoltam a partir dos seus coutos habituais: o quartel de Alcântara e o navio Vasco da Gama que se encontrava em reparação. Para subjugar os marinheiros em terra, aparentemente sem oficiais, Sidónio enviou o jovem Teófilo Duarte (tinha 19 anos) que rapidamente os submeteu com a sua cavalaria; quanto ao Vasco da Gama ele próprio dirigiu a artilharia que do Castelo de São Jorge obrigou o navio à rendição. Dominada a revolta, Sidónio percebe que tem de avançar depressa para o seu modelo de governação que deverá assentar no apoio popular e na força armada, garante da Autoridade.
A 12 de Janeiro, ainda com o cheiro a pólvora e os ecos da revolta dos marinheiros no ar, já Sidónio tinha iniciado um périplo pelo país para contacto pessoal com as massas. Diz que o faz para «tactear a opinião pública», porque «não se pode governar sem o apoio da opinião e não há força alguma militar que a domine». Dirige-se primeiro ao Porto de onde surgiam notícias vagas sobre uma conspiração em maturação, promovida por «figuras pouco queimadas» dos «democráticos». E é no Porto que, pela primeira vez, falará em República Nova, repetindo o soundbite em toda a tournée, onde pode testemunhar a enorme popularidade de que gozava, de Norte a Sul, nos meios rurais e nas cidades. Em sucessivos banhos de multidão, por todo o país foi vitoriado entusiasticamente pelo povo que esperava dele a panaceia milagrosa que os curasse do caos permanente, da fome iminente e da calamidade da Guerra.
Sidónio propunha-se «restaurar a república generosamente proclamada a 5 de Outubro e miseravelmente atraiçoada por uma casta política» que «explorava» o Estado «em proveito próprio e com grave dano para o país», dizia. E insistia nas teclas do «triunfo da república contra a demagogia» para salvaguarda da «harmonia e unidade da Pátria», como constava no programa do Governo. A sua ideia geratriz era o conceito de República Nova em que «monárquicos e republicanos pudessem viver», lado a lado, livres da ditadura da esquerda radical. Procurou reconciliar o regime com a Igreja, apoiando as iniciativas do ministro Moura Pinto na redefinição do papel das comissões cultuais, na anulação das disposições persecutórias e discriminatórias de Afonso Costa e no reatamento das relações com o Vaticano. A 11 de Março, a restritiva lei eleitoral afonsista iria mesmo ser modificada por decreto (complementado por outro a 30 do mesmo mês) com vista ao sufrágio universal; o universo eleitoral passa então de 471.557 para perto de 880.000 recenseados. Agora, «todos os cidadãos portugueses do sexo masculino, maiores de 21 anos, no gozo dos seus direitos civis e políticos, sabendo ou não ler e escrever», iam poder votar. E na República Nova, quer os monárquicos quer os católicos passavam a ter direito de expressão política igual ao dos outros.
Tal facto levou a que, em protesto, se tivesse organizado um bloco opositor que englobava unionistas, evolucionistas e os «democráticos» que, na campanha eleitoral de Abril, mesmo para uma assembleia eventualmente «constituinte», se iriam manifestar pela abstenção. Muitos deles alertaram Sidónio para o facto de que o sufrágio universal iria beneficiar sobretudo os monárquicos. Mas já antes, a 7 de Março, na fase inicial do processo de contestação às intenções eleitorais de Sidónio, os três ministros unionistas tinham abandonado o Governo, tendo sido o ex-ministro da Justiça, Moura Pinto, a propor a abstenção como atitude a assumir pelos unionistas nas eleições que se aproximavam. Camacho, o dirigente unionista, o próprio partido de origem de Sidónio, entendeu que ele, ao dissolver as câmaras do Congresso, fora longe demais na sua atitude antiparlamentar. E reunindo o plenário da União Republicana, a 8 de Abril de 1918, repetirá o que já anteriormente tinha feito a Pimenta de Castro, puxando-lhe o tapete político numa altura crítica.
Mas, em protesto contra essa atitude, um número significativo de unionistas abandona estrondosamente o partido, manifestando o seu apoio a Sidónio Pais. Camacho, bem como alguns outros próceres republicanos, não conseguia encarar sem desconforto as ideias subjacentes à República Nova. Afinal, tinham querido apenas corrigir o rumo da «República Velha», sequestrada pelos «democráticos». A gota de água era agora a pretensão de Sidónio em eleger o Chefe de Estado pelo método directo, por sufrágio universal. E para concretizar a sua ideia-força «presidencialista», vai pôr todo o seu peso carismático na legitimação democrática, através de eleições, directas e universais, que pudesse pôr rapidamente fim ao «intróito ditatorial».
A Ideia Nova
A deserção dos homens de Camacho, em vez de atrapalhar Sidónio, liberta-o de compromissos e dá-lhe campo livre para implementar o seu plano. O seu cargo diplomático em Berlim expusera-o a um conjunto deconceitos e ideias novas em que o individualismo liberal fora suplantado pela lógica do bem comum, da superioridade da comunidade sobre as partes e, concomitantemente, pela «razão de Estado». E todas essas doutrinas, que havia estruturado o organicismo alemão, tinham por referência axial a figura do «César», geratriz da Autoridade. Na Alemanha tinha podido perceber como o exercício desse poder emanante havia mitigado a questão social, conduzindo a um equilibrado processo justicialista, justamente o oposto do que se verificava em Portugal onde o progressismo burguês era o principal carrasco das organizações operárias.
Como lembra Jaime Nogueira Pinto em Nobre Povo, em Beja, onde se deslocara para mais um contacto com as massas, aclarando os seus propósitos sobre a sua concepção do sistema político, tivera ocasião de proclamar: «O regime parlamentar já deu todas as suas provas durante oitenta anos de constitucionalismo monárquico e as provas são negativas. Em pleno século XX não é possível o regime absoluto, tendo-se portanto que optar pelo regime republicano; mas para isso é necessário que o país se pronuncie sobre a forma de regime que deve adoptar: se parlamentar, se presidencialista. O primeiro faliu, o segundo é a Ideia Nova.»
Sidónio irá manter a fachada institucional republicana mas procurará superar a inconciliável e mutuamente destruidora divisão política do país, chamando a si o comando centralizado do Estado. Queria implantar um sistema político «que não fosse reaccionário nem demagógico». Pela primeira vez, são autorizadas as mulheres com o curso de Direito a exercerem advocacia e a candidatarem-se a cargos públicos. Em meados de Março de 1918, em reacção ao insistente acosso que alguns sectores da oposição faziam ao sidonismo, a imprensa generalista anuncia a criação de uma auto-intitulada Junta de Salvação Nacional que, sem nomes que a identifiquem, propõe, em manifesto, a prisão dos boateiros e a suspensão dos jornais afectos aos «democráticos» a quem acusa de serem uma «associação de malfeitores». Em 30 de Março de 1918, como instrumento de projecção eleitoral do sidonismo, é criado o Partido Nacional Republicano – PNR. Constituíam-no personalidades republicanas conservadoras como António Egas Moniz que pouco antes, depois de encabeçar uma cisão no partido evolucionista, em 20 de Outubro de 1917, havia fundado o Partido Centrista Republicano com Eurico Cameira, Simas Machado, Tamagnini Barbosa, Gomes da Costa, Vasconcelos e Sá e o padre Casimiro Rodrigues de Sá, abade de Padornelo e ex-deputado à constituinte de 1911. O PNR, além dos quadros do Partido Centrista, pôde contar durante algum tempo com o próprio Machado Santos e os seus reformistas, um jovem militar chamado Francisco da Cunha Leal e com quase todos os verdadeiros dezembristas.
Comungando desse clima de congraçamento e concórdia, em Fevereiro de 1918, António Sérgio, Reis Santos, Ruy Enes Ulrich, Francisco António Correia e Pedro José da Cunha tinham criado a Liga de Acção Nacional. Este último, reitor da Universidade de Lisboa, será o presidente desse «movimento de opinião pública», que, fora e acima de qualquer partidarismo político, no dizer de António Sérgio, «apenas visava a verdadeira união sagrada – a Concórdia Nacional». E será Sérgio que, com a colaboração de Ezequiel de Campos e de Raul Proença, publicará a Pela Grei, «revista para o ressurgimento nacional, pela formação e intervenção de uma opinião pública consciente», apontada como órgão da Liga. No âmbito da acção prosélita da organização, Sérgio proferiu na Sociedade de Geografia de Lisboa a sua célebre conferência intitulada «O Ensino como factor de ressurgimento nacional».
No exterior, a ascensão ao poder do antigo representante de Portugal em Berlim havia feito temer aos Aliados, nomeadamente aos franceses, uma deriva germanófila em Lisboa. De facto, Sidónio tinha-se demarcado de Paris sem no entanto pôr em causa a tradicional orientação pró-inglesa. E procurou aproximar-se de Madrid, cordialmente mas com cautela. Como prova da sinceridade das suas intenções, Egas Moniz, chefe do partido centrista, verdadeiro sustentáculo inicial do sidonismo, é nomeado para representante de Portugal em Espanha, substituindo Augusto de Vasconcelos que, por sua vez, parte para a embaixada de Londres de onde Teixeira Gomes tinha sido afastado. Demarcando-se da política externa dos governos dominados pelos «democráticos», o Executivo de Sidónio dava início a um período de verdadeira distensão diplomática, com Lisboa a procurar resolver o contencioso económico-financeiro com o país vizinho. E, eventualmente, ir mais longe, formalizando um «tratado de aliança».
Em Londres, Augusto de Vasconcelos, que, recorde-se, fora chefe do Governo em que Sidónio se ocupara das Finanças, recebeu a incumbência de auscultar o Foreign Office sobre a pretendida mudança na orientação política portuguesa face a Espanha. Arthur James Balfour, o sucessor de Grey, teve dificuldade em perceber o porquê dos intuitos aliancistas e desaconselhou-os, afirmando que «os Aliados deviam reservar a sua completa liberdade de actuação sobre essas questões para, depois do fim da guerra, combinarem entre si o que mais convém a todos e a cada um». Mas o que animava Sidónio eram outros propósitos: além de procurar reduzir a nossa dependência face a Londres e romper com o restritivo bloqueio na orientação da nossa política externa, já estava a pensar no após-guerra. Sabendo ler os «tempos» e ouvir os «ventos», para Sidónio, além da normalização das relações económico- financeiras, havia a intenção de criar com Madrid um sólido instrumento de defesa recíproca contra a emergente «revolução social».
O atoleiro da Guerra
Enquanto em Moçambique o tenente-coronel Paul von Lettow-Vorbeck continuava a fazer «gato e sapato» das tropas portuguesas e inglesas, no teatro de guerra europeu houve alguma aparente hesitação inicial, nem se retirando o CEP (Corpo Expedicionário Português) da linha da frente nem o reforçando com tropas frescas. Mas Sidónio tinha consciência de que a participação na Guerra até era o mais grave problema nacional e sabia que era urgente levar a cabo «a substituição tão justa quanto merecida dos bravos soldados que já há longo tempo honram em território estrangeiro o nome português». Ao contrário da megalomania dos «democráticos» que tinham enviado para o «calvário da Flandres» milhares de homens mal preparados e mal equipados, Sidónio entendia que era um crime prosseguir essa linha de actuação e que a pressão política para «a fotografia» só contribuiria para o desastre anunciado. Paradigma dessa atitude foi o encerramento imediato da revista Portugal na Guerra (8 números) que desde 1 de Junho de 1917 se editava em Paris, dando nota gráfica da propaganda dos intervencionistas. E por insistência de Gomes da Costa, o Governo concordou humildemente com a proposta inglesa de reorganização do CEP que voltava a defender que só uma Divisão estivesse na frente enquanto a outra se remeteria à retaguarda.
Os alemães faziam esforços desesperados para precipitar o fim da Guerra, procurando contrabalançar o crescente afluxo de tropas americanas com as quase 50 Divisões que Ludendorff, o comandante supremo alemão, mandara retirar da frente Leste, após o colapso do exército russo. A 8 de Abril de 1918, como consequência da insistência dezembrista, o comando do CEP foi surpreendido com uma ordem que mandava proceder de imediato a alterações no sector à responsabilidade da 2.ª Divisão portuguesa, conducentes à rendição de algumas unidades. E quando, ainda a 8, as primeiras tropas inglesas surgiram, a notícia da rendição próxima correu como um rastilho por todo o dispositivo português. Ora foi durante o desenrolar dessa operação de substituição de forças, cuja fase intermédia deveria decorrer a 9 de Abril, que os germânicos, depois de uma intensa barragem de fogo de artilharia e de metralhadoras de que não havia memória, esmagaram brutalmente a linha portuguesa na ribeira do Lys, apanhando-a em contrapé.
As eleições
Por sobre os escombros da Batalha do Lys, de que os jornais não conseguiram transmitir toda a dimensão da dantesca hecatombe, Sidónio, querendo validar a sua estratégia política, pôs todas as esperanças no processo eleitoral por sufrágio directo universal masculino. Procurando acomodar as várias sensibilidades dezembristas, as eleições deveriam não só referendar o Chefe de Estado mas, simultaneamente, eleger «os representantes do país, com poderes para elaborarem uma nova Constituição». Contra a intenção assumida por Sidónio Pais, o bloco das velhas facções em que o PRP se tinha cindido iria fazer obstinada campanha pela abstenção. No dia 28 de Abril de 1918, dos cerca de oitocentos e oitenta mil recenseados votariam em Sidónio mais de quinhentos e catorze mil, ou seja mais de 58,4%, uma percentagem muito elevada para a habitual participação política de então. Para as legislativas, devido à ausência dos três principais partidos republicanos, a afluência dos eleitores não foi famosa. O PNR elegeu 108 dos 155 deputados, sendo os outros 37 monárquicos, 5 independentes, 4 católicos e 1 «regionalista» (o advogado e jornalista são-tomense João Monteiro de Castro, tido por socialista). O Senado terá 77 lugares, organizados num misto de regras parlamentares clássicas com princípios corporativos. Mas apesar da assunção «cesarista» de Sidónio ter sido ratificada por mais de quinhentos mil votos, os opositores não desarmavam e continuavam com a sua febricitante actividade conspirativa, alarmados com a «escandalosa» subida eleitoral dos monárquicos que, em Arganil por exemplo, até tinham batido os próprios candidatos sidonistas. Embora reconhecendo o apoio dos monárquicos à situação, «que até são pessoas honestas», Sidónio nunca deixará de insistir em que «diga-se o que se disser, agrade a quem agradar, o governo é republicano».
À instabilidade que os sectores mais jacobinos pretendiam impor na sociedade portuguesa respondia a «situação» com uma constante e implacável actividade repressiva. A tão criticada lei da censura do Executivo de Afonso Costa, de 28 de Maio de 1916, foi reposta em vigor. E vários foram os cabecilhas detidos ou exonerados dos seus cargos públicos, sobretudo «democráticos». Muitos tiveram que se recolher no outro lado da fronteira, onde as redes maçónicas, designadas genericamente por «republicanas», os acolhiam e suportavam. Quando a dinâmica das conspirações anti-sidonistas assim o exigia, muitos deslocavam-se facilmente entre os dois países sem grandes entraves das autoridades fronteiriças, quer portuguesas quer espanholas. Mas é sobretudo em França que mais se agita o núcleo duro dos conspiradores «democráticos», agasalhados pelo Grande Oriente de França. E é na sua própria sede em Paris, na rue Cadet, que medra a «loja» Portugal, baluarte máximo da conspiração anti-dezembrista. No espírito dos emigrados políticos crescia a ideia de que, sendo difícil minar o exército, só eliminando Sidónio se evitaria que o dezembrismo ganhasse raízes em Portugal. E falou- se em enviar um assassino, um oficial do exército que se predispusera a «resolver o assunto».
Proclamado Presidente da República a 9 de Maio de 1918, logo Sidónio, com intuitos pacificadores, promovera uma amnistia que abrangia os delitos políticos bem como alguns crimes comuns derivados da actividade política, como, por exemplo, o de deserção; mas contemplava apenas as praças, não os oficiais, deixando assim de fora figuras como Norton de Matos ou Leote do Rego. Na sequência da sua tomada de posse como Presidente da República, democraticamente eleito, Sidónio, nos termos do decreto de 30 de Março, devia substituir o Governo. E, quiçá para melhor vincar o carácter presidencialista do regime, os novos titulares passam a ser designados por secretários-de-Estado, à inglesa. Assim, a 15 de Maio é apresentado um novo Executivo, com caras novas mas também com muitos repescados do anterior elenco; na realidade, apenas dois governantes, próximos de Sidónio, abandonam funções: Feliciano da Costa e Pinto Osório.
Na abertura do Parlamento, a 22 de Julho de 1918, no seu discurso, Sidónio, focado no país mas especialmente no estrangeiro, onde os exilados guerristas «democráticos» insistiam em denegrir a sua imagem, taxando-o de germanófilo, afirma: «Por dois inflexíveis princípios guiamos a nossa política internacional desde a primeira hora da Revolução de Dezembro: a nossa dignidade de povo livre e uma perfeita lealdade para com os nossos amigos e aliados». E, dando claro sinal do desinvestimento no teatro da Guerra, ao saudar os combatentes, acrescenta: «A melhor recompensa que poderemos dar a esses bravos, enquanto não nos cabe a honra de ir verter com eles o nosso sangue pela Pátria, será o de dedicarmos todos os nossos esforços e votarmos a nossa vida à causa da felicidade do povo português de quem são nobres representantes na formidável luta mundial». Mas logo no dia seguinte, Cunha Leal, na Câmara dos Deputados, e Machado Santos que entretanto abandonara o Governo em Junho, no Senado, abrirão as hostilidades, começando por questionar, cada um à sua maneira, o desaparecimento da figura de «Presidente do Ministério», prevista na Constituição de 1911. E em breve juntarão as suas vozes às de O Mundo e de A Lucta nas críticas ao «evidente comportamento autocrático» de Sidónio, digno «de reis absolutos».
A facção mais parlamentarista consegue então eleger Egas Moniz para chefe parlamentar do PNR. Mas a volubilidade e irrequietismo de grande parte da bancada sidonista não lhe facilitaram o trabalho. E, apesar de não existirem representantes dos «democráticos», nem dos unionistas ou dos evolucionistas, nem por isso o Parlamento parecia dar melhor conta de si que as tão vituperadas pretéritas legislaturas da apeada «república velha». E o caldo entornou-se quando o secretário-de-Estado da Guerra, o coronel Amílcar de Castro Abreu e Mota, ao responder a uma interpelação que lhe fora feita na Câmara dos Deputados sobre a participação de Portugal na Guerra, destapou o bem vedado arquivo dos governos guerristas a quem teceu graves acusações. Para gáudio, diga-se, da minoria monárquica que se manifestou com grande efusão, relembrando a sua tradicional posição anti-intervencionista. No meio de um tumulto pouco edificante, foi requerido que o assunto passasse a ser debatido em sessões secretas, as quais, no entanto, nunca viriam a ser convocadas. Para esfriar a agitação parlamentar que ameaçava contagiar a «rua», os trabalhos foram dados por encerrados a 6 de Agosto, sendo a retoma agendada para 4 de Novembro.
As díspares sensibilidades dos apoiantes
Como se percebia, no crescente clima de crispação que então se começara a viver, não só os opositores declarados, unidos na azáfama de preparar a queda do regime, criavam dificuldades a Sidónio. Também os seus apoiantes dezembristas impediam a estabilização política. Primeiro, antes das eleições, havia sido a própria questão da opção presidencialista, entre sidonistas e unionistas. Estes tinham usado como porta-voz José Barbosa que até defendia uma visão presidencialista mas que insistia que a eleição do Chefe de Estado por sufrágio universal, por representar uma alteração constitucional, deveria ser precedida por uma que elegesse um congresso com claras atribuições para o efeito. Mas mesmo depois, ultrapassada pelo facto consumado a alegada inconstitucionalidade do rumo presidencialista, os propriamente ditos sidonistas estavam cada vez mais polarizados entre o presidencialismo integral e o de raiz parlamentar. Enquanto João Tamagnini Barbosa defendia o primeiro, o radicalismo liberal de António Egas Moniz e a maioria dos trânsfugas unionistas agregavam à sua volta os defensores do segundo. O busílis da questão residia na hipótese de se consagrar na putativa Constituição a possibilidade de dissolução parlamentar pelo Presidente da República, defendida por Sidónio e por João Tamagnini e a que se opunha Egas Moniz. Apesar da forte empatia que Sidónio continuava a gerar nas massas populares, o regime manifestava, no entanto, uma fragilidade política notória que enfraquecia a sua base de sustentação junto das elites sociais.
A 18 de Julho desse ano nascera a Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira (recentemente beatificado em Roma, a 23 de Janeiro desse ano). Fundada pelo tenente João Afonso de Miranda era um movimento patriótico, apelativo à direita e aos católicos mas cuja base heterogénea ganharia igualmente a adesão inicial de várias personalidades da elite republicana laicista como Braamcamp Freire, Egas Moniz, João de Barros, Guerra Junqueiro, Leonardo Coimbra, Manuel Teixeira Gomes, Freire de Andrade, Alfredo de Sousa, José Jacinto Nunes, Henrique Trindade Coelho ou António José de Almeida que foi o seu primeiro presidente honorário. Tal como vinha acontecendo em França com a evocação de Joana d’Arc, a «donzela de Orleães», a mítica figura de Nun’Álvares iria fornecer o símbolo axial capaz de reerguer o orgulho da comunidade, ferido pela turbulência dos primeiros anos da República e, sobretudo, pelo desastre militar de proporções anormais ocorrido em La Lys. Como salienta Castro Leal, a «função simbólica da Cruzada», mormente o seu messianismo redentor e regenerador, resultava da síntese da «tradição providencial católica», expressa na figura do «Santo», e da «hagiografia positivista» republicana, manifestada no culto do «Herói». A dinâmica regeneradora dos mitos nacionais da Cruzada, sublimados no Santo Condestável, viria a ter uma grande influência no desenrolar futuro do regime e na formação dos seus quadros mais à direita. No providencialismo católico português, quatro projecções messiânicas têm especial significado: «o milagre de Ourique», no séc. XII, na alvorada da fundação da nacionalidade, «o Santo Condestável», no século XIV, «Nossa Senhora da Conceição» de Vila Viçosa, no século XVII, e, finalmente, as «Aparições de Fátima», no séc. XX.
O calvário da Flandres persistia
Quando se esperava que após a hecatombe da ribeira do Lys as tropas portuguesas pudessem finalmente repousar, eis que, logo a 13 de Abril, os ingleses relançam duas Brigadas na frente. Por essa altura, os efectivos portugueses no teatro de guerra europeu rondavam os 35 mil. Dispersos por Divisões britânicas, estava-lhes reservado o indecoroso papel de «cavadores de trincheiras», tal o prestígio que o nosso contingente havia granjeado. Farto de ser mantido à margem das decisões militares pelo comando inglês, o general Tamagnini, envergonhado e de «saco cheio», resolve vir a Lisboa para conversações com o executivo de Sidónio. Entrega o comando interinamente a Gomes da Costa e vem para Lisboa, a 3 de Maio, de onde só sairá a 13 de Junho mas sem qualquer sinal de resolução do problema.
Extremamente preocupado com o estado das tropas em França, o Executivo procura obter dos ingleses meios de transporte para as repatriar, mas escolhe um momento que os nossos aliados consideram inoportuno por terem todos os navios a transferir americanos. Sidónio insiste que «não se trata do desejo de enviar reforços que não nos foram pedidos, mas sim de fazer a substituição das forças cansadas e de habilitar assim, por dever de justiça e no próprio interesse do valor da nossa cooperação, o contingente português a desempenhar a sua missão». Regressado ao front, Fernando Tamagnini, ainda mal tinha desfeito as malas, recebia do secretário-de-Estado da Guerra a acintosa comunicação de que iria ser substituído; e ainda teve, disciplinadamente, de aguentar até à chegada do seu substituto, o general Garcia Rosado.
Tomás Garcia Rosado, o novo comandante do CEP nomeado por Sidónio, saiu de Lisboa a 15 de Julho acompanhado por Sinel de Cordes, chefe-do-estado-maior do CEP, por Ivens Ferraz, chefe da missão de ligação ao I Exército britânico, e por dois ajudantes de campo. Demandou primeiro Paris, onde apresentou cumprimentos protocolares às autoridades militares francesas, incluindo o comandante-em-chefe dos Exércitos Aliados, o general Foch, que dias depois seria elevado a Marechal. A 29 de Julho já estava a caminho de Londres, onde se reuniu com autoridades militares inglesas que lhe apresentaram uma agenda com pontos muito diferentes e até divergentes do que tinha ficado alinhavado em Lisboa com Barnardiston. Os britânicos, influenciados pela opinião de Haig que tinha uma fraca imagem do CEP, sobretudo dos seus oficiais, insistiam que só estavam interessados em contar com as forças portuguesas se elas fossem comandadas por oficiais ingleses.
Engasgado na dolorosíssima trapalhada em que os guerristas haviam irresponsavelmente metido o país e «trabalhado» pela intriga desleal do general Barnardiston, o Executivo refreia Rosado insistindo que ele tivesse «sempre presente que o nosso objectivo é prestar, na medida e forma possíveis, todo o auxílio que a nossa aliada pedir mas sem solicitar ou pretender impor cooperação que nos traga maiores sacrifícios». Mas com o apoio vibrante do nosso representante em Londres, Augusto de Vasconcelos, e com o parecer favorável do Foreign Office, Rosado obteve uma vitória diplomática, fazendo recuar as imposições inglesas praticamente ao «convénio» de Janeiro último. E conseguiu convencer os ingleses a colaborarem num plano de reconstrução do CEP, que iria de novo ocupar um sector da frente mas agora com o dipositivo que Sinel de Cordes defendera antes da ofensiva alemã da primavera desse ano.
A República Nova
Por cá, com a dita «crise das subsistências», a «anarquia mansa» como lhe chama O Século, a arrastar-se, o Governo resolveu estabelecer, para a mitigar e controlar, o regime de racionamento. As rações individuais passavam a ser fixadas ao nível da freguesia pelos regedores e pelos professores primários. Alguns meses antes, a 22 de Abril, tinha já sido decidida a criação de celeiros municipais para a constituição de reservas alimentares de emergência. O novo esquema que visava substituir a desequilibrada e quase anárquica situação de controlo dos fluxos alimentares, foi implementado em Lisboa a partir de 16 de Setembro de 1918, tendo a medida sido alargada ao resto do país a 23 do mesmo mês.
Pioneira no campo social, desde o início do dezembrismo que a política sidonista procurava encontrar instrumentos de intervenção na defesa dos mais desprotegidos. A 24 de Abril o Decreto nº 4137 regulamentara o regime das casas económicas. No preâmbulo de fundamentação, citando-se Louis- Auguste Blanqui, considerava-se que «as questões sociais, interessando particularmente as classes proletárias, são hoje de palpitante actualidade em todos os povos cultos». Tinham igualmente imposto preços máximos para as rendas habitacionais e determinado que «os bairros ou grupos de casas económicas serão em regra constituídos por casas isoladas para uma só família», ficando as mesmas isentas de impostos; logo de seguida fora aberta uma linha de crédito para a construção de casas baratas para operários em Lisboa e no Porto. A 9 de Março fora publicado o regulamento da lei dos desastres de trabalho e, dois meses depois, fundado o Instituto de Seguros Sociais Obrigatórios e de Previdência Geral. A Casa Pia e a Misericórdia de Lisboa recuperaram a autonomia, embora continuassem sob a tutela da Direcção-Geral de Assistência. Sob os auspícios de Sidónio, fora criada a Associação 5 de Dezembro, com o objectivo de ajudar os mais desvalidos, mitigando-lhes a fome através da distribuição de alimentos em cozinhas urbanas. A iniciativa ficaria para a História carimbada com a popular designação de «sopa do Sidónio».
Mas os problemas com a ordem pública agudizavam-se e Sidónio resolve promover uma nova remodelação no Executivo. João Tamagnini vai para as Finanças, sendo substituído no Interior por António Bernardino Ferreira; aparentemente, Egas Moniz, nomeado para os Negócios Estrangeiros e tendo influenciado Sidónio noutras escolhas para o elenco governamental, parecia ter roubado a Tamagnini o papel de figura mais influente no Gabinete. Poucos dias antes da tomada de posse dos novos membros do Executivo, após ter detectado um núcleo de conspiradores «democráticos» em Lamego, o comandante da polícia do Porto, Sollari Allegro, desmontara uma trama revolucionária que se preparava para eclodir. Depois de efectuadas inúmeras prisões preventivas, ao desenrolar-se o novelo da conjura, foi possível encontrar vários planos de acção e esconderijos de armas da revolução anti- dezembrista em gestação. Apesar disso, a 12 de Outubro rebenta a insurreição, com parte de Infantaria 35 de Coimbra, sob as ordens do coronel Alexandre Mourão, a tomar conta da «cidade dos doutores».
Das várias cidades comprometidas apenas Évora secundou Coimbra, tendo-se revoltado Cavalaria 5, cujo comandante, o coronel Pereira da Silva, foi morto pelos insurrectos. Tal como acontecera em Coimbra, o general comandante da Divisão local, Brás Mouzinho de Albuquerque, fora preso, tendo assumido a liderança do movimento revolucionário o ex-governador-civil imposto pelo 5 de Outubro, Estêvão da Cunha Pimentel. Operários e rurais sindicalistas foram armados e a anarquia instalou-se. A direcção dos revoltosos não conseguia controlar os sindicalistas que ameaçavam «cavalgar a onda» e assumir eles próprios uma «revolução dentro da revolução burguesa». Com a aproximação das forças do Governo, chefiadas pelo tenente-coronel Silva Reis, Pimentel decide escapulir-se. O mesmo fizera em Coimbra o coronel Mourão que desaparecera, descoroçoado com a indiferença das outras unidades militares da cidade.
Estrangulada à nascença, no Porto e em Lisboa, a revolução ficara-se pelas intenções. Reposta a ordem, seguiu-se o apuramento de responsabilidades e as respectivas sanções. E as prisões encheram-se rapidamente, sobretudo com «jovens turcos» e gente grada do partido «democrático», como o ex-presidente do Ministério José de Castro, o visconde da Ribeira Brava, eterno agitador dos complots, Daniel Rodrigues, o criador da «formiga-branca», ou o major Liberato Pinto, recentemente regressado de Moçambique «em desgraçada retirada». Em Lisboa, a sobrelotação das cadeias, nomeadamente a do Governo Civil, impunha uma distribuição dos detidos por outros locais como os fortes de Caxias e de São Julião da Barra. A transferência dos presos do Governo Civil far-se-ia por comboio a partir do Cais do Sodré, para onde se deslocariam a pé, em coluna vigiada. Assim, a 16 de Outubro, uma leva com cerca de cento e cinquenta detidos, vigiados por algumas dezenas de guardas armados, saiu dos calabouços da rua do Capelo.
Quando atravessavam a confluência da rua Vítor Cordon com a Serpa Pinto, ao entrarem na apertada calçada do Ferragial, soaram dois tiros e, de repente, instalou-se o caos. Quer as bombas lançadas indiscriminadamente sobre a coluna quer o facto de Francisco Correia de Herédia (Ribeira Brava) estar na posse de um revólver quer ainda o conhecimento de que alguns detidos se tinham recusado a ir naquele magote permite suspeitar de que se tratou de uma tentativa de libertação selectiva de alguns presos; como acontecera, aliás, durante o anterior governo de Afonso Costa, a 12 de Julho de 1917, quando a escolta que custodiava cerca de três centenas de presos, maioritariamente grevistas amotinados, fora atacada a tiro, tendo-se evadido muitos deles. Mas agora, apesar de haver mais guardas mortos e feridos que detidos (entre os quais Herédia), isso não impediu que a imprensa adversa ao dezembrismo, insinuando o propósito sidonista de liquidação de alguns presos, clamasse «Vergonha!» e denominasse o incidente como «a leva da morte».
Durante esse período conturbado, a sociedade portuguesa (e o mundo em geral) teve ainda que suportar o mortífero flagelo da gripe «espanhola». De origem viral, provocada por uma estirpe do H1N1, era também conhecida como «pneumónica» já que, pelas suas consequências debilitantes, provocava infecções bacterianas ao nível das vias respiratórias. Teve a sua origem nos Estados Unidos, num aquartelamento do exército, Camp Funston, no Kansas, provavelmente no princípio de Março de 1918. O elevado contingente de tropas americanas que desembarcou na Europa durante o primeiro grande conflito mundial propagou a doença que rapidamente se espalhou por todo o globo tendo estado na origem de mais de 40 milhões de mortos; só na Índia pereceram cerca de 15 milhões de pessoas. Em Portugal, a pandemia provocou a morte, por causas directas ou indirectas, de mais de 150 mil pessoas, com um pico máximo em Outubro-Novembro de 1918, depois de um segundo surto. Apesar de não fazer distinção de classes, a verdade é que a pandemia afectou mais os pobres e os débeis. E Sidónio esteve sempre presente, incansável, junto do povo aflito que então o cognominou de «o grande pai dos pobres».
O fim da Guerra
Às 11 horas, do dia 11, do mês 11, do ano de 1918 foram suspensas as hostilidades na frente ocidental, de acordo com o armistício assinado em Rethondes, na floresta de Compiègne, pelo marechal Ferdinand Foch e pelo representante alemão Mathias Erzberger. Os alemães tinham esgotado as suas reservas humanas e viam-se a braços com motins e insurreições revolucionárias por toda a parte, nomeadamente em Berlim; e não queriam de forma alguma que os aliados invadissem e ocupassem o seu território. Por isso, tinham resolvido solicitar a paz. Dois dias antes, o símbolo do imperialismo militar alemão, Ludendorff, pedira a demissão e, logo de seguida, o kaiser abdicara partindo para o exílio na Holanda. Mas a cessação dos combates ainda não era a Paz. No próprio dia do armistício, Rosado entregava a Alves Roçadas o comando da 2.ª Divisão, cujas forças tinham contudo de ficar de prevenção, disciplinadas e controladas na sua imobilidade, a aguardar transporte.
Com o fim da Guerra, mitigada a ansiedade popular pelo regresso dos familiares e recompostos os circuitos dos abastecimentos, importantes factores de condicionamento da atrição social, a popularidade de Sidónio continuava em alta mas ele próprio tinha noção do desgaste a que o regime estava sujeito. Em Coimbra, a 30 de Novembro de 1918, Sidónio reconhecia que «têm surgido dificuldades de toda a ordem. O 5 de Dezembro foi um movimento feito por um grupo de homens alheios aos partidos políticos e, por isso, eu tenho hoje a hostilidade declarada das esquerdas, ao mesmo tempo que falta o apoio das direitas».
O início do Outono de 1918, com o recrudescimento da «pneumónica», tinha sido o período mais contundente. Aqui e ali, as redes secretas próximas dos «democráticos» continuavam a preparar revoltas, protagonizavam atentados e criavam agitação. A máquina da repressão não se deixava intimidar e as prisões iam-se enchendo. De entre os próprios apoiantes do regime, sobretudo da parte dos mais libertários, já se ouviam palavras de censura. E longe iam os tempos do namoro com as associações sindicais, como a União Operária Nacional, onde já se faziam sentir os ecos da revolução comunista russa. A colaboração desta organização fora essencial na operacionalização do decreto contra os açambarcadores, dirigida pelo alferes Jorge Botelho Moniz. Mas pouco tempo depois, o Conselho Central da organização sindical já diz que «nada de razoável podem nem devem esperar as classes trabalhadoras de mais esta nova (?) situação política que o operariado acolheu com benévola expectativa». E como não podia deixar de ser, a repercussão dos ecos da mitificada «revolução de Outubro» já começara a deixar uma indelével marca nas barricadas ideológicas portuguesas.
A 18 de Novembro, uma semana depois do armistício que pusera fim aos combates no front ocidental, os sindicatos mais radicais, numa resposta activa e musculada à política do Governo, organizaram uma nova greve geral, a qual, apesar de ter alastrado para o dia seguinte, iria falhar rotundamente. Sidónio reprimiu-a preventivamente, ordenando a ocupação militar das estações ferroviárias e a detenção dos principais dirigentes; mas, sobretudo, «apagou-a» com a convocação de uma grande parada militar comemorativa do fim da Guerra. Para o evento convidou toda a população «patriótica e ordeira» que, de facto, compareceu em massa, retirando qualquer impacto ao movimento grevista.
A 5 de Dezembro sai de Lisboa a caminho de Paris a delegação portuguesa à Conferência de Paz, presidida por Egas Moniz que, para o efeito, suspendera interinamente a sua função executiva como ministro dos Negócios Estrangeiros. Era composta por Freire de Andrade, pelo nosso representante diplomático em Paris, Bettencourt Rodrigues, pelo conde de Penha Garcia, por Batalha Reis, o representante diplomático na Rússia, e por Álvaro Vilela. Portugal apresentava-se humildemente, meio-envergonhado entre os vencedores. À histérica estratégia belicista dos governos «democráticos» que forçara Londres a aceitar-nos como parceiros de combate, almejando no fundo o maternal afago da Marianne francesa, Sidónio contrapusera um realista recuo táctico. Na elástica equação dicotómica onde assentava a nossa política externa da altura, resolvera repousar mais na organização inglesa da guerra, desinvestindo no desastroso modelo da autonomia do CEP, megalómano e irrealista, ao mesmo tempo que se aproximava de Madrid com intuitos aliancistas, como vimos. Não só «para inglês ver» como acontecera com Afonso Costa mas com sinceridade e empenho.
No início da Guerra, Edward Grey, com Gibraltar no pensamento, insistira para que Lisboa se aproximasse de Madrid, não só como forma de mitigar o risco de intervenção espanhola em Portugal mas também para esvaziar a estratégia ibérica da Alemanha. Mas a política de «harmonia ibérica» apoiada pelo presidente do Executivo espanhol, conde de Romanones, reavivara a tradicional desconfiança lusa, acreditando-se no seio dos governos da União Sagrada que a proposta mais não era que uma «negaça» para se introduzirem no convívio dos aliados com o intuito de, no fim, «nos roubarem a namorada inglesa». Tinha sido obviamente uma postura reactiva, corrigida por Sidónio para uma iniciativa proactiva que pudesse atenuar, no futuro, a nossa excessiva dependência de Londres. Mas o sucessor de Grey, lorde Balfour, parecia mais interessado em apoiar a causa sionista na criação de um Estado judaico na Palestina do que nas subtilezas latinas das relações peninsulares.
O desfecho trágico
Tomando o pulso ao país, Sidónio pressentia a instabilidade e nem o toque a reunir dos seus oficiais mais fiéis o sossegava. A 6 de Dezembro, quando condecorava os sobreviventes do Augusto de Castilho que tão abnegadamente haviam cumprido o seu dever defendendo o vapor São Miguel do ataque de um submarino alemão, foi alvo de um atentado. O aspirante a assassino era um jovem de 19 anos, Luís Baptista, membro da Liga da Juventude Republicana e filho de um comerciante, filiado, tal como a maioria dos seus amigos, na «loja» maçónica Pró Pátria. A comoção entre o povo estremecido propagou-se como um rastilho e uma multidão em fúria, gritando palavras de ordem como «Abaixo a Maçonaria! Abaixo a corja de assassinos!», assaltou as instalações da Pró Pátria enquanto outro grupo atacava no Bairro Alto o palácio do Grémio Lusitano, sede do Grande Oriente.
Egas Moniz, na altura em Madrid a caminho de França, toma conhecimento do frustrado ataque, depois da cerimónia protocolar de apresentação de cumprimentos a Alfonso XIII. Alarmado, prosseguiu no entanto a sua viagem cujo primeiro destino era Londres onde se ia avistar com Arthur James Balfour, o seu homólogo inglês. Como Moniz tivesse ido além das suas instruções, solicitando apoio aos ingleses para «estender» Moçambique para o Tanganyika, Sidónio, ao ter tido conhecimento desse e de outros factos, lembrou-lhe que Portugal «devia apresentar-se na Conferência em atitude modesta e desinteressada».
Ultrapassado o episódio do atentado, eis que chegam do Porto notícias alarmantes sobre a agitação crescente não só entre os conspiradores «democráticos» mas também já entre elementos de núcleos dezembristas nas guarnições militares. Para esvaziar à nascença o rebuliço, Sidónio decide ir ao Porto procurar acalmar a situação mas Sollari Allegro, o comissário da Polícia do Norte, procura dissuadi-lo. O presidente consentiu apenas em adiar a viagem para assistir às exéquias pelos heróis do Augusto de Castilho, na Igreja da Encarnação, ao Chiado. Quando decidiu partir, o seu ajudante, o capitão Eurico Cameira, ainda o tentou ludibriar, tentando levá-lo a apanhar o comboio em Alcântara; mas Sidónio, mesmo sabendo que o esperava uma manifestação adversa, pretensamente organizada por famílias de presos, depois de uma ligeira hesitação, insistiu no Rossio. E é aí que, na tarde de 14 de Dezembro de 1918, o Presidente-Rei, como ficaria postumamente cognominado para a História pelo punho de Fernando Pessoa, é assassinado por um militante do PRP. Antes do atentado, o seu autor, José Júlio da Costa, visitara o grão-mestre do GOL, Sebastião de Magalhães Lima, alojado no Hotel Francfort, ali ao lado. Em comum com as relações do jovem Baptista, Costa tinha o facto de pertencer a uma «loja» do GOL. E para sempre ficou a suspeita de que a maçonaria tinha estado por detrás da morte do outrora «irmão» Carlyle, que «se atrevera a aliar-se com thalassas e clericais». Após o assassinato de Sidónio, apareceu pichada nas paredes, e repetida na boca do povo, a quadra: «Um Costa matou o Rei/ Outro Costa o Presidente/ E um Costa que eu cá sei/ Foi quem deu cabo da gente».
Remate
Durante os 370 dias em que deteve o poder supremo, Sidónio tinha-se mantido, no fundo, fiel à ideia demo-liberal em cujo espírito se formara como cidadão e livre-pensador. A sua deriva presidencialista, se o marcara face à corrente de opinião dominante entre os republicanos portugueses, em que a preponderância do parlamentarismo era regra, nem por isso o tornava menos liberal nas suas convicções. Mas, estranho à supremacia dominante do PRP, o presidencialismo sidonista, apesar de ratificado por uma votação muito superior ao próprio número de recenseados nos cadernos eleitorais anteriores, merecia mesmo assim o labéu de «ditadura». E, na prática, a sua actuação no sentido de deter a desordem e impor um outro rumo ao país, acabava contraditada pelo seu pensamento político de base que tinha por referência uma concepção estática, quase neutra, dos vectores políticos que dinamizavam a sociedade. Incauto, entendia que o «superior interesse nacional» seria suficiente para unir os portugueses, esquecendo-se de que essa expressão tinha já díspares leituras, de acordo com o posicionamento ideológico. E ficava muito surpreendido, e até agastado, com a ingratidão dos adversários que, perdoados pela sua magnânima compaixão, mal postos em liberdade regressavam de novo a conspirar.
O regime que Sidónio procurou implantar, fora essencialmente uma reacção contra o neo-despotismo iluminado dos «democráticos» que, escondidos nas roupagens cénicas da teatralização parlamentar, decidiam o futuro dos cidadãos, sem para tal estarem devidamente mandatados. A revolução dezembrista, com o apoio das correntes de opinião dos que se sentiam marginalizados politicamente ou saturados pela intoxicação demagógica, procurou curto-circuitar as estruturas intermédias do Estado ao serviço das oligarquias «donas do sistema», buscando legitimação no voto popular directo. Ou seja, ao perceber e sentir o total desconcerto entre o país real e o país formal, assumiu roupagens do que hoje designaríamos por uma atitude populista.
Sidónio, pelo seu comportamento corajoso e pela justicialista praxis política, surgiu como um cometa luminoso que pretendia impor um novo rumo na nação portuguesa mas o peso da sua «sombra» obscurecia a tão desejada «ideia nova». E o seu «sistema», encerrando em si mesmo uma certa morbidade, estava condenado a desaparecer quando ele caísse. Como sempre acontece com todos os líderes que procuram conciliar forças díspares ou mesmo adversas sem primeiro as sublimar, o efeito aglutinador de Sidónio, o seu carisma, durou apenas enquanto ele existiu. Como diz Raul Brandão nas suas Memórias, «do grande partido que apoiava o Sidónio, ficaram, dum dia para o outro, meia dúzia de pessoas». Mas a semente da Ideia Nova, assente num poder pessoal e carismático, haveria de germinar mais à frente, numa janela de oportunidade única, em que os profetas do devir histórico iriam reconhecer, e apontar a dedo, um novo «messias», vindo igualmente da Universidade de Coimbra.
José Luís Andrade é licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Academia Militar e ensinou Física Atómica e Nuclear na Universidade dos Açores. Foi docente na Academia da Força Aérea, na European University, na Universidade Católica Portuguesa e na Universidade Lusíada. É auditor do Curso de Defesa Nacional (1991). É autor do livro “Ditadura ou Revolução? A Verdadeira História do Dilema Ibérico nos Anos Decisivos de 1926-1936”.